1.
Quando vejo o rosto do rapaz mesmo junto do vidro do carro, sobressalto-me. Por um segundo, não sei quem será ou que desejará; mas logo depois, um fulgor de compreensão invade-me, ao recordar onde estou e o que me preparo para fazer.
Digo que não, não preciso de ajuda com a bagagem. O sorriso do rapaz perde intensidade mas não desaparece por completo; e na sua face, ainda imberbe mas já angustiada, percebo (reconheço) a decepção que já não dói por ser tão repetida, tão familiar, o encolher de ombros psicológico de quem já desistiu de acreditar, a inevitável e silenciosa resignação por, uma vez mais, ser considerado insignificante, negligenciável, incomodativo. Afasta-se, talvez exibindo um farrapo de sorriso de plástico.
Quando desaparece na porta, volto a recolher-me em mim; concentro-me, forço-me a agir. E num ímpeto, permitindo que o corpo sobressalte a minha própria alma, abro a porta e saio.
2.
Lá está o rapaz, em sentido, mãos atrás das costas, sorriso impecável. A pouca distância, o balcão; e por trás dele, a recepcionista; outro sorriso de plástico. E enquanto me aproximo, penso: é lindíssima; como se a sua beleza fosse relevante para a minha felicidade.
Boa tarde, boa tarde. Tem reserva?, não. Pretende ficar quantas noites?, uma.
Estende um impresso e uma caneta, mergulha no computador. O sorriso ainda não desapareceu. Preencho os dados que me são solicitados, letra após letra; depois, obrigo-me a erguer a cabeça e enfrentar a mulher. Que me encara: olhos brilhantes, sorriso perfeito. Pede o bilhete de identidade, compara os dados com os que acabei de escrever. E por um segundo, o sorriso desaparece. Adivinho porquê: pergunta-se por que motivo alguém aluga um quarto de hotel na própria cidade onde vive. Sinto-me incapaz de a encarar e é então que os meus olhos descem pelo seu corpo. Olho, aprecio, memorizo. Depois, regresso ao seu rosto: e lá está o sorriso. Pergunto-me: onde aprenderão a sorrir com tal perfeição?
Longa lengalenga: o pequeno-almoço é servido às e temos health club e a piscina pode ser e o bar abre. Não ouço o que diz: concentro-me apenas no movimento dos seus lábios; abstraio-me do que me rodeia, desligo o som. Apenas me interessam aqueles lábios, movendo-se e movendo-se e movendo-se. Sei que mais tarde, envolto no escuro, evocarei este momento; e então, memória e fantasia mesclar-se-ão numa simbiose perfeita; fecharei os olhos: e os seus lábios continuarão a mover-se, envolvendo não palavras mas partes do meu corpo.
3.
É o ruído seco da chave a embater no balcão que me devolve à realidade. Sobressalto; algum embaraço; quase vergonha; e decepção. Recolho a chave, o bilhete de identidade. O rapaz está a abrir-me a porta do elevador; pergunto-me se me acompanhará; e antevejo o terror de estar trancado num elevador com um desconhecido de sorriso permanente. Digo obrigado e encolho-me num canto do elevador, à espera. Mas ele fecha a porta com suavidade e com suavidade o elevador sobe.
Caminho pelo corredor, explorando as portas. Encontro, abro, entro.
Quarto simpático. Infinitamente desumano, hermeticamente fechado a qualquer resquício de presença humana. Fecho a porta, dou uns passos, sento-me na beira da cama. Pergunto-me: e agora?
4.
Poderia encher a banheira de água quente e deixar-me anestesiar pelo conforto tépido de uma placenta improvisada. Depois, o tempo passaria devagarinho, irrelevante; poderia masturbar-me lentamente, acariciando-me com cuidado, sentindo o prazer de me poder tocar sem enfrentar o receio de uma possível intromissão, sem sentir culpa nem vergonha. Olharia o meu pénis semi-erecto e não me custaria imaginar os lábios da recepcionista sorridente a envolvê-lo, engoli-lo com alguma voracidade, com alguma indiferença; depois, fecharia os olhos e concentrar-me-ia em fantasiar o seu corpo, a suavidade da sua pele, o secretismo do seu cheiro. Ejacularia, por fim. E o pénis murcharia de imediato, pequenos farrapos brancos de esperma flutuariam pela água; sentiria nojo e repulsa, um desagradável embaraço; e culpa. Levantar-me-ia com gestos deselegantes e apressados, sairia da banheira; aguardaria que a água escorresse, pegaria um bocado de esperma teimoso, que a água não teria arrastado consigo, com papel higiénico.
