Oh menino, tenho mais
que fazer do que andar a queixar-me. Desculpe lá chamar-lhe menino, mas é por
causa do olhar. Tem um olhar de criança, e isso é raro. O mais comum é
encontrar olhares de velho, sejam velhos ou não; aquele olhar de quem está desinteressado
no que vê, um olhar virado para dentro. E vivo num lar, certo?, é natural que
esteja rodeada de gente com olhar de velho. Quando encontro alguém com olhar de
criança é uma festa porque é bom ser mesmo
vista e não apenas olhada. Mas acabei de dizer que tenho mais que fazer do que
queixar-me, e aqui estou eu a queixar-me. Enfim, não há mal nenhum em ser
contraditória, antes isso que estar cheia de certezas. Aqui, as pessoas têm
muitas certezas, é uma coisa que piora com a idade. E são todos velhos não só de
corpo mas também de espírito. Alguns até já estão mortos mas ainda não o
perceberam; é como se esperassem uma oficialização. No fundo, são pessoas
respeitadoras de preceitos e burocracias, precisam de papéis para tudo; até
para morrer. Mas não ligue, menino. Por vezes dá-me para a tolice. A tolice é
como uma janela, não concorda? Se não a abrimos de vez em quando, é como se
estivéssemos sempre fechados numa sala escura. O sonho também é uma janela, e
essa devia estar sempre aberta. É verdade que tenho sessenta e oito anos mas não
será isso que me impedirá de sonhar. Quer saber o que sonho? Tolices, claro; acho
que são duas janelas que se comunicam, a do sonho e a da tolice. Olhe, sonho
com rojões, nunca fazem disso aqui; ou com filhós de abóbora. Sabe aquilo que se
diz sobre tratarem os velhos como crianças? Passa-se muito na alimentação, é
triste uma pessoa não poder comer o que deseja. Que mal há em rojões e filhós?
Mas se falo nisso, olham-me como se fosse doida, dizem: coma lá o iogurtinho,
que lhe faz bem. Enfim. Sonho que alguns dos meus antigos alunos me venham
visitar. Sonho com o meu filho, que está no estrangeiro, e com o meu marido,
que morreu há três anos; sonho com eles quando durmo, e então acordo com um
sorriso; ou sonho com eles quando estou acordada, e então sorrio na mesma.
Sonho com excursões à Serra da Estrela ou ao Alentejo. Aqui, apenas fazem
excursões a Fátima, não sei bem porquê. Sonho estar rodeada por gente que
encare a velhice de forma menos dramática e egoísta, gente que não passe a vida
a dar com as muletas na cabeça das auxiliares e a fazer escarcéus por causa da
comida e dos remédios. Sonho não ter dores. E por vezes até sonho com um mundo
melhorzito, mas estão a dar cabo disto tudo e uma pessoa vai perdendo
esperança. Até deixei de ler jornais, davam-me azia. E de ver os telejornais. Aos
domingos vêm aí as visitas e por vezes trazem garotos. Faz-me impressão, estão
sempre agarrados aos telemóveis; e isso ainda é mais triste do que ver os
telejornais. Houve aí uma assistente social que andou a criar facebooks para os
velhos. Então certo dia um velho fez uma birra porque queria um telemóvel igual
ao do neto para ir ao facebook e o filho não lho dava. Já viu? Este mundo está
a ficar um bocado estrampalhado, menino. E nem a sonhar uma pessoa consegue
sair da sala escura. Enfim. Mas fale-me de si, diga-me tolices. Não foi meu
aluno, pois não?
(Crónica para o Jornal de Leiria.)