No início deste ano, desafiei-me a escrever alguns contos a partir dos maravilhosos quadros de Joana Lucas. Estão finalmente concluídos e, em breve, estarão disponíveis num ebook. Por enquanto, fica a estória “Princesas” – escrita a partir do quadro com o mesmo título – e um profundo agradecimento à Joana.
Oh doutor, há quanto tempo é que eu ando a caminhar para aqui? Mais de um ano, não é?, bem mais. No outro dia, dei por mim a pensar: mas que raio ainda terei eu para lhe dizer? E não me lembrei de nada, a verdade é que não me lembrei de nada novo; se calhar, devia comprar um daqueles caderninhos pretos que toda a gente usa, assim como esses que o doutor aí tem, e, ao longo da semana, ir apontado as coisas de que poderia falar quando aqui chegasse. Tem clientes que fazem isso, não tem? Desculpe lá, estou a brincar consigo. Mas agora a sério: haverá alguma coisa que não saiba de mim, doutor? Por esta altura, deve saber mais de mim do que eu própria. Já ouviu falar daquelas pessoas que têm uma vida tão monótona que quando chegam ao sofá do psiquiatra, põem-se a inventar, vão fantasiando o que calha, a ver se o homem não se enfada demasiado? Porque o que querem é falar, que alguém as escute; é para isso que pagam, para serem ouvidas. Bom, doutor, eu nunca precisei de inventar. Contei-lhe tudo. Estou farta de lhe falar do meu casamento, da prisão em que estou, e de como não consigo libertar-me, por mais que pareça simples e fácil, não consigo. Todas as semanas lhe falo disso, não é? Mais detalhe, menos detalhe, mas a história não tem evoluído muito, há coisas que estão destinadas a não mudarem muito. E também lhe falei do casamento dos meus pais, não foi?, falei-lhe abundantemente disso; de como discutiam, de como a minha mãe chorava e o meu pai gritava, de como bebiam e atiravam coisas, de como se olhavam com fúria e ódio, falei-lhe de tudo isso. Falei de como eu fugia, sempre que sentia uma discussão aproximar-se; de como me escondia nos armários, debaixo da cama, na varanda. Falei-lhe muito da varanda, não foi?, e até parecia uma daquelas histórias inventadas que as pessoas contam. Lembra-se, doutor? Pendurava-me na varanda e ficava à espera que a tempestade passasse, enquanto pensava em coisas de criança; pensava, por exemplo, que num daqueles dias talvez aparecesse por ali um príncipe que me levasse, salvando-me de tudo aquilo; um príncipe que andasse perdido pela cidade, em busca de meninas que pudesse salvar. Porque fantasiam tanto as crianças com príncipes, doutor? Falámos disso mas não chegámos a nenhuma conclusão, desculpe lá que lhe diga mas nunca se chegam a muitas conclusões, aqui. E como não bastasse estar triste por causa das discussões dos meus pais, vinha aquela nova tristeza de esperar por um príncipe que nunca chegava. E se os príncipes apenas salvam princesas?, perguntava-me eu. Mas sentia-me uma princesa, apesar de não o ser; e, por isso, julgava-me no direito de ser salva por um príncipe. Criancices, doutor. Criancices. Contei-lhe tudo isto, como lhe contei que num momento mais desesperante e confuso da minha vida de adulta, cedi à tentação de repetir os comportamentos que tinha quando era miúda. Confessei-lhe como, certo dia, me pendurei na varanda e lá me deixei ficar, sentadinha e de pernas a abanar, calçada com os meus melhores sapatos de princesa que não é princesa a sério, à espera que viesse um príncipe que me salvasse daquele casamento miserável, que eu não conseguia salvar-me sozinha; que viesse um príncipe e matasse o dragão. Uma mulher de trinta e dois anos sentada na varanda à espera de príncipes. Tem piada, não tem? Já agora, uma curiosidade: por estes dias, neste nosso século de internets e carros que estacionam sozinhos, de que forma se deslocam os príncipes? Será que