Teriam passado alguns minutos, talvez meia hora; mas continuaria precisamente como antes: e agora?
5.
Fumo lentamente, cigarro após cigarro, permitindo que a cinza caia no chão, formando montículos na alcatifa; sinto um desprezível prazer por ter a certeza que não surgirás, de um momento para o outro, erguendo obsessivamente o teu aspiradorzito portátil, decidida a eliminar as provas da minha presença, da minha existência, numa acusação silenciosa e cobarde. Não: aqui, estou seguro.
Olho pela janela; e lá longe, à distância de um grito, o nosso prédio, a nossa varanda, a nossa janela: e tu na nossa cama, talvez a dormir. Apenas umas ruas, uns prémios a separar-nos; contudo: tudo a separar-nos.
Sim, talvez durmas. Não fazes ideia onde estou; e, afinal, tão próximo: como se te preparasse uma emboscada, ou tentasse proteger-me de ti. Amanhã, talvez confesse que passei a noite aqui, perto, pertinho, quase contigo; e aproveitarei para explicar que vim passar a noite num hotel porque não tive coragem de te encarar e dizer-te que não te amo, já não te amo, nem sei se alguma vez te amei; dizer-te, também, que não tenho, não consigo ter, paciência para te olhar, para te ouvir, que já não consigo suportar o teu cheiro, que me arrepia a perspectiva de ter de te tocar; dizer-te que temos de nos separar imediatamente porque, caso contrário, sou capaz de começar a odiar-te.
A noite arrasta-se, a escuridão do quarto de hotel conforta-me; luzes que apagam aqui e ali, carros que vão passando; tu a tentar adormecer, aí; risos distantes, embriagados; gente feliz, algures; eu a tentar acumular coragem, a fantasiar o que te diria se tivesse coragem. A noite a arrastar-se, interminável. E a cinza: acumulando-se no chão.
6.
Apenas as explosões de cor que chegam da televisão iluminam a minha noite; e sinto um estranho conforto por fazer parte da escuridão, do silêncio; como se fosse parte da inexistência, apenas um pedaço de nada. Por vezes, consigo descobrir uma estrela entre as camadas de nuvens escuras, pequenos pontos brilhantes insurgindo-se contra o poderio do negrume, do vazio, do esquecimento. Brilham por um instante; e desaparecem.
Já não tenho cigarros.
Olho a janela escura do nosso quarto, lá longe. E imagino-me deitado na minha cama, a olhar as janelas do hotel, esta mesma janela; imagino-me a imaginar: homens e mulheres, troca de prazeres, vidas secretas. Imagino-me deitado na minha cama, envolto pela mediocridade da minha vida, pela escuridão da minha existência, a fantasiar o glamour da vida dos outros, das outras vidas, de todas as vidas excepto da minha; e enquanto acaricio o cabelo com as mãos (gestos automáticos, robóticos: sem sentido nem objectivo), recapitulo os devaneios a que me entreguei nalgumas noites de insónia, acompanhado pelo monótono estertor da tua respiração, aprendendo a suportar o teu ressonar discreto, o contacto permanente da tua pele quente, as cócegas dos teus cabelos demasiado longos no meu pescoço.
Agora e aqui, revivo todas as noites em que me imaginei num quarto deste hotel, protegido por este vidro descaracterizador: um outro eu. Recordo como me reconstruía, detalhe após detalhe; e renascia neste quarto, neste exacto quarto que tão bem conhecia apesar de nunca o ter visitado, acompanhado por uma qualquer mulher sem rosto mas de corpo muito concreto (e voz profunda e riso gutural); adormecia enquanto aperfeiçoava os pormenores desse corpo e acordava pouco depois, encharcado de esperma, desconfortável e culpado; acordava: mas não me movia, para não perturbar o discreto ressonar que ainda me ligava à realidade, à sanidade; e esperava que a noite percorresse o seu lento caminho, levando-me consigo.
