PACIENTE (um pouco contrariada): Foi um pouco estranho, sabe? Mas pareceu-me, pareceu-nos, tudo muito natural, muito intuitivo e prosaico. Não é que estivéssemos a pensar naquilo, percebe? A analisar o nosso comportamento, a tentar justificá-lo. Não, nada disso. (Pausa breve.) Demos por nós a fazer aquilo, simplesmente; e pareceu-nos natural.
PSIQUIATRA (num tom inquiridor mas um pouco ambivalente): Confortáveis, um com o outro. Juntos, partilhando algo privado, algo íntimo.
(A Paciente acena com a cabeça mas permanece em silêncio. Pausa longa.)
PSIQUIATRA (forçando-se a interromper o silêncio): Mas o que aconteceu? Conte-me.
PACIENTE (após uma hesitação): No início, não soube bem o que pensar daquilo. (Sorri.) Cheguei mais cedo a casa, nem sei porquê, e ouço barulhos na sala; estranhei que ele já tivesse chegado e acho que me assustei um pouco. (O sorriso desaparece.) Sabe como é, pensei logo no pior. Pensei. (Pausa breve. Num tom envergonhado.) A doutora sabe o que eu pensei.
PSIQUIATRA (num tom suave, falsamente vacilante): Uma amante?
(A Paciente acena com a cabeça, sem olhar a Psiquiatra.)
PSIQUIATRA: Mas há algum fundamento para pensar nisso? Algum indício?
PACIENTE (encolhendo os ombros): Não, acho que não.
PSIQUIATRA: Apenas insegurança da sua parte.
PACIENTE (após um silêncio): Talvez. (Sorriso triste.) Porque não?
(Pausa breve.)
PSIQUIATRA (decidida, quase enérgica): Mas continue.
PACIENTE: Entro na sala, silenciosamente. Com medo de o surpreender em algo desagradável mas forçando-me a fazê-lo, incapaz de não o fazer. E no princípio nem percebo bem o que se está a passar. (Sorri.) Está no meio da sala, estendido no chão, a brincar com os carrinhos que o miúdo por ali deixou abandonados. Ali prostrado, a amarrotar a camisa e a gravata, a pasta pousada no sofá; completamente absorvido, distante. A imitar os barulhos, sabe? (Volta a sorrir.) Parece-me um pouco assustador mas, ao mesmo tempo, também enternecedor, percebe? (Pausa breve.) E fico ali a olhar, sem saber o que fazer. Embaraçada, suponho. Por mim, por o estar a interromper, a invadir a sua privacidade; mas também por ele, pelo seu comportamento, pela sua vulnerabilidade.
PSIQUIATRA (após uma pausa, incentivado a Paciente a prosseguir): E quando ele percebe que está lá, a observá-lo, que acontece?
PACIENTE: Há um momento terrível, em que ele me olha com medo e com fúria e sei lá que mais; um olhar muito breve mas tão incisivo, tão doloroso. (Pausa breve.) Assusto-me, devo ter recuado um passo ou dois, com vontade de fugir. Não sei bem. (Pausa breve.) Mas logo depois, aquele olhar dissipa-se; a acusação, o desagrado, o embaraço: desaparece tudo. E sorri.
(Pausa breve.)
PSIQUIATRA (um pouco surpreendida): Sorri?
PACIENTE: Sim, sorri. Um sorriso um pouco envergonhado, um pouco tímido, hesitante, receoso; perscrutador. Mas convidativo, sabe? Um sorriso de quem quer partilhar. De quem quer incluir o outro no sorriso, percebe?
PSIQUIATRA: E como reagiu? Que fez?
PACIENTE: Aproximei-me, simplesmente. E fiz aquilo que talvez fosse menos óbvio, menos natural. (Pausa breve.) Não fiz perguntas; não perguntei o que era aquilo, que significava, que raio se estava a passar. Não perguntei porquê.
PSIQUIATRA: Decidiu aceitar o comportamento dele como algo normal.
PACIENTE: Precisamente. Mas não sei explicar por que o fiz; não foi nada consciente. (Pausa breve.) Não foi nada do género (num tom de voz diferente, dramático): olha para este, ficou maluquinho mas vamos é fingir que está tudo bem. (Pausa breve. Sorriso. Tom normal.) Não, foi algo intuitivo, perfeitamente sincero, autêntico.
PSIQUIATRA (num tom pedagógico, como se recitasse algum de um manual): De certo modo, num plano inconsciente, aceitou o comportamento dele como explicável, como justificável. (Pausa muito breve.) Talvez porque tenha sentido algum grau de empatia com ele, naquele momento.
