20 de Dezembro de 2005

A 20 de Dezembro de 2005 nasceu a Gaveta; poucos dias antes, o primeiro livro (Gastar Palavras) tinha sido apresentado pelo Pedro Rolo Duarte e pelo Jorge Listopad, ali à beirinha da lareira do Alinhavar; o nascimento do blogue foi planeado nessa mesma noite.
A primeira estória a surgir na Gaveta foi “O Perguntador”, um conto inspirado num quadro de Munch e que mais tarde seria integrado no segundo livro (Os Mundos Separados que Partilhamos). Recoloco-o agora na Gaveta, em nome da nostalgia (só um pouquinho, que já chega de fado) e como agradecimento aos fiéis que ainda se mantêm por perto, desde esse longínquo Dezembro. Obrigado.


O Perguntador

1.
Escondo-me por trás do jornal: como se estivesse perante uma ameaça, como se necessitasse de protecção. Mas não consigo deixar de olhar, de assistir ao seu desfile; caminha entre as mesas com indiferença, senta-se, pousa a enorme pasta; não olha para ninguém, para nada; um rapaz aproxima-se e ela faz o seu pedido sem o olhar; desdobra um jornal, começa a ler. Por vezes, passa a mão pelo cabelo. Lê com atenção, sorri, abana a cabeça, muda a página. Não repara que há um mundo à sua volta; não quer saber do mundo que está à sua volta.
É ela: a mulher por quem estou apaixonado há dez anos. Que não via há dez anos.

2.
Escurece.
O mar está tranquilo, empurrando as ondas com suavidade; ei-las, perante nós: chegam envergonhadas, hesitam durante um momento e deslizam de regresso ao oceano, deixando-nos apenas a memória do seu rumor, do seu suspiro. Mais ninguém na esplanada: só nós. Conversamos devagarinho; tu falas, com entusiasmo; eu tento concentrar-me no que dizes, tento acompanhar-te; tento parecer mais interessante do que realmente sou, cativar-te; invento-me, finjo um pouco; mas a nossa relação é desequilibrada: eu esforço-me para te seduzir, tu já me seduziste completamente. Vais falando e eu permito-me uma distracção: pergunto-me se perceberás o meu entusiasmo, preferindo ignorá-lo. Talvez. Por vezes, parece-me que brincas comigo, que me provocas, que insinuas. E depois recuas, rindo. Enfurecendo-me.
Vais falando mas não te ouço; vou imaginando qual será o sabor da tua pele.

3.
Pousou o jornal e concentra-se no chá. Pergunto-me se esperará alguém. Observo-a e percebo, com alguma surpresa, que apesar de não pensar nela há muito tempo, ainda a desejo, sempre a desejei. Vou reconhecendo os seus gestos, vou permitindo que as recordações cheguem e se instalem, perturbando-me. Vou fantasiando: o que poderia ter acontecido se a nossa amizade tivesse evoluído, se tivesse inventado a coragem necessária para lhe confessar que estava apaixonado, que a amava. Desvio o olhar, envergonhado, e passeio-o pelos rostos dos desconhecidos que me rodeiam, que me ignoram, que me desprezam (que talvez me amem, em silêncio; sabe-se lá); mas não resisto a regressar, permito que o meu olhar explore vagarosamente, com deleite, os seus cabelos, os seus ombros. E dou mais um passo: pergunto-me se me teria encorajado caso tivesse tido a coragem de lhe tocar o seio, numa daquelas noites escuras que passávamos na esplanada da praia.
O telemóvel toca, atende. Não sorri, fala pouco, abana a cabeça.
Espio os seus movimentos, as suas reacções; intrometo-me na sua existência, violo-a. E pergunto-me: o que teria sido diferente, se tivéssemos feito amor? Teríamos casado, construindo uma vida em conjunto que ainda hoje perduraria? Ou poderia ter sido um momento inconsequente e facilmente esquecível, apenas sexo, um acontecimento embaraçante, talvez constrangedor, algo que acabaria por nos afastar um do outro?
Pousa o telemóvel, pega no jornal. Lê. Muito tempo depois, sorri.
E eu insisto em sofrer, em aprofundar o delírio; o que teria sido preferível: deixar a amizade perecer lentamente, transformando-se em nada, ou ter feito amor – o que eu desejava e ela também, talvez – e, após saciarmos os corpos, afastarmo-nos, e esquecermo-nos? Pergunto-me: se tivéssemos feito amor, uma única vez que fosse, a sua recordação deixaria de me assombrar, poupando-me à perplexidade desta fantasia persistente e um pouco embaraçante, que durante anos me forçou a exorbitar nostalgias e destilar arrependimentos?
Pergunto-me. Sempre fui exímio a perguntar. Sempre fui dos que perguntam, nunca serei dos que agem.