Hoje, estou finalmente deste lado da janela; e nada melhorou.
7.
Por vezes, sinto que sou transparente. Sinto que não tenho pele a envolver o meu corpo nem carne a proteger a minha alma; talvez seja de vidro, apenas vidro. Transparente: olhem-me e conhecer-me-ão.
E incomoda-me esta consciencialização de fragilidade e transparência. Por exemplo, agora: desço no elevador, caminho pela recepção, encosto-me ao balcão; e temo que todos estes olhares predadores trespassem o vidro que protege a minha essência e partilhem das minhas vergonhas. Não consigo erguer o olhar e enfrentar o mundo, nem o alívio de saber que a recepcionista de serviço não é a mesma das minhas fantasias suaviza o meu martírio. Pago e quase corro, quase tropeço. Fujo.
O mesmo rapaz de ontem abre-me a porta. E sorri.
8.
Dou despropositadas voltas ao bairro, em busca de um lugar para estacionar o carro; depois desisto, deixo-o no parque subterrâneo do centro comercial. Caminho a pé, protegendo-me do olhar de quem por mim passa, escondendo-me. Já decidi que talvez conte tudo: não te amo, quero acabar com isto, não me perguntes porquê, blá blá blá e mais blá. O sol bate-me na cabeça, torna-se incomodativo. Pergunto-me se chorarás. Talvez te diga: mas não vês que sou um homem de vidro, que sou transparente, que basta olhares para dentro de mim e perceberes o quanto não te amo?
Caminho, lento, quase paro. Pergunto-me: mas haverá necessidade de ser cruel? De certo que não, respondo-me. Ensaio: olha, não sei como explicar, não sou capaz, nem sequer vou tentar. Pedirei desculpa. Direi, como diz a gente de plástico dos filmes americanos: fiquemos amigos. E imagino o teu olhar baço, assustado, indignado. Sinto um arrepio. Apresso o passo. Vontade de acabar com isto.
Pergunto-me: se cair, partir-me-ei?
9.
O coração bate depressa, ansioso ou assustado, sei lá. Tento pensar em banalidades: conta do telemóvel para pagar, consulta no cardiologista na sexta-feira, o carro a precisar de pneus novos, há tantos meses que não vou ao cinema. Coisas assim. E depois: lá está o prédio.
E o meu coração: também será de vidro? Entro e pergunto-me: que dirás quando me vires, acusar-me-ás de quê, estarás infinitamente chateada ou apenas indiferente? Já se vê.
10.
Ensaio: olha, queria dizer-te uma coisa, desculpa ser assim tão de repente.
Abro a porta: e logo te vejo; sorris. Poderias invectivar-me, gritar, bater e arrancar-me cabelos (vê-se tanto, nas telenovelas), poderias dizer uma banalidade do género mas quem pensas que és, para me tratares assim? Poderias ter reagido com indignação, humilhar-me, desprezar-me. Mas não, nada disso; simplesmente, sorris: não sei porquê, para quê. E perante esse inesperado sorriso, perante esse inequívoco testemunho de amor e perdão, ou de desespero e solidão, tudo o que sou capaz de balbuciar é: olha, queria dizer-te uma coisa; tive saudades tuas. É tudo o que consigo dizer: uma mentira.
Jamais seria possível dizer qualquer outra coisa. Jamais será.
11.
Troco de roupa enquanto te ouço, sem fazer ideia de que falas.
Saio até à varanda e olho. Lá está a janela do hotel: onde sempre esteve, onde sempre estará. Do interior do quarto, vem o zumbido da voz; zumbindo e zumbindo e zumbindo. Lá de baixo, o zumbido do trânsito. Misturam-se, os zumbidos: já não os consigo distinguir. Penso: quando falas, pareces um automóvel com o cano de escape roto. Rio por um momento, sentindo-me desprezível; depois reduzo para um sorriso. Quando sinto que o rosto voltou ao seu estado natural de rigidez e apatia, volto para dentro. Sento-me no sofá e acendo um cigarro.
A cinza vai caindo no chão.
