# 41: O momento

1.
Entramos em silêncio, sem nos olharmos, sem olharmos nada, e sentamo-nos, um pouco afastados um do outro. Perguntas-me se quero beber alguma coisa, respondo que não; mas levantas-te, dizes que te apetece um chá, desapareces. Olho as fotografias penduradas nas paredes, que me parecem interessantes, que quase me levam a levantar-me e olhá-las de perto, apreciá-las; não o faço, entretenho-me a passar os olhos pelas lombadas dos livros, contar quantos é que identifico, sobre quantos é que poderia conversar contigo; poucos. De longe, lá das entranhas do apartamento, chegam ruídos que não consigo, nem quero, identificar. Pego uma revista sobre decoração abandonada num canto do sofá e vou passando as páginas, indiferente, distraído. Reparo que não existem plantas, pergunto-me se isso significará alguma coisa. Televisão enorme, muitos DVD’s arrumadinhos; um sistema de som, duas colunas pequeninas, alguns CD’s; jazz e filmes de autor: vão bem com os livros de poesia e os ensaios sobre fotografia, com as revistas para decoradores. Pouso a revista e aprecio os móveis, bonitos e sofisticados. Mais ruídos, depois passos.
Sentas-te no chão, embrulhada em almofadas; vais bebendo chá, olhas-me sem sorrir, talvez sem curiosidade. Sinto-me desconfortável, não sei muito bem que dizer, que fazer, que esperar. Olho a nuvem de fumo que se desprende da tua chávena de chá e sobe, devagarinho; de longe, chega o som irritante de um espanta-espíritos agitado pelo vento. Observo-te, tento perceber os sinais que me lanças, não consigo; talvez esperes que tome a iniciativa, talvez este tipo de preliminar seja importante para ti. Seria bom se conseguíssemos conversar mas nem tentamos. Passos abafados no andar de cima, esforço-me para não ceder à tentação de olhar o tecto. Por fim, perguntas se quero ver um filme; respondo que sim, para disfarçar a contrariedade que sinto. Levantas-te e vais escolher um DVD, de repente entusiasmada: não perguntas a minha opinião. Olho as tuas costas, aprecio o teu corpo; imagino-o nas minhas mãos. Pergunto-me se, afinal, iremos foder ou não.

2.
Estavas sentada ao balcão, com um jornal à frente. Lias sem grande atenção, por vezes fazias um comentário ao barman, que acenava com a cabeça ou encolhia os ombros; bebias chá. E parecias indiferente ao ruído, à multidão, ao contacto. Simultaneamente disponível e inacessível.
Sentei-me numa mesa e observei-te, curioso, cativado. Com esperança.

3.
O filme aborrece-me, de repente sinto sono; apetece-me fechar os olhos e adormecer, adiar; por vezes, espreito-te e percebo que estás concentrada, interessada, distante de mim; pergunto-me se não me terás esquecido; talvez.
Mas escuto o silvo da tua respiração, sinto e teu cheiro mesclado com o perfume que usas para proteger a tua intimidade; e é agradável sentir esta companhia silenciosa e longínqua; quase é suficiente. Agrada-me que não sejas daquelas mulheres que acende velas e as espalha pelo chão; agrada-me muito que não bebas álcool; quase me agrada a tua indiferença, posso fingir tratar-se de familiaridade. Olho o teu corpo abandonado sobre as almofadas: e desejo-o, apetece-me. Um pedacinho de coxa, quando mudas de posição; o interior do braço; a curva do seio sob a camisa fina: apetece-me. Espio os fragmentos de pele que não estão protegidos por roupa e pergunto-me se chegarei a beijá-los. Os lábios: que sabor terão?
A noite arrasta-se. Que esperamos, afinal?

4.
Olhava-te, tentando compreender por que motivo me interessavas, por que motivo não conseguia deixar de te olhar. Já tentara adivinhar o teu corpo, imaginando-o para além das roupas, já espiara o teu rosto, tentando percebê-lo. E confesso que não me pareceste especialmente bonita ou sensual; perto da banalidade, para ser sincero, apesar do óbvio bom gosto na roupa, nos acessórios. Uma mulher para quem não olharia se estivesse acompanhada por um homem.
E, apesar disso, insistia em observar-te. Seria, talvez, a tua possível disponibilidade a cativar a minha atenção, a incentivar o meu interesse? Apenas isso?
Continuei a olhar-te, procurando explicações e especulando teorias. Com vontade de te perguntar: estás só? E acrescentar: como eu?