PACIENTE (receosa): Talvez. (Pausa breve.) Mas suponho que a verdadeira empatia apenas chegou mais tarde. Quando ele, sem que eu fizesse qualquer pergunta, me explicou porque estava a fazer aquilo.
PSIQUIATRA (num tom atento e preocupado, quase subserviente): Descreva-me como foi.
PACIENTE (suspirando de um modo dissimulado, como se estivesse cansada): Sentei-me ali no sofá e fiquei a olhar para ele. Não sei que viu ele no meu rosto mas penso que não encontrou lá nada de mau; embaraço ou sobranceria ou desprezo ou receio, nada disso. Pelo menos, tenho a certeza que não senti nada disso. Nada negativo. E se não o senti, não o poderia mostrar, não é?
PSIQUIATRA (forçando-se a ser paciente): Mas que sentiu, então?
PACIENTE (pensativa e distante): Suponho que apenas curiosidade. Não só de perceber, de compreender. Mas, principalmente, curiosidade de saber o que se iria passar de seguida, de saber o que estava para acontecer.
(Pausa breve.)
PACIENTE (num tom cuidado, quase reverente): Explicou que gostava de regressar à sua infância. Reviver a infância.
(Pausa longa.)
PSIQUIATRA: Por nostalgia? Porque se sentia seguro? (Após uma hesitação.) Para fugir?
PACIENTE: Por tudo isso, suponho. Para fugir, sim. Estava ali a brincar, como uma criancinha, e sentia-se livre, num mundo só seu, que ele próprio controlava. Onde não apareciam surpresas desagradáveis; ou, pelo menos, surpresas desagradáveis que ele não pudesse contornar. (Pausa breve.) Esquecia o mundo real e durante um bocado vivia num mundo imaginário, só seu.
PSIQUIATRA (inconsequente): Como uma criança.
PACIENTE (ignorando a Psiquiatra): O que ele explicou é que não tinha só a ver com controlo. Aliás, a motivação principal nem era a de fugir para um mundo que ele controlava, que dominava. (Pausa breve.) Era, mais, a de fugir para um mundo em que se sentisse relevante. Percebe? (Pausa breve.) Apreciado. Único. De certa forma, indispensável.
PSIQUIATRA (após um momento de silêncio): E quando ouviu isso, sentiu-se identificada.
PACIENTE (um pouco surpreendida): Muito.
PSIQUIATRA (recuperando o controlo da conversa): Fale-me disso. Dessa empatia que sentiu.
PACIENTE (hesitante): Sabe como é. Já falámos disso. (Sorri.) Falamos disso todas as vezes que aqui venho. (Pausa breve.) A monotonia da vida, dos dias. Das relações. A repetição, a banalidade, o aborrecimento, a arbitrariedade. Tudo isso. A sensação de que nada importa muito, que a nossa existência é acidental e inconsequente e irrelevante. Que a nossa presença não é verdadeiramente determinante para nada, para ninguém. (Pausa breve.) Sabe, tantas vezes que me sinto assim. Dispensável. Descartável. Acessória. Sei lá.
(Pausa breve.)
PSIQUIATRA: Mas nunca tinham falado disso? Desse sentimento comum.
PACIENTE (um pouco surpreendida): Nunca. Por isso é que tudo aquilo foi uma espécie de revelação, um inesperado e intuitivo acto de convergência. Surpreendi-o naquele momento vulnerável e ele, simplesmente, falou, confidenciou-se; e eu compreendi-o. Apenas isso. Comunicação básica. Sincronismo. (Pausa breve.) E ele percebeu que o entendia; porque eu sentia algo muito semelhante.
(Pausa longa.)
PSIQUIATRA: Mas, em simultâneo, não se sentiu excluída?
PACIENTE (um pouco surpreendida): Excluída?
PSIQUIATRA (no tom pedagógico de antes): A atitude dele representava, na prática, uma fuga ao mundo real. Ao mundo real que, como é óbvio, a inclui a si. Era uma fuga também em relação a si, à vossa relação.
PACIENTE (pensativa): Mas havia reciprocidade. Porque também eu fugia; também eu queria fugir à nossa relação.
PSIQUIATRA (incisiva): Queria?
PACIENTE (hesitante): Quero.
PSIQUIATRA (após um silêncio): Continuamos, então, a pensar em separação? (Pausa breve.) Em divórcio?
PACIENTE (após um longo silêncio; rindo, nervosamente): É curioso que finalmente tenhamos encontrado um ponto comum, algo que nos une, algo em que estejamos de acordo; e que esse elo comum seja, afinal, a vontade que cada um de nós sente de fugir ao outro. É irónico, não é?