Quando vejo o rosto do rapaz mesmo junto do vidro do carro, sobressalto-me. Por um segundo, não sei quem será ou que desejará; mas logo depois, um fulgor de compreensão invade-me, ao recordar onde estou e o que me preparo para fazer.
Digo que não, não preciso de ajuda com a bagagem. O sorriso do rapaz perde intensidade mas não desaparece por completo; e na sua face, ainda imberbe mas já angustiada, percebo (reconheço) a decepção que já não dói por ser tão repetida, tão familiar, o encolher de ombros psicológico de quem já desistiu de acreditar, a inevitável e silenciosa resignação por, uma vez mais, ser considerado insignificante, negligenciável, incomodativo. Afasta-se, talvez exibindo um farrapo de sorriso de plástico.
Quando desaparece na porta, volto a recolher-me em mim; concentro-me, forço-me a agir. E num ímpeto, permitindo que o corpo sobressalte a minha própria alma, abro a porta e saio.
2.
Lá está o rapaz, em sentido, mãos atrás das costas, sorriso impecável. A pouca distância, o balcão; e por trás dele, a recepcionista; outro sorriso de plástico. E enquanto me aproximo, penso: é lindíssima; como se a sua beleza fosse relevante para a minha felicidade.
Boa tarde, boa tarde. Tem reserva?, não. Pretende ficar quantas noites?, uma.
Estende um impresso e uma caneta, mergulha no computador. O sorriso ainda não desapareceu. Preencho os dados que me são solicitados, letra após letra; depois, obrigo-me a erguer a cabeça e enfrentar a mulher. Que me encara: olhos brilhantes, sorriso perfeito. Pede o bilhete de identidade, compara os dados com os que acabei de escrever. E por um segundo, o sorriso desaparece. Adivinho porquê: pergunta-se por que motivo alguém aluga um quarto de hotel na própria cidade onde vive. Sinto-me incapaz de a encarar e é então que os meus olhos descem pelo seu corpo. Olho, aprecio, memorizo. Depois, regresso ao seu rosto: e lá está o sorriso. Pergunto-me: onde aprenderão a sorrir com tal perfeição?
Longa lengalenga: o pequeno-almoço é servido às e temos health club e a piscina pode ser e o bar abre. Não ouço o que diz: concentro-me apenas no movimento dos seus lábios; abstraio-me do que me rodeia, desligo o som. Apenas me interessam aqueles lábios, movendo-se e movendo-se e movendo-se. Sei que mais tarde, envolto no escuro, evocarei este momento; e então, memória e fantasia mesclar-se-ão numa simbiose perfeita; fecharei os olhos: e os seus lábios continuarão a mover-se, envolvendo não palavras mas partes do meu corpo.
3.
É o ruído seco da chave a embater no balcão que me devolve à realidade. Sobressalto; algum embaraço; quase vergonha; e decepção. Recolho a chave, o bilhete de identidade. O rapaz está a abrir-me a porta do elevador; pergunto-me se me acompanhará; e antevejo o terror de estar trancado num elevador com um desconhecido de sorriso permanente. Digo obrigado e encolho-me num canto do elevador, à espera. Mas ele fecha a porta com suavidade e com suavidade o elevador sobe.
Caminho pelo corredor, explorando as portas. Encontro, abro, entro.
Quarto simpático. Infinitamente desumano, hermeticamente fechado a qualquer resquício de presença humana. Fecho a porta, dou uns passos, sento-me na beira da cama. Pergunto-me: e agora?
4.
Poderia encher a banheira de água quente e deixar-me anestesiar pelo conforto tépido de uma placenta improvisada. Depois, o tempo passaria devagarinho, irrelevante; poderia masturbar-me lentamente, acariciando-me com cuidado, sentindo o prazer de me poder tocar sem enfrentar o receio de uma possível intromissão, sem sentir culpa nem vergonha. Olharia o meu pénis semi-erecto e não me custaria imaginar os lábios da recepcionista sorridente a envolvê-lo, engoli-lo com alguma voracidade, com alguma indiferença; depois, fecharia os olhos e concentrar-me-ia em fantasiar o seu corpo, a suavidade da sua pele, o secretismo do seu cheiro. Ejacularia, por fim. E o pénis murcharia de imediato, pequenos farrapos brancos de esperma flutuariam pela água; sentiria nojo e repulsa, um desagradável embaraço; e culpa. Levantar-me-ia com gestos deselegantes e apressados, sairia da banheira; aguardaria que a água escorresse, pegaria um bocado de esperma teimoso, que a água não teria arrastado consigo, com papel higiénico.
