Ai



(A partir do quadro “As três velas”, de Marc Chagall. Do livro Os mundos separados que partilhamos.)



Dizes: ai.
E quando olho, vejo o teu corpo deixar-se cair, rendido e sem reacção nem vontade nem desejo. Caindo, simplesmente. Ainda não tive tempo de pestanejar, de mover um único músculo que fosse: e já estás no chão. Vejo como o teu corpo se acomoda, se contorce, procurando uma posição confortável; vejo como pedaços de ti se deslocam para aqui e para ali, buscando algo, fugindo de algo; vejo como os teus olhos estão abertos, surpreendidos, incrédulos. E vejo como o brilho se extingue, lentamente, vejo como a vida se apaga. Vejo uma nuvenzinha translúcida formar-se junto às tuas pestanas; e sei: é a alma que te abandona. Ainda não me movi, não pestanejei; sinto o corpo congelado e sei que não haverá movimento possível. Tudo o que me é permitido é observar. Sei que estás morta. Já o sabia, soube-o quando ouvi o ruído do teu corpo embater no chão. Era o ruído de um corpo vazio, oco; o ruído da ausência. Agora, não há movimento, nenhum pedaço de ti ainda ousa lutar ou resistir ou acreditar. Foste corpo, agora és imobilidade. Foste vida, agora és memória.
Muito tempo depois, digo: ai.
E pergunto-me: quanto tempo demoraste a morrer?


Sabíamos que o teu coração sucumbiria, um dia. Mas também sabíamos que esse dia ainda tardaria, demoraria uma vida a chegar. Demoraria o tempo de que precisaríamos para sermos felizes. E depois, num fim de tarde de Verão, o sol a descer a nossos pés e o cheiro das nuvens brancas a embriagar-nos, dirias: pronto, já chega, já fui suficientemente feliz. Seria o sinal para o teu coração; e ele finalmente poderia descansar. Tínhamos tudo planeado. Naquelas noites de luar, lembras-te? Fazíamos amor e depois ficávamos no escuro, a planear. Por vezes, encostava o rosto aos teus seios e segredava ao teu coração palavras de confiança. Encorajava-o, dizia-lhe: acredito em ti, acredito que serás capaz. Depois, chupava o teu mamilo. E o luar era lentamente engolido pela luz cinzenta do amanhecer; não teríamos dormido, não precisávamos.
Sim, sempre soubemos que o teu coração pararia. Mas deveria ter sido apenas quando decidíssemos que poderia parar. Apenas quando estivéssemos quase, quase a cansar-nos da vida. Do outro lado da nossa eternidade.
Afinal, foi hoje. Agora.
Olho-te. E não sei que fazer.


Concentro-me. Obrigo o tempo a imobilizar-se e, depois, a regredir. Sou obedecido; e é estranho reviver assim o que acabámos de viver, em marcha invertida. Há pormenores que se descobrem, nuances e silêncios, insignificâncias. Recordações: agora viverei apenas delas. 
Nunca tinha pensado na morte. Nunca tinha pensado na violência de uma separação definitiva. Nunca tinha pensado na ausência do teu corpo e do teu cheiro e do teu riso e da tua sombra e do teu movimento e do teu abraço. Nunca tinha pensado que o silêncio de uma casa pudesse ser tão monótono, tão escuro, tão desolador. Nunca tinha pensado que a solidão pudesse ser não uma ausência de tudo mas a saturação de presenças fantasmagóricas, de pensamentos solidificados, de imagens resplandecentes de cor e brilho e magnetismo. Nunca tinha pensado no teu corpo como um simples amontoado de células e tendões e ossos e líquidos e viscosidades e oitenta por cento de água, tudo caído no chão, tudo espalhado pelo chão. Nunca tinha pensado que poderias morrer, assim.
Nunca tinha pensado. Penso agora: demasiado tarde.


Olho durante muito tempo a reprodução daquele quadro de que tanto gostavas, que compraste para me oferecer, que nos acompanhou desde sempre como uma testemunha do nosso amor; aquele quadro em que um homem protege a sua noiva do mundo e da morte, abraçando-a. Disseste, uma vez: aqueles somos nós; e eu beijei-te na testa, comovido. Pensando: sim, proteger-te-ei para sempre.
E, incapaz de desviar o olhar do quadro, sei que daqui a pouco o destruirei.


