Trouxe uma garrafa consigo. Toda a gente olhava para a garrafa e pensava que estava vazia; por isso é que permitiram que passasse no aeroporto: parecia mesmo vazia. Mas não estava, apenas ele sabia que não estava. Antes de partir, passara algumas horas fechado em casa, apenas ele e o escuro, o silêncio, os minutos a passarem; e a garrafa. Encheu-a com as suas preocupações. Não admitiria a ninguém, era um segredo (e não queria que lhe chamassem tolo, ou pior), mas foi o que fez: pensou nas suas preocupações, uma a uma, e enquanto as pensava tentou encerrá-las na garrafa, prendê-las lá. Preocupações engarrafadas. Descobrira há muito que as suas preocupações precisavam de espaço para viver e crescer, tratava-se de uma simples lei da física (a sétima de Newton ou assim); e quando fizera essa descoberta, especulou que nada obrigaria a que o espaço onde as suas preocupações cresciam e se multiplicavam fosse sempre o mesmo: o seu cérebro, o seu espírito. No fundo, as preocupações eram matéria, uma matéria indefinida e volúvel, mas nada mais do que matéria; e a matéria é transportável, transferível. Uma simples lei da física, diria a quem o ouvisse se alguma vez pudesse falar de tão peculiar assunto. Foi por isso que começou a transferir as suas preocupações do cérebro para garrafas. Sentia-se mais leve, mais livre. Despreocupado. E quando viajava, levava uma dessas garrafas consigo, para se poder livrar definitivamente das preocupações que lá guardara (quando as mantinha em casa, já acontecera algumas vezes uma delas quebrar-se, e fora invadido por todas aquelas preocupações armazenadas que julgara definitivamente esquecidas; um valente escagaçal, diria o Newton se soubesse falar português). Foi o que aconteceu uma vez mais: trouxe uma garrafa consigo. Toda a gente olhava para a garrafa e pensava que estava vazia. Mas não estava. No segundo dia de viagem, subiu a uma montanha e atirou a garrafa com toda a força de que foi capaz; ouviu o zunido que os objectos sempre fazem ao cortar o ar, depois o silêncio, depois o ténue estilhaçar do vidro a quebrar nas rochas. (Claro que poderia usar uma garrafa de plástico ou qualquer outro recipiente inquebrável mas, afinal, as suas preocupações eram uma parte de si – eram vida – e não apreciava a ideia de as saber aprisionadas indefinidamente; gostava de saber que estavam livres, desde que longe de si.) Contemplou o horizonte, respirou o ar puro enquanto observava o verde da linha de árvores misturar-se com o azul desvanecido do céu, esperou pelo pôr-do-sol; cheirava a árvore, cheirava a rocha, cheirava a paz. Quando regressou ao hotel, todos disseram que parecia alegre e feliz, despreocupado. Sorriu e disse que devia ser o ar da montanha que o fazia sentir-se mais leve; foi um sorriso que se prolongou durante muito tempo, como sempre acontece aos sorrisos das pessoas que não têm preocupações.
(Crónica para o Jornal de Leiria.)