BARMAN (olhando o CLIENTE, enquanto esfrega um copo com gestos desnecessariamente cuidadosos): E então lá estamos todos caladinhos, a olhar para a frente, com medo não sei de quê, com vergonha não sei de quê. (Pausa breve.) Os autocarros são lugares estranhos, não são? As pessoas estão ali tão próximas umas das outras mas são incapazes de, sei lá, interagirem. Todos a fazerem uma espécie de intervalo nas suas vidas, sempre à espera de qualquer coisa, de chegarem ao seu destino, ou de fugirem lá do sítio de onde querem fugir.
CLIENTE (evitando o olhar do BARMAN): Não entro num autocarro há uns vinte anos, ou mais.
BARMAN: A sério? Tem sorte, que assim não se cruza com todos estes mortos-vivos, com esta gente adiada. (Pausa; arruma o copo com gestos cuidados e pega noutro, que começa a esfregar.) Mas é fodido, não é? Parece mesmo que andamos todos à procura de algo ou a fugir de algo. Não há hipótese, ou é uma coisa ou é a outra. Nunca estamos contentes, não conseguimos sentarmo-nos quietinhos e saborear o momento.
(Longa pausa. O CLIENTE permanece alheado. O BARMAN prossegue a limpeza dos copos, muito devagarinho, como se temesse que se lhe acabassem os copos.)
BARMAN (tentando parecer entusiasmado): Bom, lá íamos no autocarro, a chuva a bater nas janelas, tudo cinzento lá fora. Estava sentado ao lado duma mulher ainda nova, uns trintas ou coisa assim. Um perfume do caraças, enjoativo. Quietinha, com as mãos em cima dos joelhos, sempre a olhar lá para fora. (Pausa breve.) Tento sentar-me sempre ao lado de mulheres porque às vezes, sabe como é, há toques involuntários, nas curvas e assim. E não gosto de ser tocado por homens, por aqueles velhos meio mortos que andam sempre nos autocarros ou pelos garotos dos liceus.
CLIENTE (monocórdico, como se contrariado): Mas se for uma mulher, já não faz mal…
BARMAN (rindo): Não me queixo. Mas esta de hoje estava lá congelada no canto dela, protegida pela nuvem de perfume. E eu a perguntar-me: porque raio andam sempre as pessoas tão tristes? (Pausa breve.) Já reparou?, anda sempre tudo de rosto fechado, como se o mundo estivesse para acabar.
CLIENTE (com ligeira agressividade): E você? Está sempre alegre?
BARMAN (olhando o copo com atenção desnecessária): Estar, não estou. Mas esforço-me um bocadinho, só um bocadinho, percebe?, para não andar sempre com peninha de mim. (Pausa breve.) É que me chateia a maneira como as pessoas andam sempre com este olhar acusador, como se toda a gente, todo o mundo, fosse responsável pelas suas misérias. (Pausa breve.) Chateia-me mesmo.
(Longa pausa. O BARMAN pega um dos copos já limpos e compara-o ao que tem nas mãos; depois de olhar, arruma-os cuidadosamente. Fica um momento indeciso. O CLIENTE bebe um gole breve do copo que tem à sua frente; pousa-o mas não o larga. O BARMAN pega um novo copo e esfrega-o.)
CLIENTE: Então e depois, que fez a mulher?
BARMAN (olhando o CLIENTE, sem rancor): Sabe o que fez? Começou a chorar. (Riso, um pouco forçado.) Em silêncio, não se ouvia nada. Mas eu, bom… De vez enquando espreitava-lhe as pernas, tinha uns joelhos muito bem feitos, moldados pelas calças de ganga justas, e eu olhava, do mesmo modo que olhava para a careca do homem que ia à minha frente ou para o ténis roto de uma rapariga que estava lá na outra fila. (Pausa breve.) Tudo serve para um gajo se distrair, não é?
(BARMAN pára de esfregar o copo, fica pensativo.)
BARMAN: Havia qualquer coisa nas mãos dela, que me chamou a atenção. Tinha-as ali no colo, muito quietinhas, como se não soubesse o que lhes fazer. Bonitas, dedos muito compridos. Unhas bem tratadas. Mas depois começou a apertá-las, a mexer os dedos. Como se lhe estivesse a doer qualquer coisa, sabe como é. (Pausa breve.) E então pus-me a olhar pela janela e depois, como se fosse por acidente, espreitei-lhe o rosto.
