MULHER: Tenho uma amiga que diz que se sente como uma empregada de pensão. O marido chega a casa, dá-lhe um beijo na face e depois fica por ali, sem saber bem o que fazer. É capaz de espreitar o frigorífico ou pegar numa banana e ficar a comê-la enquanto olha pela janela. Mas nada mais. Estão ali, juntos, só há uns vinte segundos e o silêncio já se tornou agressivo; e ela, para aliviar o ambiente, para espevitar o silêncio, pergunta-lhe que tal foi o dia, como correu isto ou aquilo. Na verdade, confessou-me ela, não está especialmente interessada em saber; e claro que ele não está muito motivado para contar. Mas lá vai dizendo qualquer coisa, sem nem sequer disfarçar o enfado com que o faz. Frases curtas, monossílabos, nada de muito elaborado. E ela de volta dos tomates ou do peixe, sem grande vontade de estar ali na cozinha, que é onde está quase sempre, mas também sem nenhuma vontade especial de estar noutro sítio qualquer. (Pausa breve. Leva a chávena de chá à boca.) E depois, regressa o silêncio. Diz que ele não faz esforço nenhum e ela também se cansa depressa. Os dois parados, distraídos com o objecto que calhem ter na mão. Então, finalmente, ele lá desaparece. Enfia-se no escritório e liga o computador. Da cozinha, ela ouve o zunido enquanto vai descascando batatas. Diz que já não tem nenhuma curiosidade de saber que faz ele ao computador, como se distrai, como gasta o seu tempo. (Pausa breve.) Ela lá continua a cozinhar, sem vontade mas também sem desagrado, a sentir-se como uma empregada do marido. Põe a mesa, espreita a televisão. Depois chama-o. Comem em silêncio, a ouvir o noticiário. Diz que nunca comentam as notícias, ouvem e pronto. Ele come depressa, com sofreguidão. A minha amiga achava que era com gosto mas depois percebeu que era só avidez; e diz que o marido nunca lhe elogiou os cozinhados. Come, se gosta; deixa, se não lhe apetece. Comentários, nada. (Pausa breve.) Ficam para ali, calados. Depois, dá o intervalo do noticiário e ele levanta-se. E ela, a empregada da pensão, lá fica a arrumar; ouve a segunda parte do noticiário, que é quando dão as notícias menos idiotas, desliga a televisão. Limpa o fogão, liga a máquina da louça. Às vezes liga a máquina da roupa, em simultâneo. E fica a fumar na varanda, a olhar para os carros que passam. Diz que se pergunta algumas vezes se algum daqueles carros pararia para lhe dar boleia. (Pausa breve.) Pensa em mudar de vida, às vezes. Fugir. Mas fugir para onde? (Pausa breve.) E que fazer, quando chegar lá?
(Todos se empenham em não olhar para ninguém, em evitar o olhar de alguém.)
MULHER: Um dia, perguntou-me se comigo era parecido. (Pausa breve.) Desatei a rir. (Sorri. Bebe mais um gole de chá.)
(O MARIDO agita-se quase imperceptivelmente mas com visível desconforto.)
MULHER (após um momento de silêncio): Diz ela que o que lhe custa mais é que o marido já nem se esforce em fingir interesse. As pessoas pensam que surpreenderem alguém a fingir é uma desgraça, uma falta de respeito, um motivo para choros e separações; mas ela não concorda. Acha que a partir de certa altura a existência de fingimento é uma espécie de revelação de empenho, de preocupação pelos sentimentos do outro. (Pausa breve.) Claro que surge sempre aquele momento em que já não há surpresa, em que as pequenas rotinas se vão repetindo rotineiramente, em que a previsibilidade se torna algo quase confortável. Mas se alguém se der ao trabalhar de fingir que poderá não ser sempre assim, ou até de fingir que mesmo que seja assim para sempre não faz mal, bom, diz ela, é porque merecemos o esforço; e que bem que isso saberia, que novidade seria. (Pausa breve.) Até porque a alternativa é continuar como empregada de pensão para sempre.
MARIDO (dirigindo-se à MULHER, num tom quase rude): E porque achas que a tua amiga merece mais que isso?
(A MULHER olha o MARIDO, pela primeira vez. Sorri, muito levemente. Depois afasta o olhar, ignorando-o.)
MULHER (dirigindo-se ao AMIGO): Sabes onde estávamos, quando ela me contou estas coisas?
(O AMIGO abana a cabeça, sem olhar a MULHER.)