Teriam passado alguns minutos, talvez meia hora; mas continuaria precisamente como antes: e agora?
5.
Fumo lentamente, cigarro após cigarro, permitindo que a cinza caia no chão, formando montículos na alcatifa; sinto um desprezível prazer por ter a certeza que não surgirás, de um momento para o outro, erguendo obsessivamente o teu aspiradorzito portátil, decidida a eliminar as provas da minha presença, da minha existência, numa acusação silenciosa e cobarde. Não: aqui, estou seguro.
Olho pela janela; e lá longe, à distância de um grito, o nosso prédio, a nossa varanda, a nossa janela: e tu na nossa cama, talvez a dormir. Apenas umas ruas, uns prémios a separar-nos; contudo: tudo a separar-nos.
Sim, talvez durmas. Não fazes ideia onde estou; e, afinal, tão próximo: como se te preparasse uma emboscada, ou tentasse proteger-me de ti. Amanhã, talvez confesse que passei a noite aqui, perto, pertinho, quase contigo; e aproveitarei para explicar que vim passar a noite num hotel porque não tive coragem de te encarar e dizer-te que não te amo, já não te amo, nem sei se alguma vez te amei; dizer-te, também, que não tenho, não consigo ter, paciência para te olhar, para te ouvir, que já não consigo suportar o teu cheiro, que me arrepia a perspectiva de ter de te tocar; dizer-te que temos de nos separar imediatamente porque, caso contrário, sou capaz de começar a odiar-te.
A noite arrasta-se, a escuridão do quarto de hotel conforta-me; luzes que apagam aqui e ali, carros que vão passando; tu a tentar adormecer, aí; risos distantes, embriagados; gente feliz, algures; eu a tentar acumular coragem, a fantasiar o que te diria se tivesse coragem. A noite a arrastar-se, interminável. E a cinza: acumulando-se no chão.
6.
Apenas as explosões de cor que chegam da televisão iluminam a minha noite; e sinto um estranho conforto por fazer parte da escuridão, do silêncio; como se fosse parte da inexistência, apenas um pedaço de nada. Por vezes, consigo descobrir uma estrela entre as camadas de nuvens escuras, pequenos pontos brilhantes insurgindo-se contra o poderio do negrume, do vazio, do esquecimento. Brilham por um instante; e desaparecem.
Já não tenho cigarros.
Olho a janela escura do nosso quarto, lá longe. E imagino-me deitado na minha cama, a olhar as janelas do hotel, esta mesma janela; imagino-me a imaginar: homens e mulheres, troca de prazeres, vidas secretas. Imagino-me deitado na minha cama, envolto pela mediocridade da minha vida, pela escuridão da minha existência, a fantasiar o glamour da vida dos outros, das outras vidas, de todas as vidas excepto da minha; e enquanto acaricio o cabelo com as mãos (gestos automáticos, robóticos: sem sentido nem objectivo), recapitulo os devaneios a que me entreguei nalgumas noites de insónia, acompanhado pelo monótono estertor da tua respiração, aprendendo a suportar o teu ressonar discreto, o contacto permanente da tua pele quente, as cócegas dos teus cabelos demasiado longos no meu pescoço.
Agora e aqui, revivo todas as noites em que me imaginei num quarto deste hotel, protegido por este vidro descaracterizador: um outro eu. Recordo como me reconstruía, detalhe após detalhe; e renascia neste quarto, neste exacto quarto que tão bem conhecia apesar de nunca o ter visitado, acompanhado por uma qualquer mulher sem rosto mas de corpo muito concreto (e voz profunda e riso gutural); adormecia enquanto aperfeiçoava os pormenores desse corpo e acordava pouco depois, encharcado de esperma, desconfortável e culpado; acordava: mas não me movia, para não perturbar o discreto ressonar que ainda me ligava à realidade, à sanidade; e esperava que a noite percorresse o seu lento caminho, levando-me consigo.