ainda andam a cavalo? Deixe lá, doutor, não ligue, como vê, hoje estou um pouco alterada. Deve ser do calor. O que importa é que lhe contei tudo isto, não tenho segredos para si, e, já que aqui estamos e ainda temos muito tempo, aproveito para lhe contar mais uma coisinha. Voltei a ir à varanda. É verdade, doutor, voltei. E lá estava eu, se é que consegue imaginar tal coisa; foi terça-feira, lembra-se como estava um dia magnífico? Pois foi o dia em que voltei a perder o juízo. Tinha uns sapatos novos, lindíssimos, que comprei num impulso, vítima de um capricho, e que ainda não usara, porque por estes dias não há na minha vida qualquer pretexto que justifique usar uns sapatos daqueles. Vermelhos, doutor, uns sapatos vermelhos. Pois calcei-os e segui para a varanda; esperava príncipes mas apenas passavam autocarros, repletos de velhinhos e de estudantes, deitando fumo; autocarros, que de certa forma são a antítese dos príncipes: previsíveis e regulares, monótonos. Foram passando e eu fui esperando. Como imagina, não esperava nada de especial, a partir de certa altura esperamos apenas por hábito, da mesma forma que respiramos ou sorrimos, apenas por hábito, sabemos que não vai chegar nada, sabemos que atingimos o plafond, e apesar disso insistimos em esperar. Fui esperando, portanto. E sabe o que aconteceu, doutor? Afinal, sempre tenho qualquer coisa nova para lhe contar, porque o que aconteceu foi algo inesperado. Gostava de lhe dizer que o que aconteceu foi cair-me um dos sapatos novos do pé e acertar na cabeça de um moço que na altura fosse a passar, e calhar o moço olhar e surpreender o meu olhar, e ficarmos para ali a olhar, o sapato no chão e um alto a crescer-lhe na cabeça, o tempo a passar, os autocarros também, e de repente, pimba, percebíamos apenas através do olhar que nos amávamos e que iríamos ser felizes para sempre, ou ainda por mais tempo. Gostava de lhe contar uma historieta destas, sabe porquê, doutor, porque gostava mesmo que me acontecesse uma historieta destas. Mas, infelizmente, o sapato não me caiu do pé, azar. O que realmente aconteceu foi menos extraordinário. Sabe o que foi, doutor? Eu conto, como lhe contei tudo o resto. De repente, percebi que não viria príncipe nenhum. Quer dizer, não percebi, que isso já eu tinha percebido há muito tempo. Não, o que aconteceu foi que aceitei que não vinha príncipe nenhum, que apenas continuariam a passar autocarros e nada mais; por muito bonitos que fossem os sapatos, doutor. Não viriam príncipes. E essa consciencialização súbita foi libertadora. Porque o que eu pensei foi isto: não virão príncipes e ainda bem porque eu não preciso de ser salva. Está a perceber, doutor, o alcance disto? Uma verdadeira revolução na minha vida. Um break-through dos valentes. Pela primeira vez na minha vida percebi que não preciso de ser salva por ninguém, que não preciso de príncipes nenhuns para nada; quero lá eu saber de príncipes, foi o que eu pensei, ainda pendurada na varanda. Percebi, assim de repente, como se tivesse sido atingida por um raio, que não existem por aí príncipes nem princesas, doutor; apenas gente que vai fazendo pela vida; e os outros. Desculpe lá o simplismo das minhas teorias mas é mesmo assim, não consigo explicar melhor. Princesas só as da televisão e já se sabe que essas acabam sempre mal; foi o que eu compreendi lá no poleiro da varanda. Levantei-me e regressei ao interior e… bem, doutor, sabe o que fiz? Tratei de pôr a minha vida em ordem, foi o que fiz. Comecei logo ali e ainda não parei. Mas isso agora não interessa, doutor, porque o que eu queria dizer-lhe é que sinto que não preciso mesmo de príncipes para nada. Nem de príncipes nem de psiquiatras, como já deve ter percebido, tenha paciência mas é mesmo assim, doutor. Tenho pena.