MULHER: Na cozinha. (Ri.)
(O AMIGO sorri, desconfortável.)
MULHER: Ela ia falando e eu acenava com a cabeça. Descascava umas cebolas e assim, para uma sopa. E ela falava e falava e falava.
AMIGO: Precisava de atenção, de uma audiência.
MULHER: E não precisamos todos? (Pausa breve.) Deixei-a falar, até se cansar. Tentando perceber, tentando identificar-me com o que ouvia; ou evitando identificar-me, não sei. Como alguém que vai ao teatro e está ali na sombra, a escutar, assimilando. (Pausa breve.) E depois, sabes o que fizemos?
(Toca um telemóvel; o AMIGO retira-o do bolso e fica a olhar para ele, sem contrariedade nem excitação; esperando, simplesmente. A MULHER olha-o com curiosidade, o MARIDO também; depois acende um novo cigarro e olha a nuvem de fumo a subir. O telemóvel cessa de tocar mas o AMIGO continua a olhá-lo durante uns segundos; depois arruma-o no bolso.)
MULHER (dirigindo-se ao AMIGO): Vimos televisão. (Breve pausa.) Em silêncio.
AMIGO (com alguma timidez): Não tinham nada para dizer.
MULHER: Não tínhamos nada novo para dizer.
AMIGO: Por vezes, sentimos uma vontade de falar violenta; não é? Precisamos de nos ouvir falar, para confirmar que estamos vivos, que existimos, que ocupamos um espaço e um tempo, que fazemos alguma espécie de diferença. (Pausa breve.) Mas noutras alturas optamos pelo silêncio, porque preferimos esquecer que existimos. Preferimos esquecer o que somos.
MULHER: Estás a querer dizer que o problema é não conseguirmos gostar de nós próprios? Apreciar o que somos?
AMIGO (enfrentando o olhar da MULHER): Se calhar o que quero dizer é que todos temos uma necessidade um pouco mórbida de nos sentirmos especiais e únicos. (Pausa breve.) E depois há alturas da nossa vida, muitas alturas, em que ninguém está particularmente interessado em nos mostrar essa especialidade, ou pior: em que ninguém a vê, a sente. E, um pouco para nos defendermos, deixamos de procurar pessoas que nos mostrem o quanto somos especiais, preocupando-nos apenas em evitar pessoas que nos lembrem o quanto não somos especiais.
(O MARIDO ri com algum desdém, sem erguer o olhar. A MULHER bebe um gole do seu chá.)
AMIGO (com falso entusiasmo): Transformamos os outros em espelhos, é o que é. Olhamos alguém com esperança que esse alguém reflicta aquilo que acreditamos ter de melhor; mas se o que o outro reflecte é menos agradável, a culpa só pode ser do espelho. (Sorri, com algum desconforto.) Acreditamos, ou queremos acreditar, ou fingimos acreditar, que a nossa imagem nunca é má, não pode ser má; quem a reflecte é que a distorce.
(Ninguém se olha. Silêncio longo e opressivo.)
MULHER (em tom meditativo): E por isso receamos, tantas vezes, olhar os outros: com medo de nos encontrarmos a nós próprios. (Pausa breve.) E de não gostarmos do que encontramos.
AMIGO (quase triste, cabisbaixo): Não olhamos para não nos encontrarmos. E não gostamos de ser olhados, para que ninguém nos culpe pelo que possa encontrar.
MARIDO (com alguma indiferença): Então, quem tem sorte são os cegos. Não é?
(A MULHER e o AMIGO olham o MARIDO, com algum desagrado, um pouco surpreendidos. Pouco depois, e quase em simultâneo, começam a rir.)
(Todos se empenham em não olhar para ninguém, em evitar o olhar de alguém.)
MULHER: Um dia, perguntou-me se comigo era parecido. (Pausa breve.) Desatei a rir. (Sorri. Bebe mais um gole de chá.)
(O MARIDO agita-se quase imperceptivelmente mas com visível desconforto.)
MULHER (após um momento de silêncio): Diz ela que o que lhe custa mais é que o marido já nem se esforce em fingir interesse. As pessoas pensam que surpreenderem alguém a fingir é uma desgraça, uma falta de respeito, um motivo para choros e separações; mas ela não concorda. Acha que a partir de certa altura a existência de fingimento é uma espécie de revelação de empenho, de preocupação pelos sentimentos do outro. (Pausa breve.) Claro que surge sempre aquele momento em que já não há surpresa, em que as pequenas rotinas se vão repetindo rotineiramente, em que a previsibilidade se torna algo quase confortável. Mas se alguém se der ao trabalhar de fingir que poderá não ser sempre assim, ou até de fingir que mesmo que seja assim para sempre não faz mal, bom, diz ela, é porque merecemos o esforço; e que bem que isso saberia, que novidade seria. (Pausa breve.) Até porque a alternativa é continuar como empregada de pensão para sempre.