Hoje, estou finalmente deste lado da janela; e nada melhorou.
7.
Por vezes, sinto que sou transparente. Sinto que não tenho pele a envolver o meu corpo nem carne a proteger a minha alma; talvez seja de vidro, apenas vidro. Transparente: olhem-me e conhecer-me-ão.
E incomoda-me esta consciencialização de fragilidade e transparência. Por exemplo, agora: desço no elevador, caminho pela recepção, encosto-me ao balcão; e temo que todos estes olhares predadores trespassem o vidro que protege a minha essência e partilhem das minhas vergonhas. Não consigo erguer o olhar e enfrentar o mundo, nem o alívio de saber que a recepcionista de serviço não é a mesma das minhas fantasias suaviza o meu martírio. Pago e quase corro, quase tropeço. Fujo.
O mesmo rapaz de ontem abre-me a porta. E sorri.
8.
Dou despropositadas voltas ao bairro, em busca de um lugar para estacionar o carro; depois desisto, deixo-o no parque subterrâneo do centro comercial. Caminho a pé, protegendo-me do olhar de quem por mim passa, escondendo-me. Já decidi que talvez conte tudo: não te amo, quero acabar com isto, não me perguntes porquê, blá blá blá e mais blá. O sol bate-me na cabeça, torna-se incomodativo. Pergunto-me se chorarás. Talvez te diga: mas não vês que sou um homem de vidro, que sou transparente, que basta olhares para dentro de mim e perceberes o quanto não te amo?
Caminho, lento, quase paro. Pergunto-me: mas haverá necessidade de ser cruel? De certo que não, respondo-me. Ensaio: olha, não sei como explicar, não sou capaz, nem sequer vou tentar. Pedirei desculpa. Direi, como diz a gente de plástico dos filmes americanos: fiquemos amigos. E imagino o teu olhar baço, assustado, indignado. Sinto um arrepio. Apresso o passo. Vontade de acabar com isto.
Pergunto-me: se cair, partir-me-ei?
9.
O coração bate depressa, ansioso ou assustado, sei lá. Tento pensar em banalidades: conta do telemóvel para pagar, consulta no cardiologista na sexta-feira, o carro a precisar de pneus novos, há tantos meses que não vou ao cinema. Coisas assim. E depois: lá está o prédio.
E o meu coração: também será de vidro? Entro e pergunto-me: que dirás quando me vires, acusar-me-ás de quê, estarás infinitamente chateada ou apenas indiferente? Já se vê.
10.
Ensaio: olha, queria dizer-te uma coisa, desculpa ser assim tão de repente.
Abro a porta: e logo te vejo; sorris. Poderias invectivar-me, gritar, bater e arrancar-me cabelos (vê-se tanto, nas telenovelas), poderias dizer uma banalidade do género mas quem pensas que és, para me tratares assim? Poderias ter reagido com indignação, humilhar-me, desprezar-me. Mas não, nada disso; simplesmente, sorris: não sei porquê, para quê. E perante esse inesperado sorriso, perante esse inequívoco testemunho de amor e perdão, ou de desespero e solidão, tudo o que sou capaz de balbuciar é: olha, queria dizer-te uma coisa; tive saudades tuas. É tudo o que consigo dizer: uma mentira.
Jamais seria possível dizer qualquer outra coisa. Jamais será.
11.
Troco de roupa enquanto te ouço, sem fazer ideia de que falas.
Saio até à varanda e olho. Lá está a janela do hotel: onde sempre esteve, onde sempre estará. Do interior do quarto, vem o zumbido da voz; zumbindo e zumbindo e zumbindo. Lá de baixo, o zumbido do trânsito. Misturam-se, os zumbidos: já não os consigo distinguir. Penso: quando falas, pareces um automóvel com o cano de escape roto. Rio por um momento, sentindo-me desprezível; depois reduzo para um sorriso. Quando sinto que o rosto voltou ao seu estado natural de rigidez e apatia, volto para dentro. Sento-me no sofá e acendo um cigarro.
A cinza vai caindo no chão.