ELE: Juro que não percebo o fascínio dela pela merda das telenovelas. Com a tua mulher é igual?
EU: Nem por isso.
ELE: Pois com a minha é sagrado; chega àquela hora e o mundo desliga, deixa de girar. Nada mais interessa, nada conta; é impossível tirá-la de perto da televisão, fazê-la sair de casa. Não sei se estás a ver.
EU: Estou.
ELE: E aquilo mói, sabes? É uma coisa que se põe entre nós, um muro intransponível. Podíamos estar a fazer montes de coisas, sei lá… Podíamos ver outra treta qualquer na televisão, um filme ou assim… ou podíamos beber um copo e conversar sobre o futuro e sobre ter filhos e sobre os amigos que se foram divorciando, podíamos ir para a varanda fumar enquanto contávamos estrelas, podíamos foder um bocado, podíamos ir a um bar ou ao teatro ou visitar uns amigos, podíamos fazer qualquer coisa juntos. Mas não, enquanto aquela merda dura, não há hipótese, não se mexe dali. Parece-te normal?
EU: Acho que sim.
ELE: A sério?
EU: Já pensaste fazer-lhe companhia?
ELE: A ver a telenovela? Estás a gozar comigo ou quê?
EU: Os casais estão sempre a desafiarem-se silenciosamente, a envolverem-se em duelos patetas. Uma espécie de luta não assumida pela liderança, pela supremacia; ou pela subsistência de alguma individualidade.
ELE: Grande tanga.
EU: A vida matrimonial é uma grande tanga. Até aposto que sei como são as coisas, lá em casa. Tu a ver se ela se farta das telenovelas e te faz a vontade, ela a ver se tu lhe fazes companhia nem que seja só uma noite; e se ninguém cede, apesar de serem cedências muito simples, a coisa vai-se arrastado, há-de chegar o momento em que um ou outro acaba por se desinteressar do que o outro faz ou deixa de fazer.
ELE: Que raio de conversa, tiraste um curso de psicólogo por correspondência ou quê?
EU: Olha lá, qual é que te parece o motivo dela, para ver telenovelas?
ELE: Isso gostava eu de perceber. Aquilo parece tudo tão básico, tão estereotipado. E ela é uma mulher inteligente, sabes isso. Porra, é mais inteligente que eu, muito mais, e sensível e pragmática e culta e sei lá que mais. E isso é que me faz confusão, ela perder tempo com aquilo. Deixar-se manipular, permitir que brinquem com as suas emoções de uma forma despudorada, como se fosse uma criança. Faz-me uma confusão que não imaginas.
EU: Pensa nisto. Quando olhas para uma telenovela, vês uma coisa; mas outras pessoas podem olhar exactamente para o mesmo e ver algo muito diferente. Ver algo que nem te passa pela cabeça.
ELE: Não compliques, carago.
EU: A sério. Olha lá, que representa para ti uma telenovela?
ELE: Perda de tempo.
EU: Está bem, mas e que mais? Que pensas quando ouves o conceito “telenovela”?
ELE: Conceito? Eh pá, não me fodas com filosofias.
EU: Talvez penses em histórias básicas e elementares, estruturadas em conflitos primários e oposições simplistas, histórias previsíveis e arrastadas, manipuladoras. Falhei muito?
ELE: Nem por isso. Mas o mais irritante é a previsibilidade. Um gajo vê cinco minutos daquilo e adivinha de imediato como tudo vai acabar, passados nove meses. E sabes o que é mais ridículo? Mesmo que ela não conseguisse prever quem morre e quem casa, quem é pai e quem é irmão, não haveria problema; sabes porquê?
EU: Porquê?
ELE: Porque antes de ver, lê tudo na porcaria das revistas. Já sabe o que vai acontecer, porque é fácil adivinhar e porque leu, e mesmo assim vê aquilo tudo, com prazer e ansiedade, como se estivesse a assistir a algo verdadeiramente inesperado e importante.
EU: Estás a dar-me razão.
ELE: Estou?
EU: Estás a confirmar aquilo que te dizia. Ela olha para aquilo de maneira diferente, vê algo muito diferente do que tu vês.
ELE: Mas que vê ela, afinal?
EU: Já experimentaste perguntar-lhe?
ELE: Já.
EU: E que respondeu ela?
ELE: Encolheu os ombros.
EU: Mas insististe?
ELE: Nem por isso.
EU: Não insististe?
ELE: Já disse que não, porra.
EU: Eh pá, não percebes muito de mulheres, pois não?
ELE: Vais tu ensinar-me, se calhar.
EU: Talvez devesses ver um bocado de uma telenovela e aprender qualquer coisa sobre mulheres. O básico e assim.