PSIQUIATRA (incisiva): Não respondeu à minha pergunta.
PACIENTE (de novo séria, melancólica; num tom tímido, embaraçado): Não sei.
PSIQUIATRA (surpreendida, um pouco agressiva): Não sabe?
(A Paciente, magoada, abana a cabeça. A Psiquiatra olha-a em silêncio.)
PSIQUIATRA (pesarosa, talvez envergonhada): Desculpe. (Pausa breve.) Mas regressemos àquilo que me estava a contar. Que aconteceu de seguida?
PACIENTE (após uma hesitação): Conversámos. Ele falou-me de como era em criança, das suas longas tardes de brincadeira com os carrinhos; contou-me dos mundos fantasiosos que construía, dos sonhos que tentava concretizar através das brincadeiras que encenava. E eu ouvia, deliciada; compreendia aquilo tudo, porque fora exactamente o mesmo comigo; identificava-me.
PSIQUIATRA: Falou de si? Das suas próprias fantasias, quando era criança?
PACIENTE (sorrindo): Sim. Das barbies.
PSIQUIATRA (correspondendo ao sorriso): Barbies?
PACIENTE (nostálgica): Com ele, foram os carrinhos; comigo, eram as barbies. Contei-lhe como passava horas a fantasiar mundos felizes e ingénuos, perfeitos, seguros, com barbies e kens. E ele ouvia-me, com gosto; surpreendido por se rever em mim, de um modo tão inesperado.
(Pausa breve.)
PSIQUIATRA (num tom profissional e conclusivo): Quando o surpreendeu, ele decidiu não continuar a fugir; deixou-a entrar no seu mundo secreto, partilhou-o consigo. Foi algo instintivo, algo muito revelador. Uma prova de confiança. (Pausa breve.) E você correspondeu, acedendo ao convite. Entrando no mundo secreto; e respeitando-o.
PACIENTE (sorrindo): É mesmo isso. Entrei no mundo dele. Literalmente.
PSIQUIATRA (curiosa): Literalmente? (Sorriso.) Conte-me.
PACIENTE (num tom quase sonhador): Estávamos ali em silêncio, confortáveis; em perfeita sintonia, como já não acontecia há tanto tempo. E não queríamos que o momento terminasse, que tudo regressasse ao que era antes; à normalidade. Queríamos continuar a sentir aquele conforto, aquela empatia. (Pausa breve. Num tom diferente, mais hesitante.) E deve ter sido por isso que ele falou das barbies. Perguntou se eu não me lembrava que tinha uma caixa delas no sótão.
PSIQUIATRA (após uma pausa breve, num tom cuidado e hesitante): E foi buscá-las?
PACIENTE: Fui. (Pausa breve.) E foi então que tudo se tornou um pouco irreal, um pouco pateta. Mas pareceu tão natural, sabe? Pareceu a atitude correcta. (Pausa breve.) Ele a brincar com os carros dele, eu com as minhas bonecas. Consegue imaginar? Os dois esparramados no chão da sala, entretidos como duas crianças. Exactamente como nos teríamos comportado se nos tivéssemos conhecido quando éramos crianças. Felizes e confiantes, arrebatados; indiferentes ao mundo, às conveniências, à normalidade, a tudo. Juntos. (Pausa breve.) Consegue imaginar? Juntos.
PSIQUIATRA (num tom inesperadamente rude e veemente): Sabe, acho que todos os mecanismos que possam salvar a intimidade do casal e reforçar a relação, por mais peculiares que sejam, são válidos. Legítimos. Vale tudo, sabe? Desde que resulte, vale tudo. (Pausa breve.) Mas falamos melhor disto para a semana, está bem?
PSIQUIATRA (num tom inquiridor mas um pouco ambivalente): Confortáveis, um com o outro. Juntos, partilhando algo privado, algo íntimo.
(A Paciente acena com a cabeça mas permanece em silêncio. Pausa longa.)
PSIQUIATRA (forçando-se a interromper o silêncio): Mas o que aconteceu? Conte-me.
PACIENTE (após uma hesitação): No início, não soube bem o que pensar daquilo. (Sorri.) Cheguei mais cedo a casa, nem sei porquê, e ouço barulhos na sala; estranhei que ele já tivesse chegado e acho que me assustei um pouco. (O sorriso desaparece.) Sabe como é, pensei logo no pior. Pensei. (Pausa breve. Num tom envergonhado.) A doutora sabe o que eu pensei.
PSIQUIATRA (num tom suave, falsamente vacilante): Uma amante?
(A Paciente acena com a cabeça, sem olhar a Psiquiatra.)