5.
O filme termina de repente. Suspiras preguiçosamente, com gosto, e manténs-te imóvel, perfeitamente imóvel. Depois, olhas-me, certificas-te de que estou a observar-te; e com gestos lentos, quase forçados, desapertas os botões da camisa, despe-la. Olho os teus seios, um pouco excessivos, um pouco descaídos; Acho-os belos e sei que por mais vezes que os olhe, que os toque, que os beije, não voltarei a achá-los tão extraordinários como nesta primeira vez; demoro-me a olhá-los, a conhecê-los, a memorizá-los.
Depois, muito depois, os mamilos, escuros e erectos, são o primeiro pedaço do teu corpo que a minha língua toca. Primeiro um, depois o outro. E de novo o primeiro.

6.
Quando me olhaste pela primeira vez, não sorriste. Penso que foi o barman que te preveniu e tu, sem discrição nem elegância, quiseste intimidar-me. Conseguiste: como um rapazinho, levantei-me e fugi em direcção à casa de banho; quando abri a porta, ouvi um riso inesperado, quase desagradável. E tive a certeza que era teu.
Tranquei a porta e desapertei as calças, tirei o pénis flácido e relaxado para fora; fiquei a segurá-lo durante muito tempo, à espera que uma gota de urina surgisse e justificasse a minha presença ali, disfarçasse a minha fuga.
Do lado de lá, a vibração da música; e o estrondo de ocasionais gargalhadas, talvez tuas.

7.
Os corpos estão cansados, gastos. Sentimo-nos momentaneamente saciados, saboreamos a rara volúpia de, durante um fugaz instante, pressentir que acumulámos prazer suficiente para nos sustentar por muito tempo, por uma vida. Sabemos que não é assim, que a excitação e a necessidade não tardarão a regressar, que o corpo precisa sempre de mais e mais, sabemos que, na verdade, nunca é suficiente; sabemos: e não nos importamos.
Ainda sinto o sabor do teu sexo na boca; e é agradável. Excita-me que não te incomode o esperma e a saliva que espalhei pelo teu corpo, que não tenhas desertado em direcção à casa de banho, à limpeza, à eliminação das provas, ao arrependimento. Talvez isso prenuncie que, depois do prazer, poderá chegar a intimidade; ou significará precisamente o oposto? Sentes-te confortável porque já me assumes como um companheiro, e não apenas um parceiro ocasional? Ou porque já decidiste que não voltarás a cruzar-te comigo?
Assusta-me ter que pensar. Concentro-me no cheiro, no silêncio, na escuridão; e na suavidade da tua pele; pergunto-me quantos cremes diferentes usarás, dia após dia, imagino-te sentada numa ponta desta mesma cama a massajares as coxas com cremes hidratantes e anti-envelhecimento, olhando o azul do céu que espreita pela janela, pensando no dia que chega, indiferente à carícia que ofereces a ti própria.
Moves-te ligeiramente, talvez desejando que me afaste, talvez convidando-me a abraçar-te. Opto por descer a mão pelo teu corpo, acariciando-te; contorces-te suavemente, receptiva; quando o dedo desliza, por fim, para dentro de ti, gemes; agradada: incentivando-me. E eu prossigo, diligentemente. Apesar de saciado, decido insistir no prazer, no teu prazer; adiar o momento da tua decisão, evitar o teu veredicto; distrair-te. Insistir em acreditar que esta noite continuará para sempre.
Masturbo o teu corpo, esperando assim conquistar a tua intimidade.

8.
Quando regressei da casa de banho, esforcei-me por não te olhar; e quase consegui: até ao momento em que senti que te aproximavas, que caminhavas até mim.
Sentaste-te na minha mesa, como se fossemos velhos amigos. Perguntaste-me o nome mas não disseste o teu; foste falando do que estiveras a ler no jornal, sorrindo por vezes, não muitas; concentrada em mim. Estudei o teu rosto, contei as sardas e imaginei como seria a sua textura, como seria senti-las na ponta da língua, concentrei-me nos lábios; depois, saboreei o teu perfume, tentando separá-lo do cheiro do teu corpo.
Foste falando, indiferente à minha observação; talvez dando-me uma oportunidade para te seduzir. Talvez pedindo que te seduzisse.