ELE: Ou talvez vá pedir à tua ex-mulher que me ensine uma coisas.
EU: Já pensaste que as telenovelas são metáforas da vida?
ELE: E a dar-lhe. Metáforas e conceitos e filosofias e o catano. Isso é palavreado de quem não sabe o que dizer. Estar para aí a gastar palavras, mais nada.
EU: Foste tu que puxaste a conversa.
ELE: E já me arrependi.
EU: Sabes, esta não liga muito mas a minha primeira mulher gostava de telenovelas, era mais ou menos como a tua. Sabes porquê?
ELE: Não. Porquê?
EU: Precisamente por causa daquilo que te estava a dizer.
ELE: O quê?
EU: Aquilo das telenovelas serem metáforas da vida.
ELE: E como sabes que era por isso que ela via telenovelas?
EU: Perguntei-lhe.
ELE: E ela respondeu? Disse, naquela voz de fumadora dela: gosto de telenovelas porque são metáforas da vida.
EU: Mais ou menos.
ELE: Suponho que te explicou que porra quer isso dizer.
EU: Não. Não foi preciso.
ELE: Não foi preciso? Tão esperto que o meu amigo é, percebe logo tudo. Ou já tinhas tirado o curso por correspondência?
EU: As telenovelas são previsíveis e repetitivas, repletas de momentos desnecessários e supérfluos, de ilusões e equívocos, são entediantes, enganadoras, são lineares, são incoerentes, são deterministas e circulares, são… Bom, resumindo são muito parecidas com a vida, ou pelo menos com uma certa visão que muita gente tem da vida, são retratos condensados e estilizados da vida comum, da vida de todos nós. Aquelas personagens somos nós, estás a ver?, aquelas histórias são as nossas vidas.
ELE: Falas tanto e não dizes nada. Repara que estou a dizer isto com um sorriso. Mas estou a dizê-lo. E se não mudas de disco, vou repeti-lo.
EU: Acho que foi algo do género que a minha ex quis dizer com a história da metáfora. Que via telenovelas porque se identificava com elas… Ou melhor, porque se identificava nelas. Via-as para se confrontar com a sua própria vida, para redimensionar a sua própria telenovela privada, para projectar a sua vidinha num contexto mais amplo, mais abrangente, mais clarificador.
ELE: Hum hum.
EU: Ou talvez tivesse esperança de ser surpreendida pelas telenovelas que via, uma esperança secreta de que apesar da previsibilidade e repetição dos argumentos, apesar das revelações que lia nas revistas, acabasse por assistir a qualquer coisa inesperada, a um desenlace surpreendente ou um rumo imprevisto ou um acontecimento inexplicável. Porque se isso acontecesse, e lembra-te que na perspectiva dela as telenovelas são imitações da vida quotidiana, talvez houvesse esperança de algo semelhante ocorrer na sua vida, uma surpresa qualquer que perturbasse a rotina dos dias, que lhe mudasse o destino.
ELE: Já viste, um gajo faz um comentário qualquer, só para fazer conversa e tal, uma perguntazinha inocente ou assim, e acabas sempre a falar de ti, nunca falha, pões-te logo com teorias e desculpas e tretas.
EU: É capaz de ser verdade.
ELE: E sabes que mais? Isso irrita, foda-se, nem imaginas o que irrita. Aliás, de certeza que foi por isso que ela se divorciou de ti. De certezinha.
EU: Divorciou-se porque percebeu que estava a viver na telenovela errada. E a tua mulher, pelo que contas, deve estar quase a perceber o mesmo.
ELE: Não digas isso nem a brincar.
EU: Ok, não digo. Mas que queres que te diga, afinal?
ELE: Tudo menos isso.
EU: Olha, acho que já percebi o que queres. Queres que te assegure que, na verdade, as telenovelas são apenas entretenimentos simplistas para alienar as pessoas, para distraí-las das coisas mesmo importantes como a crise e assim. O ópio do povo e tal. É isso, não é? Tal e qual a história do pai natal que contei ao meu filho; olha que ele acreditou, ainda acredita, e isto é mais ou menos igual. Ou não é? Porque eu consigo ser bastante convincente a contar histórias da carochinha; apesar de saber que o segredo é apenas contá-las a quem está predisposto a acreditar nelas, a quem precisa de acreditar nelas. Voltemos ao princípio, então. Como é que perguntaste, no início da conversa? Qual é o fascínio dela pela merda das telenovelas, não foi? Ou algo do género. Bom, eu respondo. Respondo-te assim. Deixa-a lá, não te preocupes com isso, é apenas uma forma de fuga e descompressão, uma forma ingénua e inofensiva de aliviar o stress do quotidiano e tal. Ok? Então vamos embora, que se faz tarde.