CLIENTE (ligeiramente alheado): Já me perguntei muitas vezes isso: porque temos tanto medo de olhar o rosto dos desconhecidos?
(O BARMAN acena com a cabeça. Volta a esfregar o seu copo. Breve silêncio.)
BARMAN: Podia ficar a olhá-la o tempo que quisesse, que a mulher estava muito longe, noutro mundo. Mas chorava a sério, lágrimas a escorrerem devagarinho pela face. E eu ali, atrapalhado. Pus-me a olhar para a rapariga dos ténis rotos, tentando não pensar nela, não me intrometer. Quietinho, a ver se não sobrava para mim.
CLIENTE: Às vezes, sinto isso. Vemos que alguém está atrapalhado e não nos aproximamos, tememos que aquilo seja contagioso, que nos afecte. Mas a verdade é que, lá no fundo, até sentimos uma pontinha de satisfação; ou, pelo menos, de alívio. Porque não é connosco. (Pausa breve.) É um pouco como se achássemos que o número de desgraças que poderão acontecer, no mundo, é limitado; e tudo o que acontecer aos outros, já não nos acontece a nós. Uma desgraça gasta, inofensiva. Uma que não nos fará mal, a nós.
(O CLIENTE bebe mais um gole. O BARMAN parou de esfregar o copo, olha o CLIENTE com alguma surpresa, talvez com apreensão. Pousa o copo e dá uns passos, pega uma garrafa e trá-la consigo; pega um dos copos que acabou de esfregar e enche-o. Bebe um gole. Fecha os olhos. Arrota muito ligeiramente. Abre os olhos, espreita o CLIENTE. Arruma a garrafa, bebe mais um gole. Pega no copo que antes estava a esfregar.)
BARMAN (sem olhar o CLIENTE): Estava eu ali, sem me mexer, como se fosse um garoto envergonhado, à espera que a mulher acabasse lá com a crise dela. Enjoado com o perfume, misturado com o cheiro do autocarro, com o cheiro daquela gente toda, e das pessoas que estiveram ali sentadas desde a última vez que o autocarro foi lavado, há três anos ou assim, e que deixaram um pedacinho de si, do seu cheiro. Tudo misturado. (Pausa breve.) E depois passou-me uma coisa pela cabeça, não sei.
(O BARMAN olha o CLIENTE, que o ignora. Ambos bebem dos seus copos, em simultâneo.)
BARMAN (aproximando-se um passo, diminuindo o volume da voz quase imperceptivelmente): Sabe o que fiz?
CLIENTE (curioso): Não.
BARMAN: Agarrei-lhe a mão.
(O CLIENTE sorri ligeiramente. O BARMAN está a esfregar o copo com uma energia inesperada.)
BARMAN: Agarrei-lhe a mão, como o raio de um adolescente apaixonado.
CLIENTE: E ela?
BARMAN: Apertou-me os dedos com força. E ali ficámos muito tempo, a olhar em frente, rígidos. O autocarro aos solavancos, para aqui e para ali; pessoas a saírem, pessoas a entrarem. E nós de mãos dadas, em silêncio.
(Ouve-se o ruído longínquo de uma sirene, que se vai aproximando. Os dois homens estão em silêncio, distantes. O BARMAN esfrega o copo, de novo com gestos lentos e olha para a rua; o CLIENTE olha para o seu copo, que está vazio. O ruído da sirene foi-se aproximando e agora volta a afastar-se, lentamente.)
BARMAN: Finalmente, o aperto dela começou a suavizar um pouco, tornou-se menos agressivo, menos desesperado. Um pouco depois, deixou de me pegar. E durante uns instantes fiquei ali com a mão dela na minha, completamente inerte, morta. (Pausa breve.) Larguei-a, suavemente. Um bocado depois, o autocarro pára e ela levanta-se. Encolho-me, para a deixar passar mas as nossas pernas esfregam-se, inevitavelmente. (Pausa breve.) Gosto muito destes toques acidentais, entre estranhos. Há algo de sensual, talvez por causa da possibilidade latente, não sei; excita-me imaginar até onde poderia conduzir aquele toque, fantasiar que não foi algo acidental mas uma carícia disfarçada, inconsciente, um convite. (Pausa breve.) Mas neste caso foi um pouco desagradável. Não sei explicar, como um casal de divorciados que se encontram e se beijam da face, porque tem que ser. Desconfortável.