(Comentário escrito pelo psiquiatra no seu caderninho, no final da consulta:
Ora foda-se.)
Oh doutor, há quanto tempo é que eu ando a caminhar para aqui? Mais de um ano, não é?, bem mais. No outro dia, dei por mim a pensar: mas que raio ainda terei eu para lhe dizer? E não me lembrei de nada, a verdade é que não me lembrei de nada novo; se calhar, devia comprar um daqueles caderninhos pretos que toda a gente usa, assim como esses que o doutor aí tem, e, ao longo da semana, ir apontado as coisas de que poderia falar quando aqui chegasse. Tem clientes que fazem isso, não tem? Desculpe lá, estou a brincar consigo. Mas agora a sério: haverá alguma coisa que não saiba de mim, doutor? Por esta altura, deve saber mais de mim do que eu própria. Já ouviu falar daquelas pessoas que têm uma vida tão monótona que quando chegam ao sofá do psiquiatra, põem-se a inventar, vão fantasiando o que calha, a ver se o homem não se enfada demasiado? Porque o que querem é falar, que alguém as escute; é para isso que pagam, para serem ouvidas. Bom, doutor, eu nunca precisei de inventar. Contei-lhe tudo. Estou farta de lhe falar do meu casamento, da prisão em que estou, e de como não consigo libertar-me, por mais que pareça simples e fácil, não consigo. Todas as semanas lhe falo disso, não é? Mais detalhe, menos detalhe, mas a história não tem evoluído muito, há coisas que estão destinadas a não mudarem muito. E também lhe falei do casamento dos meus pais, não foi?, falei-lhe abundantemente disso; de como discutiam, de como a minha mãe chorava e o meu pai gritava, de como bebiam e atiravam coisas, de como se olhavam com fúria e ódio, falei-lhe de tudo isso. Falei de como eu fugia, sempre que sentia uma discussão aproximar-se; de como me escondia nos armários, debaixo da cama, na varanda. Falei-lhe muito da varanda, não foi?, e até parecia uma daquelas histórias inventadas que as pessoas contam. Lembra-se, doutor? Pendurava-me na varanda e ficava à espera que a tempestade passasse, enquanto pensava em coisas de criança; pensava, por exemplo, que num daqueles dias talvez aparecesse por ali um príncipe que me levasse, salvando-me de tudo aquilo; um príncipe que andasse perdido pela cidade, em busca de meninas que pudesse salvar. Porque fantasiam tanto as crianças com príncipes, doutor? Falámos disso mas não chegámos a nenhuma conclusão, desculpe lá que lhe diga mas nunca se chegam a muitas conclusões, aqui. E como não bastasse estar triste por causa das discussões dos meus pais, vinha aquela nova tristeza de esperar por um príncipe que nunca chegava. E se os príncipes apenas salvam princesas?, perguntava-me eu. Mas sentia-me uma princesa, apesar de não o ser; e, por isso, julgava-me no direito de ser salva por um príncipe. Criancices, doutor. Criancices. Contei-lhe tudo isto, como lhe contei que num momento mais desesperante e confuso da minha vida de adulta, cedi à tentação de repetir os comportamentos que tinha quando era miúda. Confessei-lhe como, certo dia, me pendurei na varanda e lá me deixei ficar, sentadinha e de pernas a abanar, calçada com os meus melhores sapatos de princesa que não é princesa a sério, à espera que viesse um príncipe que me salvasse daquele casamento miserável, que eu não conseguia salvar-me sozinha; que viesse um príncipe e matasse o dragão. Uma mulher de trinta e dois anos sentada na varanda à espera de príncipes. Tem piada, não tem? Já agora, uma curiosidade: por estes dias, neste nosso século de internets e carros que estacionam sozinhos, de que forma se deslocam os príncipes? Será que ainda andam a cavalo? Deixe lá, doutor, não ligue, como vê, hoje estou um pouco alterada. Deve ser do calor. O que importa é que lhe contei tudo isto, não