4.
Agora, há mais gente na esplanada; pares de namorados, que segredam e riem, que se olham com fúria e ansiedade, com volúpia. Falas e eu escuto; olho em volta, distraio-me um pouco, regresso a ti. Por vezes, quando consigo reunir a coragem ou o atrevimento suficiente, permito que o meu olhar divague pelo teu corpo e espreite, durante um fragmento de instante, o teu peito; sob o tecido da camisola que vestes, noto o contorno dos mamilos, ligeiramente erectos, expostos e insinuantes, convidativos; culpa do vento fresco que chega do mar, certamente. Olho e sorvo, engulo; depois fujo, embaraçado. Pergunto-me como seria acariciar os teus seios, beijar os teus mamilos; pergunto-me como seria fazer amor contigo. E cerro os dentes, odiando a minha hesitação, o meu medo. Penso como seria fácil: bastaria prolongar o olhar o tempo suficiente até perceberes o brilho dos meus olhos; nem seria necessário falar, verbalizar o meu desejo; bastaria um certo olhar: e tu perceberias. Mas insisto em hesitar, em temer, em adiar.
Continuas a falar; sorrio, aceno com a cabeça. Sinto-me ligeiramente ausente, um pouco alheado, desligado do mundo, de mim mesmo: como aquela estranha amálgama de pânico e indiferença que se sente quando se adivinha um desmaio, quando se sabe que já nada o poderá suspender, quando se percebe a irreversibilidade. Admito que talvez não seja capaz, que não depende de mim. E, de certo modo, intuo que estou perante a minha última oportunidade: se não te falar esta noite, talvez não haja outra ocasião. Talvez desapareças para sempre da minha vida, deixando-me apenas a tua memória; e a dúvida: consigo imaginar-me daqui dez anos, arrependido e amargo, a perguntar-me como teria sido, se ao menos tivesse arriscado.
Felizmente, a noite será longa. Haverá tempo.

5.
Levanto-me e caminho. Passaram todos estes anos: o tempo necessário para reunir alguma coragem, alguma confiança, alguma indiferença. Passo mesmo à sua frente, com esperança que olhe, que me reconheça. Permitindo que seja ela, uma vez mais, a decidir, a tomar a iniciativa. Não tenho tempo para pensar no que faria no caso de ela não me olhar, não me reconhecer, não me chamar: porque ela olha-me, reconhece-me, chama-me.

6.
De repente, dizes: estou farta disto, vamos passear na praia.
Pergunto-me o que significará este convite, pergunto-me se estarás a tomar a iniciativa. Sigo-te, quase entusiasmado. Com medo.

7.
Afinal, é tão fácil. Conversamos freneticamente, com medo que o tempo passe, sem notarmos a sua passagem; rimos, nervosos e felizes; trocamos olhares, partilhamos saudades; quase sentimos o tempo regredir, o passado regressar. Falamos exclusivamente do que foi, não sentimos qualquer curiosidade em conhecer as nossas vidas actuais, em actualizar os nossos currículos pessoais; por enquanto. Fugimos para o passado e lá permanecemos, irredutíveis: como se ainda estivéssemos naquela praia, onde nos vimos pela última vez.
Retomando.

8.
Caminhámos, em silêncio, até às ondas e sentámo-nos na areia húmida e áspera. Pensei: agora, vais beijar-me.
Mas começas a chorar. Falas de desespero e vazio, de cansaço e medo, de morte; falas de ódio e raiva e fúria, de angústia e dúvida, de solidão. Falas muito e preciso de algum tempo até perceber o significado do que dizes, do que choras; não respondo porque não sei que dizer, porque sei que não te apetece ouvir. Pego a tua mão, que está gelada, e aperto-a. Calas-te e soluças, em silêncio. Um pensamento medonho ocorre-me: precisas apenas de alguém que te escute o choro, que te pegue a mão; não importa quem, calhou ser eu. Aperto com mais força e tu correspondes. Permanecemos assim muito tempo; sou incapaz de adivinhar os teus pensamentos, de sentir a tua dor. Não partilhaste nada comigo, não me revelaste a tua alma; confessaste apenas um desânimo profundo e virulento mas passageiro, um desânimo comum a todos os Homens, o desânimo de viver e não perceber para quê. Sinto frio e desconforto, cansaço. Aguardo. Já respiras com mais calma.
Levantas-te e aguardas que me erga, olhando-me com afeição e ternura; depois, abraças-me, aconchegando o teu corpo no meu. Sinto os teus seios comprimirem-se contra o meu peito e fecho os olhos, espero, sinto; sabendo que nunca voltarei a estar tão próximo. Penso: agora, sou eu que tenho vontade de chorar.
Regressamos, apressados. Em silêncio.
Lembras-te?

9.
Inesperadamente, diz: vem comigo, a minha casa.
Saímos à rua, rindo alto; e logo regressamos, envergonhados: esquecemo-nos de pagar a conta; como um par de adolescentes, tolos.
Separamo-nos com um sorriso, continuamos em carros separados; tudo isto me parece tão estranho e apressado que nem tenho tempo para analisar o que está a acontecer, para antever o que se seguirá; não tenho tempo, nem vontade, para fantasiar, para antecipar; ou para temer. Porque já estamos no elevador do seu prédio; sinto o seu cheiro, recordo-o. Apetece-me abraçá-la; mas aguardo.
Abre a porta, entramos. Um garoto aparece a correr, saído das entranhas do apartamento; depois, uma menina muito pequenina, sorridente, tímida; finalmente, o marido. Apresenta-me a todos, com um sorriso inocente e sincero, com um sorriso feliz.
Desvio o olhar do seu rosto, estendo a mão ao marido. E sorrio.