(O BARMAN olha o CLIENTE, como se buscasse a sua cumplicidade, a sua concordância. Dá uns passos, pega uma garrafa e aproxima-se dele. Enche o seu copo, muito devagar. O CLIENTE olha o líquido, que não solicitou. O BARMAN afasta-se, arruma a garrafa.)
BARMAN (num tom triste): Não me olhou, uma única vez. (Sorri.)
CLIENTE (após um momento de silêncio): Se pensarmos nisso, não percebemos bem porquê mas a verdade é que temos medo dos outros, dos desconhecidos. Não arriscamos tomar iniciativas, talvez por receio de não sermos correspondidos, ou simplesmente de sermos mal interpretados. Porque se estamos a iniciar algo o outro pode pensar que estamos a pedir qualquer coisa, não é? E, portanto, estamos a revelar fraqueza de dois modos: denunciamos que há algo que nos faz falta e colocamo-nos na desconfortável posição de podermos ser recusados. (Pausa breve.) Por vezes, penso, acho que todos pensamos, que a felicidade pode depender de uma simples palavra, de um gesto. Um olhar que arriscamos e que pode mudar a nossa vida por completo.
(O CLIENTE bebe um gole prolongado do seu copo, pousa-o com um ruído seco e desagradável. O BARMAN está a olhar para o copo do CLIENTE, distraído, com as mãos vazias.)
CLIENTE (com um sorriso vago, quase imperceptível): Mas recusamo-nos a acreditar que possa ser assim tão simples, tão banal, tão descomplicado.
BARMAN (pegando um dos seus copos): Estamos a proteger-nos.
CLIENTE: É isso, pior não se fica. Para quê arriscar?
(O CLIENTE brinca com o copo, entorna umas gotas no balcão. O BARMAN passa com o seu pano dos copos pelo balcão molhado, com gestos muito lentos.)
BARMAN (olhando o CLIENTE, num tom quase desafiante): Bom, mas hoje tomei a iniciativa. Peguei a mão de uma mulher desconhecida e amparei-a num momento difícil. Ela não correspondeu, nem sequer agradeceu. Nada. (Pausa breve.) Mas, e se tivesse olhado? Se sorrisse? Se me perguntasse o nome? (Pausa breve.) É simples, sim. Mas nunca resulta.
(O CLIENTE sorri.)
CLIENTE (evitando o olhar do BARMAN): Não entro num autocarro há uns vinte anos, ou mais.
BARMAN: A sério? Tem sorte, que assim não se cruza com todos estes mortos-vivos, com esta gente adiada. (Pausa; arruma o copo com gestos cuidados e pega noutro, que começa a esfregar.) Mas é fodido, não é? Parece mesmo que andamos todos à procura de algo ou a fugir de algo. Não há hipótese, ou é uma coisa ou é a outra. Nunca estamos contentes, não conseguimos sentarmo-nos quietinhos e saborear o momento.
(Longa pausa. O CLIENTE permanece alheado. O BARMAN prossegue a limpeza dos copos, muito devagarinho, como se temesse que se lhe acabassem os copos.)
BARMAN (tentando parecer entusiasmado): Bom, lá íamos no autocarro, a chuva a bater nas janelas, tudo cinzento lá fora. Estava sentado ao lado duma mulher ainda nova, uns trintas ou coisa assim. Um perfume do caraças, enjoativo. Quietinha, com as mãos em cima dos joelhos, sempre a olhar lá para fora. (Pausa breve.) Tento sentar-me sempre ao lado de mulheres porque às vezes, sabe como é, há toques involuntários, nas curvas e assim. E não gosto de ser tocado por homens, por aqueles velhos meio mortos que andam sempre nos autocarros ou pelos garotos dos liceus.
CLIENTE (monocórdico, como se contrariado): Mas se for uma mulher, já não faz mal…
BARMAN (rindo): Não me queixo. Mas esta de hoje estava lá congelada no canto dela, protegida pela nuvem de perfume. E eu a perguntar-me: porque raio andam sempre as pessoas tão tristes? (Pausa breve.) Já reparou?, anda sempre tudo de rosto fechado, como se o mundo estivesse para acabar.