MARIDO (dirigindo-se à MULHER, num tom quase rude): E porque achas que a tua amiga merece mais que isso?
(A MULHER olha o MARIDO, pela primeira vez. Sorri, muito levemente. Depois afasta o olhar, ignorando-o.)
MULHER (dirigindo-se ao AMIGO): Sabes onde estávamos, quando ela me contou estas coisas?
(O AMIGO abana a cabeça, sem olhar a MULHER.)
MULHER: Na cozinha. (Ri.)
(O AMIGO sorri, desconfortável.)
MULHER: Ela ia falando e eu acenava com a cabeça. Descascava umas cebolas e assim, para uma sopa. E ela falava e falava e falava.
AMIGO: Precisava de atenção, de uma audiência.
MULHER: E não precisamos todos? (Pausa breve.) Deixei-a falar, até se cansar. Tentando perceber, tentando identificar-me com o que ouvia; ou evitando identificar-me, não sei. Como alguém que vai ao teatro e está ali na sombra, a escutar, assimilando. (Pausa breve.) E depois, sabes o que fizemos?
(Toca um telemóvel; o AMIGO retira-o do bolso e fica a olhar para ele, sem contrariedade nem excitação; esperando, simplesmente. A MULHER olha-o com curiosidade, o MARIDO também; depois acende um novo cigarro e olha a nuvem de fumo a subir. O telemóvel cessa de tocar mas o AMIGO continua a olhá-lo durante uns segundos; depois arruma-o no bolso.)
MULHER (dirigindo-se ao AMIGO): Vimos televisão. (Breve pausa.) Em silêncio.
AMIGO (com alguma timidez): Não tinham nada para dizer.
MULHER: Não tínhamos nada novo para dizer.
AMIGO: Por vezes, sentimos uma vontade de falar violenta; não é? Precisamos de nos ouvir falar, para confirmar que estamos vivos, que existimos, que ocupamos um espaço e um tempo, que fazemos alguma espécie de diferença. (Pausa breve.) Mas noutras alturas optamos pelo silêncio, porque preferimos esquecer que existimos. Preferimos esquecer o que somos.
MULHER: Estás a querer dizer que o problema é não conseguirmos gostar de nós próprios? Apreciar o que somos?
AMIGO (enfrentando o olhar da MULHER): Se calhar o que quero dizer é que todos temos uma necessidade um pouco mórbida de nos sentirmos especiais e únicos. (Pausa breve.) E depois há alturas da nossa vida, muitas alturas, em que ninguém está particularmente interessado em nos mostrar essa especialidade, ou pior: em que ninguém a vê, a sente. E, um pouco para nos defendermos, deixamos de procurar pessoas que nos mostrem o quanto somos especiais, preocupando-nos apenas em evitar pessoas que nos lembrem o quanto não somos especiais.
(O MARIDO ri com algum desdém, sem erguer o olhar. A MULHER bebe um gole do seu chá.)
AMIGO (com falso entusiasmo): Transformamos os outros em espelhos, é o que é. Olhamos alguém com esperança que esse alguém reflicta aquilo que acreditamos ter de melhor; mas se o que o outro reflecte é menos agradável, a culpa só pode ser do espelho. (Sorri, com algum desconforto.) Acreditamos, ou queremos acreditar, ou fingimos acreditar, que a nossa imagem nunca é má, não pode ser má; quem a reflecte é que a distorce.
(Ninguém se olha. Silêncio longo e opressivo.)
MULHER (em tom meditativo): E por isso receamos, tantas vezes, olhar os outros: com medo de nos encontrarmos a nós próprios. (Pausa breve.) E de não gostarmos do que encontramos.
AMIGO (quase triste, cabisbaixo): Não olhamos para não nos encontrarmos. E não gostamos de ser olhados, para que ninguém nos culpe pelo que possa encontrar.
MARIDO (com alguma indiferença): Então, quem tem sorte são os cegos. Não é?
(A MULHER e o AMIGO olham o MARIDO, com algum desagrado, um pouco surpreendidos. Pouco depois, e quase em simultâneo, começam a rir.)