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Amas-me? És feliz comigo?
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Claro que sim.
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Então porque disseste à tua ex-mulher que, se ela quisesse, deixavas-me e
voltavas a casar com ela?
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Como sabes isso?
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Ela contou-me.
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Contou-te?
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Sim. No outro dia, quando falávamos no facebook.
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Vocês falam no facebook?
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Por vezes.
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Não acredito. Vocês falam? Uma com a outra? Ora foda-se. E falam sobre o quê,
pode-se saber?
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Sobre ti.
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Isso é absurdo. E uma falta de respeito monumental. Não tens noção disso? Mas
como começou uma coisa dessas, afinal?
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Um dia, mandei-lhe uma mensagem a perguntar se poderia confiar em ti. Ela
respondeu que não. A partir daí, a coisa correu naturalmente.
-
Nem sei o que dizer. És mesmo parva, tu.
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Também gosto muito de ti. E limitei-me a fazer uma pergunta, nada mais. Querias
o quê? Que confiasse perdidamente em ti, sem hesitação?
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Queria que nem sequer falasses com ela.
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Confesso que há algum tempo que os teus quereres deixaram de me importar.
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Olha, não sei mesmo o que dizer.
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Bom, não interessa muito o que possas dizer. Já não interessa. Deverias ter
pedido desculpa e pronto. Não achas? Pedir desculpa por teres dito uma coisa
dessas. Agora, é tarde demais.
-
Tu é que decides o que devo ou não devo dizer?
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Era só uma opinião.
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Chegaste a amar-me, alguma vez?
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E tu, chegaste a amar-me?
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Acabei de dizer que te amava.
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Acabaste de mentir, queres tu dizer.
-
Chegaste a amar-me?
-
Eu amei-te perdidamente, sua besta. Perdidamente, como dizia aquela estúpida da
poetisa.
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“Ter cá dentro um astro que flameja.”
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Sim, flamejava por ti. Estúpida fui eu, não é? Bem estúpida.
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Não fales assim.
-
Como queres que fale? Se estás a gozar comigo.
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Não estou nada. Não estou. Nunca gozei contigo.
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Pelo contrário. Sempre gozaste comigo.
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Não é verdade.
-
Sabes quando percebi que não me amas? Que nunca me amaste?
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Isso não é verdade.
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Foi quando notei que o teu olhar não brilhava quando me vias.
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Que queres dizer?
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Que quero dizer? Quando olhamos para a pessoa que amamos, o nosso olhar brilha;
é impossível que assim não seja. E o teu olhar não brilha. Eu não te faço
brilhar.
-
Essa conversa é um pouco exotérica, digamos.
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Ainda comecei por achar que o problema não era meu, que pura e simplesmente
ninguém conseguiria fazer o teu olhar brilhar; nem eu nem outra pessoa qualquer.
E que com o tempo isso talvez mudasse. Mas depois notei como o teu olhar
realmente brilha quando te cruzas com certas mulheres. Na rua, numa esplanada,
sei lá. Olhas para uma desconhecida qualquer e, de repente, há um fulgor no teu
olhar. É uma coisa quase palpável.
-
Não tens noção de como é absurdo o que estás a dizer?
-
Estás a falar comigo, a ouvir-me com atenção e interesse, com vontade, mas
depois o teu olhar descai, julgo que é o termo adequado, descai para o lado e
incendeia-se momentaneamente. Eu estou ali, mesmo ao teu lado; mas o teu olhar,
e o teu espírito e o teu desejo, de repente foge.
-
E achas que isso é amor? É o que queres dizer?
-
Claro que não. É tesão, simplesmente. Mas o que interessa é que o teu olhar
brilha. Por causa de uma gaja qualquer que passa por ti, que nem sequer te olha,
que não repara em ti. Brilha, torna-se incandescente.
-
Estás a exagerar.
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Se calhar, estou. Sentir qualquer coisa é sempre um exagero, não é? Sempre fui
uma exagerada, sempre senti demasiado. Desculpa-me, por sentir demasiado.