PSIQUIATRA: Mas há algum fundamento para pensar nisso? Algum indício?
PACIENTE (encolhendo os ombros): Não, acho que não.
PSIQUIATRA: Apenas insegurança da sua parte.
PACIENTE (após um silêncio): Talvez. (Sorriso triste.) Porque não?
(Pausa breve.)
PSIQUIATRA (decidida, quase enérgica): Mas continue.
PACIENTE: Entro na sala, silenciosamente. Com medo de o surpreender em algo desagradável mas forçando-me a fazê-lo, incapaz de não o fazer. E no princípio nem percebo bem o que se está a passar. (Sorri.) Está no meio da sala, estendido no chão, a brincar com os carrinhos que o miúdo por ali deixou abandonados. Ali prostrado, a amarrotar a camisa e a gravata, a pasta pousada no sofá; completamente absorvido, distante. A imitar os barulhos, sabe? (Volta a sorrir.) Parece-me um pouco assustador mas, ao mesmo tempo, também enternecedor, percebe? (Pausa breve.) E fico ali a olhar, sem saber o que fazer. Embaraçada, suponho. Por mim, por o estar a interromper, a invadir a sua privacidade; mas também por ele, pelo seu comportamento, pela sua vulnerabilidade.
PSIQUIATRA (após uma pausa, incentivado a Paciente a prosseguir): E quando ele percebe que está lá, a observá-lo, que acontece?
PACIENTE: Há um momento terrível, em que ele me olha com medo e com fúria e sei lá que mais; um olhar muito breve mas tão incisivo, tão doloroso. (Pausa breve.) Assusto-me, devo ter recuado um passo ou dois, com vontade de fugir. Não sei bem. (Pausa breve.) Mas logo depois, aquele olhar dissipa-se; a acusação, o desagrado, o embaraço: desaparece tudo. E sorri.
(Pausa breve.)
PSIQUIATRA (um pouco surpreendida): Sorri?
PACIENTE: Sim, sorri. Um sorriso um pouco envergonhado, um pouco tímido, hesitante, receoso; perscrutador. Mas convidativo, sabe? Um sorriso de quem quer partilhar. De quem quer incluir o outro no sorriso, percebe?
PSIQUIATRA: E como reagiu? Que fez?
PACIENTE: Aproximei-me, simplesmente. E fiz aquilo que talvez fosse menos óbvio, menos natural. (Pausa breve.) Não fiz perguntas; não perguntei o que era aquilo, que significava, que raio se estava a passar. Não perguntei porquê.
PSIQUIATRA: Decidiu aceitar o comportamento dele como algo normal.
PACIENTE: Precisamente. Mas não sei explicar por que o fiz; não foi nada consciente. (Pausa breve.) Não foi nada do género (num tom de voz diferente, dramático): olha para este, ficou maluquinho mas vamos é fingir que está tudo bem. (Pausa breve. Sorriso. Tom normal.) Não, foi algo intuitivo, perfeitamente sincero, autêntico.
PSIQUIATRA (num tom pedagógico, como se recitasse algum de um manual): De certo modo, num plano inconsciente, aceitou o comportamento dele como explicável, como justificável. (Pausa muito breve.) Talvez porque tenha sentido algum grau de empatia com ele, naquele momento.
PACIENTE (receosa): Talvez. (Pausa breve.) Mas suponho que a verdadeira empatia apenas chegou mais tarde. Quando ele, sem que eu fizesse qualquer pergunta, me explicou porque estava a fazer aquilo.
PSIQUIATRA (num tom atento e preocupado, quase subserviente): Descreva-me como foi.
PACIENTE (suspirando de um modo dissimulado, como se estivesse cansada): Sentei-me ali no sofá e fiquei a olhar para ele. Não sei que viu ele no meu rosto mas penso que não encontrou lá nada de mau; embaraço ou sobranceria ou desprezo ou receio, nada disso. Pelo menos, tenho a certeza que não senti nada disso. Nada negativo. E se não o senti, não o poderia mostrar, não é?
PSIQUIATRA (forçando-se a ser paciente): Mas que sentiu, então?
PACIENTE (pensativa e distante): Suponho que apenas curiosidade. Não só de perceber, de compreender. Mas, principalmente, curiosidade de saber o que se iria passar de seguida, de saber o que estava para acontecer.
(Pausa breve.)
PACIENTE (num tom cuidado, quase reverente): Explicou que gostava de regressar à sua infância. Reviver a infância.
(Pausa longa.)
PSIQUIATRA: Por nostalgia? Porque se sentia seguro? (Após uma hesitação.) Para fugir?