tenho segredos para si, e, já que aqui estamos e ainda temos muito tempo, aproveito para lhe contar mais uma coisinha. Voltei a ir à varanda. É verdade, doutor, voltei. E lá estava eu, se é que consegue imaginar tal coisa; foi terça-feira, lembra-se como estava um dia magnífico? Pois foi o dia em que voltei a perder o juízo. Tinha uns sapatos novos, lindíssimos, que comprei num impulso, vítima de um capricho, e que ainda não usara, porque por estes dias não há na minha vida qualquer pretexto que justifique usar uns sapatos daqueles. Vermelhos, doutor, uns sapatos vermelhos. Pois calcei-os e segui para a varanda; esperava príncipes mas apenas passavam autocarros, repletos de velhinhos e de estudantes, deitando fumo; autocarros, que de certa forma são a antítese dos príncipes: previsíveis e regulares, monótonos. Foram passando e eu fui esperando. Como imagina, não esperava nada de especial, a partir de certa altura esperamos apenas por hábito, da mesma forma que respiramos ou sorrimos, apenas por hábito, sabemos que não vai chegar nada, sabemos que atingimos o plafond, e apesar disso insistimos em esperar. Fui esperando, portanto. E sabe o que aconteceu, doutor? Afinal, sempre tenho qualquer coisa nova para lhe contar, porque o que aconteceu foi algo inesperado. Gostava de lhe dizer que o que aconteceu foi cair-me um dos sapatos novos do pé e acertar na cabeça de um moço que na altura fosse a passar, e calhar o moço olhar e surpreender o meu olhar, e ficarmos para ali a olhar, o sapato no chão e um alto a crescer-lhe na cabeça, o tempo a passar, os autocarros também, e de repente, pimba, percebíamos apenas através do olhar que nos amávamos e que iríamos ser felizes para sempre, ou ainda por mais tempo. Gostava de lhe contar uma historieta destas, sabe porquê, doutor, porque gostava mesmo que me acontecesse uma historieta destas. Mas, infelizmente, o sapato não me caiu do pé, azar. O que realmente aconteceu foi menos extraordinário. Sabe o que foi, doutor? Eu conto, como lhe contei tudo o resto. De repente, percebi que não viria príncipe nenhum. Quer dizer, não percebi, que isso já eu tinha percebido há muito tempo. Não, o que aconteceu foi que aceitei que não vinha príncipe nenhum, que apenas continuariam a passar autocarros e nada mais; por muito bonitos que fossem os sapatos, doutor. Não viriam príncipes. E essa consciencialização súbita foi libertadora. Porque o que eu pensei foi isto: não virão príncipes e ainda bem porque eu não preciso de ser salva. Está a perceber, doutor, o alcance disto? Uma verdadeira revolução na minha vida. Um break-through dos valentes. Pela primeira vez na minha vida percebi que não preciso de ser salva por ninguém, que não preciso de príncipes nenhuns para nada; quero lá eu saber de príncipes, foi o que eu pensei, ainda pendurada na varanda. Percebi, assim de repente, como se tivesse sido atingida por um raio, que não existem por aí príncipes nem princesas, doutor; apenas gente que vai fazendo pela vida; e os outros. Desculpe lá o simplismo das minhas teorias mas é mesmo assim, não consigo explicar melhor. Princesas só as da televisão e já se sabe que essas acabam sempre mal; foi o que eu compreendi lá no poleiro da varanda. Levantei-me e regressei ao interior e… bem, doutor, sabe o que fiz? Tratei de pôr a minha vida em ordem, foi o que fiz. Comecei logo ali e ainda não parei. Mas isso agora não interessa, doutor, porque o que eu queria dizer-lhe é que sinto que não preciso mesmo de príncipes para nada. Nem de príncipes nem de psiquiatras, como já deve ter percebido, tenha paciência mas é mesmo assim, doutor. Tenho pena.
(Comentário escrito pelo psiquiatra no seu caderninho, no final da consulta:
Ora foda-se.)