Ouço distraidamente uma música da
Capicua; espero que o trânsito avance e acompanho a letra quando, de repente,
surge uma palavra inesperada: sugus. É uma palavra mágica, que de imediato me
desperta um sorriso e me faz fugir do trânsito parado, dos devaneios da Capicua,
de um fim de dia sem história. Porque nesse momento, devido a uma simples
palavra e ao que essa palavra evoca, regresso às tardes de domingo dos anos
oitenta, quando os meus pais iam algures tomar café e regressavam com dois pacotes
de sugus, para mim e para o meu irmão; tardes pachorrentas preenchidas com
coboiadas antigas na RTP, em que se tentava não pensar em escola, em que se
esperava pelas sete da tarde para ver mais um episódio do Justiceiro. Mas o que
permaneceu como catalisador de algumas das melhores memórias de infância (além
dos legos, mas isso é outra conversa) foram os sugus, talvez por serem uma
memória com gosto, com cheiro, com tacto; uma memória com sentidos. É curioso o
modo como personificamos em objectos as sensações que nos fazem sentir vivos; é
curioso, e algo infantil, o modo como povoamos o mundo que nos rodeia com as
nossas emoções. Talvez seja uma estratégia inconsciente de selecção, já que em
cada dia existem inúmeras sensações, pensamentos, desejos, fantasias e emoções
que se apoderam de nós, sendo impossível (e indesejável) guardar tudo na
memória. Mas como se fará essa selecção? Que mecanismos determinam que algo
permaneça connosco para sempre e tudo o resto se perca irremediavelmente? Se
fosse uma questão de intensidade, apenas guardaríamos momentos avassaladores; mas
não é o que acontece, pois temos a memória repleta de pormenores, de detalhes,
de coisas simples que afinal são fundamentais. Como sugus. Talvez
seja por isso que associamos objectos físicos às sensações que desejamos preservar:
para as distinguir e destacar; para as arrancar à monótona e implacável
passagem dos dias. Um processo de associação incontrolável, instantâneo,
inexplicável, inconsciente; inesperado, e por isso particularmente intenso. Sensações
que personificamos numa fotografia ou numa música, num filme, num cheiro, num
prato ou numa bebida, numa terra ou num local; numa palavra, que quando lemos
num livro ou numa parede ou num rodapé de noticiário nos transporta de imediato
a determinado momento do passado. Como se as regras de espaço e tempo
estivessem suspensas e fossemos projectados para o tempo e espaço da memória
que o objecto personifica; uma espécie de sonhar acordado, no qual entramos (e
do qual saímos) abruptamente, num processo desencadeado por percepções físicas
que dão uma dimensão sensitiva a memórias intangíveis. Ou tão só uma tentativa ingénua
de não esquecer, de não perder, de não largar; de atenuar a monótona e
implacável passagem dos dias e dar-lhe um pouco de sentido; de regressar às
tardes de domingo.
(41ª crónica para o Jornal de Leiria)