EU: Nem por isso.
ELE: Pois com a minha é sagrado; chega àquela hora e o mundo desliga, deixa de girar. Nada mais interessa, nada conta; é impossível tirá-la de perto da televisão, fazê-la sair de casa. Não sei se estás a ver.
EU: Estou.
ELE: E aquilo mói, sabes? É uma coisa que se põe entre nós, um muro intransponível. Podíamos estar a fazer montes de coisas, sei lá… Podíamos ver outra treta qualquer na televisão, um filme ou assim… ou podíamos beber um copo e conversar sobre o futuro e sobre ter filhos e sobre os amigos que se foram divorciando, podíamos ir para a varanda fumar enquanto contávamos estrelas, podíamos foder um bocado, podíamos ir a um bar ou ao teatro ou visitar uns amigos, podíamos fazer qualquer coisa juntos. Mas não, enquanto aquela merda dura, não há hipótese, não se mexe dali. Parece-te normal?
EU: Acho que sim.
ELE: A sério?
EU: Já pensaste fazer-lhe companhia?
ELE: A ver a telenovela? Estás a gozar comigo ou quê?
EU: Os casais estão sempre a desafiarem-se silenciosamente, a envolverem-se em duelos patetas. Uma espécie de luta não assumida pela liderança, pela supremacia; ou pela subsistência de alguma individualidade.
ELE: Grande tanga.
EU: A vida matrimonial é uma grande tanga. Até aposto que sei como são as coisas, lá em casa. Tu a ver se ela se farta das telenovelas e te faz a vontade, ela a ver se tu lhe fazes companhia nem que seja só uma noite; e se ninguém cede, apesar de serem cedências muito simples, a coisa vai-se arrastado, há-de chegar o momento em que um ou outro acaba por se desinteressar do que o outro faz ou deixa de fazer.
ELE: Que raio de conversa, tiraste um curso de psicólogo por correspondência ou quê?
EU: Olha lá, qual é que te parece o motivo dela, para ver telenovelas?
ELE: Isso gostava eu de perceber. Aquilo parece tudo tão básico, tão estereotipado. E ela é uma mulher inteligente, sabes isso. Porra, é mais inteligente que eu, muito mais, e sensível e pragmática e culta e sei lá que mais. E isso é que me faz confusão, ela perder tempo com aquilo. Deixar-se manipular, permitir que brinquem com as suas emoções de uma forma despudorada, como se fosse uma criança. Faz-me uma confusão que não imaginas.
EU: Pensa nisto. Quando olhas para uma telenovela, vês uma coisa; mas outras pessoas podem olhar exactamente para o mesmo e ver algo muito diferente. Ver algo que nem te passa pela cabeça.
ELE: Não compliques, carago.
EU: A sério. Olha lá, que representa para ti uma telenovela?
ELE: Perda de tempo.
EU: Está bem, mas e que mais? Que pensas quando ouves o conceito “telenovela”?
ELE: Conceito? Eh pá, não me fodas com filosofias.
EU: Talvez penses em histórias básicas e elementares, estruturadas em conflitos primários e oposições simplistas, histórias previsíveis e arrastadas, manipuladoras. Falhei muito?
ELE: Nem por isso. Mas o mais irritante é a previsibilidade. Um gajo vê cinco minutos daquilo e adivinha de imediato como tudo vai acabar, passados nove meses. E sabes o que é mais ridículo? Mesmo que ela não conseguisse prever quem morre e quem casa, quem é pai e quem é irmão, não haveria problema; sabes porquê?
EU: Porquê?
ELE: Porque antes de ver, lê tudo na porcaria das revistas. Já sabe o que vai acontecer, porque é fácil adivinhar e porque leu, e mesmo assim vê aquilo tudo, com prazer e ansiedade, como se estivesse a assistir a algo verdadeiramente inesperado e importante.
EU: Estás a dar-me razão.
ELE: Estou?
EU: Estás a confirmar aquilo que te dizia. Ela olha para aquilo de maneira diferente, vê algo muito diferente do que tu vês.
ELE: Mas que vê ela, afinal?
EU: Já experimentaste perguntar-lhe?
ELE: Já.
EU: E que respondeu ela?
ELE: Encolheu os ombros.
EU: Mas insististe?
ELE: Nem por isso.
EU: Não insististe?
ELE: Já disse que não, porra.
EU: Eh pá, não percebes muito de mulheres, pois não?
ELE: Vais tu ensinar-me, se calhar.
EU: Talvez devesses ver um bocado de uma telenovela e aprender qualquer coisa sobre mulheres. O básico e assim.
ELE: Ou talvez vá pedir à tua ex-mulher que me ensine uma coisas.