CLIENTE (com ligeira agressividade): E você? Está sempre alegre?
BARMAN (olhando o copo com atenção desnecessária): Estar, não estou. Mas esforço-me um bocadinho, só um bocadinho, percebe?, para não andar sempre com peninha de mim. (Pausa breve.) É que me chateia a maneira como as pessoas andam sempre com este olhar acusador, como se toda a gente, todo o mundo, fosse responsável pelas suas misérias. (Pausa breve.) Chateia-me mesmo.
(Longa pausa. O BARMAN pega um dos copos já limpos e compara-o ao que tem nas mãos; depois de olhar, arruma-os cuidadosamente. Fica um momento indeciso. O CLIENTE bebe um gole breve do copo que tem à sua frente; pousa-o mas não o larga. O BARMAN pega um novo copo e esfrega-o.)
CLIENTE: Então e depois, que fez a mulher?
BARMAN (olhando o CLIENTE, sem rancor): Sabe o que fez? Começou a chorar. (Riso, um pouco forçado.) Em silêncio, não se ouvia nada. Mas eu, bom… De vez enquando espreitava-lhe as pernas, tinha uns joelhos muito bem feitos, moldados pelas calças de ganga justas, e eu olhava, do mesmo modo que olhava para a careca do homem que ia à minha frente ou para o ténis roto de uma rapariga que estava lá na outra fila. (Pausa breve.) Tudo serve para um gajo se distrair, não é?
(BARMAN pára de esfregar o copo, fica pensativo.)
BARMAN: Havia qualquer coisa nas mãos dela, que me chamou a atenção. Tinha-as ali no colo, muito quietinhas, como se não soubesse o que lhes fazer. Bonitas, dedos muito compridos. Unhas bem tratadas. Mas depois começou a apertá-las, a mexer os dedos. Como se lhe estivesse a doer qualquer coisa, sabe como é. (Pausa breve.) E então pus-me a olhar pela janela e depois, como se fosse por acidente, espreitei-lhe o rosto.
CLIENTE (ligeiramente alheado): Já me perguntei muitas vezes isso: porque temos tanto medo de olhar o rosto dos desconhecidos?
(O BARMAN acena com a cabeça. Volta a esfregar o seu copo. Breve silêncio.)
BARMAN: Podia ficar a olhá-la o tempo que quisesse, que a mulher estava muito longe, noutro mundo. Mas chorava a sério, lágrimas a escorrerem devagarinho pela face. E eu ali, atrapalhado. Pus-me a olhar para a rapariga dos ténis rotos, tentando não pensar nela, não me intrometer. Quietinho, a ver se não sobrava para mim.
CLIENTE: Às vezes, sinto isso. Vemos que alguém está atrapalhado e não nos aproximamos, tememos que aquilo seja contagioso, que nos afecte. Mas a verdade é que, lá no fundo, até sentimos uma pontinha de satisfação; ou, pelo menos, de alívio. Porque não é connosco. (Pausa breve.) É um pouco como se achássemos que o número de desgraças que poderão acontecer, no mundo, é limitado; e tudo o que acontecer aos outros, já não nos acontece a nós. Uma desgraça gasta, inofensiva. Uma que não nos fará mal, a nós.
(O CLIENTE bebe mais um gole. O BARMAN parou de esfregar o copo, olha o CLIENTE com alguma surpresa, talvez com apreensão. Pousa o copo e dá uns passos, pega uma garrafa e trá-la consigo; pega um dos copos que acabou de esfregar e enche-o. Bebe um gole. Fecha os olhos. Arrota muito ligeiramente. Abre os olhos, espreita o CLIENTE. Arruma a garrafa, bebe mais um gole. Pega no copo que antes estava a esfregar.)
BARMAN (sem olhar o CLIENTE): Estava eu ali, sem me mexer, como se fosse um garoto envergonhado, à espera que a mulher acabasse lá com a crise dela. Enjoado com o perfume, misturado com o cheiro do autocarro, com o cheiro daquela gente toda, e das pessoas que estiveram ali sentadas desde a última vez que o autocarro foi lavado, há três anos ou assim, e que deixaram um pedacinho de si, do seu cheiro. Tudo misturado. (Pausa breve.) E depois passou-me uma coisa pela cabeça, não sei.
(O BARMAN olha o CLIENTE, que o ignora. Ambos bebem dos seus copos, em simultâneo.)