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Não estejas a ser irónica.
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Gostas de ser assim?
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Assim, como?
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Insensível. Incapaz de sentir seja o que for. Quero dizer, incapaz de sentir
seja o que for além de tesão.
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Que parva.
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Realmente. Uma parva sem remédio. Só uma parva irremediável e sem cura é que contactava
a tua ex-mulher, para lhe perguntar o que te fazia brilhar o olhar; para tentar
perceber como fazer, para que o teu olhar brilhasse. Para que fosses tão feliz
que o teu olhar não parasse de brilhar, nunca.
-
Eu é que estou a ficar parvo com esta conversa. É demais, não acredito.
-
Sabes que me disse ela?
-
Não quero saber, não me interessa.
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Disse assim: és mesmo idiota; e só digo
isso porque consigo reconhecer aquilo que também sou; ou que também fui. É como
se me estivesse a olhar a um espelho.
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Não acredito mesmo. É tudo demasiado telenovelístico, foda-se.
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E chorámos um bocado e depois rimos mais um bocado e pronto.
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Choraram? Aposto que ficaram com os olhos a brilhar.
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É impressionante como nos enganamos relativamente às pessoas, não é? Como,
afinal, somos capazes de amar uma pessoa sem fazer ideia do que ela
verdadeiramente é.
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Uma coisa é o que as pessoas efectivamente são. Outra, muito diferente, é
aquilo que imaginamos que elas são, aquilo que desejamos que sejam, aquilo que
precisamos que sejam.
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Tens razão. As expectativas estragam sempre tudo. Boicotam os relacionamentos,
distorcem os afectos, inviabilizam o amor. É muito difícil aceitarmos o outro
como ele é, estamos constantemente a querer adequar o outro àquilo que
desejamos que ele seja. Lidamos mal com as expectativas dos outros em relação a
nós mas ainda lidamos pior com as nossas expectativas em relação aos outros.
-
Pois. Queremos que os olhos dos outros brilhem porque isso é importante para
nós, ver os olhos brilharem. É um exemplo.
-
Sim, um exemplo.
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Odeias-me?
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Não te amo, já não te amo. E não me és indiferente. Que alternativas restam?
-
Porque te apaixonaste por mim?
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Porque brilham os teus olhos quando te cruzas com certas mulheres?
-
Porque se fazem perguntas que não têm resposta?
-
Por que motivo precisamos tão desesperadamente de respostas?
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Porque não ficamos calados?
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Sim, porque insistimos em falar mesmo quando não há nada a dizer?
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Não sei.
-
Eu também não.
-
Talvez seja estúpido fazer perguntas para as quais não há resposta. Ou estúpido
é não fazer perguntas, independentemente das respostas?
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Não sei. Mas parece que é muito difícil fugir à estupidez.
-
Sim. A estupidez rodeia-nos. E brota de nós, também.
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Sabes de que me estava a lembrar agora, nem sei porquê? Antes, quando me vinhas
visitar, eu perguntava sempre: “Ficas até quando?”. Lembras-te? E tu respondias
“Fico até às sete e meia” ou “Fico até à meia-noite” ou “Fico para amanhã”. Até
que houve um dia em que, simplesmente, respondeste: “Fico para sempre.” E eu
acreditei. Percebes? Acreditei que me amavas e que ficarias para sempre.
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Nesse momento também acreditei que ficaria para sempre.
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Que correu mal, então?
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Esta conversa. Até hoje, estava convencido que tudo corria bem. E que iria
correr bem, indefinidamente.
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És idiota. És ingénuo. És querido.
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Sim. Como tu.
-
Como eu.
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Sabes? Estava a falar a sério. Quando disse que era feliz contigo.
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A pergunta que te fiz foi um pouco… Penso que é daquelas que nunca devemos
fazer.
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Ou daquelas que devemos sempre fazer, independentemente da resposta.
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Talvez. Não sei.
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Olha.
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Diz.
-
Vamos jantar?
-
Sim. Vamos. Vamos jantar.
E
foram.