EU: Já pensaste que as telenovelas são metáforas da vida?
ELE: E a dar-lhe. Metáforas e conceitos e filosofias e o catano. Isso é palavreado de quem não sabe o que dizer. Estar para aí a gastar palavras, mais nada.
EU: Foste tu que puxaste a conversa.
ELE: E já me arrependi.
EU: Sabes, esta não liga muito mas a minha primeira mulher gostava de telenovelas, era mais ou menos como a tua. Sabes porquê?
ELE: Não. Porquê?
EU: Precisamente por causa daquilo que te estava a dizer.
ELE: O quê?
EU: Aquilo das telenovelas serem metáforas da vida.
ELE: E como sabes que era por isso que ela via telenovelas?
EU: Perguntei-lhe.
ELE: E ela respondeu? Disse, naquela voz de fumadora dela: gosto de telenovelas porque são metáforas da vida.
EU: Mais ou menos.
ELE: Suponho que te explicou que porra quer isso dizer.
EU: Não. Não foi preciso.
ELE: Não foi preciso? Tão esperto que o meu amigo é, percebe logo tudo. Ou já tinhas tirado o curso por correspondência?
EU: As telenovelas são previsíveis e repetitivas, repletas de momentos desnecessários e supérfluos, de ilusões e equívocos, são entediantes, enganadoras, são lineares, são incoerentes, são deterministas e circulares, são… Bom, resumindo são muito parecidas com a vida, ou pelo menos com uma certa visão que muita gente tem da vida, são retratos condensados e estilizados da vida comum, da vida de todos nós. Aquelas personagens somos nós, estás a ver?, aquelas histórias são as nossas vidas.
ELE: Falas tanto e não dizes nada. Repara que estou a dizer isto com um sorriso. Mas estou a dizê-lo. E se não mudas de disco, vou repeti-lo.
EU: Acho que foi algo do género que a minha ex quis dizer com a história da metáfora. Que via telenovelas porque se identificava com elas… Ou melhor, porque se identificava nelas. Via-as para se confrontar com a sua própria vida, para redimensionar a sua própria telenovela privada, para projectar a sua vidinha num contexto mais amplo, mais abrangente, mais clarificador.
ELE: Hum hum.
EU: Ou talvez tivesse esperança de ser surpreendida pelas telenovelas que via, uma esperança secreta de que apesar da previsibilidade e repetição dos argumentos, apesar das revelações que lia nas revistas, acabasse por assistir a qualquer coisa inesperada, a um desenlace surpreendente ou um rumo imprevisto ou um acontecimento inexplicável. Porque se isso acontecesse, e lembra-te que na perspectiva dela as telenovelas são imitações da vida quotidiana, talvez houvesse esperança de algo semelhante ocorrer na sua vida, uma surpresa qualquer que perturbasse a rotina dos dias, que lhe mudasse o destino.
ELE: Já viste, um gajo faz um comentário qualquer, só para fazer conversa e tal, uma perguntazinha inocente ou assim, e acabas sempre a falar de ti, nunca falha, pões-te logo com teorias e desculpas e tretas.
EU: É capaz de ser verdade.
ELE: E sabes que mais? Isso irrita, foda-se, nem imaginas o que irrita. Aliás, de certeza que foi por isso que ela se divorciou de ti. De certezinha.
EU: Divorciou-se porque percebeu que estava a viver na telenovela errada. E a tua mulher, pelo que contas, deve estar quase a perceber o mesmo.
ELE: Não digas isso nem a brincar.
EU: Ok, não digo. Mas que queres que te diga, afinal?
ELE: Tudo menos isso.
EU: Olha, acho que já percebi o que queres. Queres que te assegure que, na verdade, as telenovelas são apenas entretenimentos simplistas para alienar as pessoas, para distraí-las das coisas mesmo importantes como a crise e assim. O ópio do povo e tal. É isso, não é? Tal e qual a história do pai natal que contei ao meu filho; olha que ele acreditou, ainda acredita, e isto é mais ou menos igual. Ou não é? Porque eu consigo ser bastante convincente a contar histórias da carochinha; apesar de saber que o segredo é apenas contá-las a quem está predisposto a acreditar nelas, a quem precisa de acreditar nelas. Voltemos ao princípio, então. Como é que perguntaste, no início da conversa? Qual é o fascínio dela pela merda das telenovelas, não foi? Ou algo do género. Bom, eu respondo. Respondo-te assim. Deixa-a lá, não te preocupes com isso, é apenas uma forma de fuga e descompressão, uma forma ingénua e inofensiva de aliviar o stress do quotidiano e tal. Ok? Então vamos embora, que se faz tarde.