BARMAN (aproximando-se um passo, diminuindo o volume da voz quase imperceptivelmente): Sabe o que fiz?
CLIENTE (curioso): Não.
BARMAN: Agarrei-lhe a mão.
(O CLIENTE sorri ligeiramente. O BARMAN está a esfregar o copo com uma energia inesperada.)
BARMAN: Agarrei-lhe a mão, como o raio de um adolescente apaixonado.
CLIENTE: E ela?
BARMAN: Apertou-me os dedos com força. E ali ficámos muito tempo, a olhar em frente, rígidos. O autocarro aos solavancos, para aqui e para ali; pessoas a saírem, pessoas a entrarem. E nós de mãos dadas, em silêncio.
(Ouve-se o ruído longínquo de uma sirene, que se vai aproximando. Os dois homens estão em silêncio, distantes. O BARMAN esfrega o copo, de novo com gestos lentos e olha para a rua; o CLIENTE olha para o seu copo, que está vazio. O ruído da sirene foi-se aproximando e agora volta a afastar-se, lentamente.)
BARMAN: Finalmente, o aperto dela começou a suavizar um pouco, tornou-se menos agressivo, menos desesperado. Um pouco depois, deixou de me pegar. E durante uns instantes fiquei ali com a mão dela na minha, completamente inerte, morta. (Pausa breve.) Larguei-a, suavemente. Um bocado depois, o autocarro pára e ela levanta-se. Encolho-me, para a deixar passar mas as nossas pernas esfregam-se, inevitavelmente. (Pausa breve.) Gosto muito destes toques acidentais, entre estranhos. Há algo de sensual, talvez por causa da possibilidade latente, não sei; excita-me imaginar até onde poderia conduzir aquele toque, fantasiar que não foi algo acidental mas uma carícia disfarçada, inconsciente, um convite. (Pausa breve.) Mas neste caso foi um pouco desagradável. Não sei explicar, como um casal de divorciados que se encontram e se beijam da face, porque tem que ser. Desconfortável.
(O BARMAN olha o CLIENTE, como se buscasse a sua cumplicidade, a sua concordância. Dá uns passos, pega uma garrafa e aproxima-se dele. Enche o seu copo, muito devagar. O CLIENTE olha o líquido, que não solicitou. O BARMAN afasta-se, arruma a garrafa.)
BARMAN (num tom triste): Não me olhou, uma única vez. (Sorri.)
CLIENTE (após um momento de silêncio): Se pensarmos nisso, não percebemos bem porquê mas a verdade é que temos medo dos outros, dos desconhecidos. Não arriscamos tomar iniciativas, talvez por receio de não sermos correspondidos, ou simplesmente de sermos mal interpretados. Porque se estamos a iniciar algo o outro pode pensar que estamos a pedir qualquer coisa, não é? E, portanto, estamos a revelar fraqueza de dois modos: denunciamos que há algo que nos faz falta e colocamo-nos na desconfortável posição de podermos ser recusados. (Pausa breve.) Por vezes, penso, acho que todos pensamos, que a felicidade pode depender de uma simples palavra, de um gesto. Um olhar que arriscamos e que pode mudar a nossa vida por completo.
(O CLIENTE bebe um gole prolongado do seu copo, pousa-o com um ruído seco e desagradável. O BARMAN está a olhar para o copo do CLIENTE, distraído, com as mãos vazias.)
CLIENTE (com um sorriso vago, quase imperceptível): Mas recusamo-nos a acreditar que possa ser assim tão simples, tão banal, tão descomplicado.
BARMAN (pegando um dos seus copos): Estamos a proteger-nos.
CLIENTE: É isso, pior não se fica. Para quê arriscar?
(O CLIENTE brinca com o copo, entorna umas gotas no balcão. O BARMAN passa com o seu pano dos copos pelo balcão molhado, com gestos muito lentos.)
BARMAN (olhando o CLIENTE, num tom quase desafiante): Bom, mas hoje tomei a iniciativa. Peguei a mão de uma mulher desconhecida e amparei-a num momento difícil. Ela não correspondeu, nem sequer agradeceu. Nada. (Pausa breve.) Mas, e se tivesse olhado? Se sorrisse? Se me perguntasse o nome? (Pausa breve.) É simples, sim. Mas nunca resulta.
(O CLIENTE sorri.)