9.
Resisto a adormecer, para que possa saborear durante mais tempo esta volúpia de te sentir próxima, junto de mim, o conforto de me sentir tocado. Na verdade, apetecia-me conversar um pouco, talvez até rir; dar respostas, ouvir opiniões; conhecer-te. Mas de certo que não te apetecerá.
Deixo que a noite vá passando. Pergunto-me o que acontecerá, se acontecerá algo. Gostava de voltar a estar contigo; aliás: nem consigo imaginar outra possibilidade. Desejo outros encontros. Mais sexo, muito mais sexo; e depois, a intimidade, a partilha, a afinidade, a cumplicidade. O tempo a passar, apressado: e nós, indiferentes. O conforto da presença do outro, a certeza da presença do outro.
Será assim, claro. Basta esperar o momento certo; e perguntar: quando voltarei a ver-te? Sim, há sempre um momento certo. Basta esperar.

10.
Ouvia-te mas não percebia o que dizias, não me interessava. Concentrava-me, apenas, no movimento dos teus lábios e pensava: quero beijá-los. E tu ias falando e falando e falando.
À nossa volta, agitação e risos, música, fumo, tantas e tantas vozes. Um novo chá à tua frente, o copo de gin sempre na minha mão. O teu rosto, os teus lábios. A tua voz um pouco monótona, um pouco exaltada: incessante
Até que deixaste de falar e eu, incapaz de afastar o olhar dos teus lábios, hipnotizado por eles, aproveitei o teu silêncio para perguntar se vivias muito longe. E tu sorriste.

11.
Estou sentado no sofá, como no início. Lá de fora chegam os ruídos da cidade, do mundo em movimento, homens e mulheres perseguindo felicidades, procurando o seu lugar; ouço os seus sons, saboreando-os; raios de sol entram pela janela, convidativos e serenos, puros: como no início do mundo; gostaria de me levantar e senti-los no rosto, o vento agitando-me o cabelo, procurar o espanta-espíritos que tanto me irritou à noite e achá-lo bonito, invejá-lo e decidir comprar um igual, alegrar-me com as insignificâncias da vida, com as simplicidades de que a felicidade é feita; espreguiçar-me ruidosamente, espreitar o pedaço de cidade que a tua varanda oferece, sentir que o partilhas comigo; mas tenho preguiça, prefiro manter-me nesta confortável inércia, sentir o tempo passar devagarinho. Apreciar o momento.
No chão, descubro a tua roupa abandonada, a roupa que despiste para mim. O olhar fixa-se inevitavelmente nas cuecas, caídas numa almofada dourada, certamente impregnadas com o teu cheiro, o teu sabor. Apetece-me pegá-las e reviver através delas o teu sexo, o teu corpo. Mas tenho vergonha, prefiro não me vulnerabilizar de modo tão peremptório perante ti. Prefiro esperar, guardar-me.
Fecho os olhos, escutando o murmúrio alienante do espanta-espíritos e recordando o teu sabor. Quase feliz.

12.
Seguia o teu carro, tentando não te perder no meio do trânsito selvagem e caótico da noite, sentindo-me excitado e ansioso. Entusiasmado com a perspectiva iminente de fazer sexo contigo, com alguém. Mas não só: espantando-me com a naturalidade de tudo o que acabara de acontecer; perguntando-me porque nunca o fizera antes.
E tentando não esperar demasiado; não antecipar nem fantasiar, não idealizar, não romantizar. Aproveitar, apenas.

13.
Tocas-me no ombro com suavidade, acordando-me. Sorris. Dizes que estás atrasada. Voltas a sorrir.
Levanto-me e sigo-te, saímos juntos; observo o modo displicente como trancas a porta, guardas as chaves, chamas o elevador. E quase me sinto parte da tua rotina.
No elevador, olhas-te ao espelho, ajeitas o cabelo; dizes, num tom caloroso: gostei muito de passar a noite contigo; e sorris para ti própria, agradada contigo, com o que o espelho revela. Intuo que talvez seja este o momento certo para te perguntar quando voltaremos a estar juntos mas hesito, talvez envergonhado, talvez receoso; alisas uma sobrancelha com a ponta do dedo, voltas a acariciar o cabelo, dizes, ainda em tom caloroso: mas preferia não te voltar a ver.
O elevador imobiliza-se, a porta abre. E sais, um pouco apressada.

14.
Entraste no elevador, um pouco apressada. Segui-te. Ambos nos olhámos no espelho, ambos procurámos o olhar do outro, ambos fugimos à perscrutação do outro. Ambos sorrimos, secretamente.
Depois, o elevador imobilizou-se e saímos. Abriste a porta e entrámos em silêncio, sem nos olharmos, sem olhamos nada, e sentámo-nos, um pouco afastados um do outro. Perguntaste-me se queria beber alguma coisa, respondi que não; mas levantaste-te, disseste que te apetecia um chá, desapareceste. Fiquei à tua espera, a imaginar qual seria o teu nome, quando mo dirias.