A noite veio e passou; a loucura veio e passou. Vieram juntas, partiram juntas. Noite e loucura: indissociáveis, para sempre.
O que aconteceu foi isto: quando finalmente aceitei a tua morte e percebi que havia tarefas a executar (por exemplo, tirar-te do chão, levar-te não sei para onde; levam-se os mortos para o hospital?), caminhei lentamente até ao nosso quarto, decidido a trocar de roupa; no armário, procurei uma camisa sóbria; ou melhor: estendi a mão sem pensar no que fazia, certo de que ela teria a inteligência suficiente para desempenhar a função que lhe atribuíra, sem precisar de mim; como se a mão já não fosse minha, como se a quisesse libertar de mim; percebes isto? Mas quando a mão regressou, apertava entre os seus dedos uma camisa tua. Depois, tudo aconteceu com a maior naturalidade. Dei por mim vestido com as tuas roupas, roupas não lavadas, impregnadas com o teu cheiro, com o calor do teu corpo. Senti-me bem, como se me abraçasses. Fiquei muito tempo assim, até achar que a intensidade do que sentia, a presença de ti que o contacto das roupas transmitia, começava a diminuir. Então, despi-me. Tomei banho, usando o teu gel, o teu champô. Sequei-me com a tua toalha. Acariciei-me com os teus cremes. Vesti umas cuecas tuas, que me apertavam, que me magoavam; que me lembravam a cada instante a tua ausência. Depois, cobri o corpo com roupas minhas. Deitei-me junto de ti, no chão. Abracei-te. Enrosquei o meu corpo no teu. Por fim, levantei-me, tentei levantar-te. Uma fraqueza súbita imobilizou-me, congelou-me: e ouvi o baque seco do teu corpo sem vida a chocar com o chão frio. Sentei-me no sofá, incapaz de te olhar. Fechei os olhos e chorei.
Quando a noite finalmente partiu, levando consigo a loucura, peguei no telemóvel e chamei a minha irmã.


Há gente em casa.
O dia passou veloz e vazio: levando-te da minha vida, definitivamente. Para compensar, trouxe pessoas. Abraçaram-me, partilharam os seus silêncios embaraçados comigo. Tentaram preencher o meu vazio com pedaços da sua bondade. Esforçaram-se por esconder o óbvio: nada disto faz sentido.
Depois, o sol fugiu. Agora é noite. Outra noite, igual a todas as noites. Sinto a loucura aproximar-se. Outra vez. Para sempre.


E depois, as perguntas. Tantas, uma após outra. Sem fim, sem resposta.
Pergunto-me: e se tivéssemos oportunidade de nos despedirmos? Que palavras te diria? Seria capaz de falar? Teria algo para dizer? Seria patético e dramático e exagerado? Choraria? Tentaria fazer amor contigo, uma última vez? Tentaria ser racional, para que não sofresses com o meu sofrimento? Seria capaz de te abraçar? Desejaria morrer contigo? Seria capaz de morrer contigo, para ti?
Pergunto-me: que gostarias de fazer, antes de morrer? Qual seria o teu último acto, se pudesses escolher? Beijar-me? Fumar um cigarro na varanda? Fazer-me recomendações? Chorar? Ler os teus poemas favoritos? Ver um filme pateta? Adormecer junto a uma lareira? Passear numa praia deserta? Fazer um testamento? Recordar o que foi bom? Suplicar mais uma oportunidade a um deus em que nunca acreditaste? Esperar, simplesmente esperar?
Pergunto-me: se pudesses escolher, desejarias passar os teus últimos momentos de vida comigo, junto de mim, ou preferirias permanecer sozinha, morrer sozinha, partir sozinha? Preferirias outra pessoa junto de ti? Fui o homem mais importante da tua vida, aquele que desejarias ter ao teu lado, agora, para sempre? Amaste-me tanto como eu te amei? A nossa separação dilacerou-te, como me dilacerou a mim? Sofres, como eu estou a sofrer?
Pergunto-me: o que estarás a fazer agora? Pensarás em mim?


(Penso nisto: o acto mais egoísta de que alguém pode ser capaz é morrer; e o segundo acto mais egoísta – na impossibilidade de morrer – é o modo pessoal e individualista como os vivos encaram a morte de quem amam.)


A minha irmã encontrou-me na casa de banho, a chorar; abraçou-me e acariciou-me o cabelo. Disse-lhe: ando com as cuecas dela vestidas. E ela limitou-se a abraçar-me com mais força; compreendeu-me. Depois, deu-me um medicamento qualquer; adormeci. Quando voltei a acordar, a noite já passara. E ela estava sentada ao meu lado, à espera. A sorrir.
Convenceu-me a tentar recomeçar. Mas não sei por onde. Saberás tu? Ajudas-me?