PACIENTE: Por tudo isso, suponho. Para fugir, sim. Estava ali a brincar, como uma criancinha, e sentia-se livre, num mundo só seu, que ele próprio controlava. Onde não apareciam surpresas desagradáveis; ou, pelo menos, surpresas desagradáveis que ele não pudesse contornar. (Pausa breve.) Esquecia o mundo real e durante um bocado vivia num mundo imaginário, só seu.
PSIQUIATRA (inconsequente): Como uma criança.
PACIENTE (ignorando a Psiquiatra): O que ele explicou é que não tinha só a ver com controlo. Aliás, a motivação principal nem era a de fugir para um mundo que ele controlava, que dominava. (Pausa breve.) Era, mais, a de fugir para um mundo em que se sentisse relevante. Percebe? (Pausa breve.) Apreciado. Único. De certa forma, indispensável.
PSIQUIATRA (após um momento de silêncio): E quando ouviu isso, sentiu-se identificada.
PACIENTE (um pouco surpreendida): Muito.
PSIQUIATRA (recuperando o controlo da conversa): Fale-me disso. Dessa empatia que sentiu.
PACIENTE (hesitante): Sabe como é. Já falámos disso. (Sorri.) Falamos disso todas as vezes que aqui venho. (Pausa breve.) A monotonia da vida, dos dias. Das relações. A repetição, a banalidade, o aborrecimento, a arbitrariedade. Tudo isso. A sensação de que nada importa muito, que a nossa existência é acidental e inconsequente e irrelevante. Que a nossa presença não é verdadeiramente determinante para nada, para ninguém. (Pausa breve.) Sabe, tantas vezes que me sinto assim. Dispensável. Descartável. Acessória. Sei lá.
(Pausa breve.)
PSIQUIATRA: Mas nunca tinham falado disso? Desse sentimento comum.
PACIENTE (um pouco surpreendida): Nunca. Por isso é que tudo aquilo foi uma espécie de revelação, um inesperado e intuitivo acto de convergência. Surpreendi-o naquele momento vulnerável e ele, simplesmente, falou, confidenciou-se; e eu compreendi-o. Apenas isso. Comunicação básica. Sincronismo. (Pausa breve.) E ele percebeu que o entendia; porque eu sentia algo muito semelhante.
(Pausa longa.)
PSIQUIATRA: Mas, em simultâneo, não se sentiu excluída?
PACIENTE (um pouco surpreendida): Excluída?
PSIQUIATRA (no tom pedagógico de antes): A atitude dele representava, na prática, uma fuga ao mundo real. Ao mundo real que, como é óbvio, a inclui a si. Era uma fuga também em relação a si, à vossa relação.
PACIENTE (pensativa): Mas havia reciprocidade. Porque também eu fugia; também eu queria fugir à nossa relação.
PSIQUIATRA (incisiva): Queria?
PACIENTE (hesitante): Quero.
PSIQUIATRA (após um silêncio): Continuamos, então, a pensar em separação? (Pausa breve.) Em divórcio?
PACIENTE (após um longo silêncio; rindo, nervosamente): É curioso que finalmente tenhamos encontrado um ponto comum, algo que nos une, algo em que estejamos de acordo; e que esse elo comum seja, afinal, a vontade que cada um de nós sente de fugir ao outro. É irónico, não é?
PSIQUIATRA (incisiva): Não respondeu à minha pergunta.
PACIENTE (de novo séria, melancólica; num tom tímido, embaraçado): Não sei.
PSIQUIATRA (surpreendida, um pouco agressiva): Não sabe?
(A Paciente, magoada, abana a cabeça. A Psiquiatra olha-a em silêncio.)
PSIQUIATRA (pesarosa, talvez envergonhada): Desculpe. (Pausa breve.) Mas regressemos àquilo que me estava a contar. Que aconteceu de seguida?
PACIENTE (após uma hesitação): Conversámos. Ele falou-me de como era em criança, das suas longas tardes de brincadeira com os carrinhos; contou-me dos mundos fantasiosos que construía, dos sonhos que tentava concretizar através das brincadeiras que encenava. E eu ouvia, deliciada; compreendia aquilo tudo, porque fora exactamente o mesmo comigo; identificava-me.
PSIQUIATRA: Falou de si? Das suas próprias fantasias, quando era criança?
PACIENTE (sorrindo): Sim. Das barbies.
PSIQUIATRA (correspondendo ao sorriso): Barbies?
PACIENTE (nostálgica): Com ele, foram os carrinhos; comigo, eram as barbies. Contei-lhe como passava horas a fantasiar mundos felizes e ingénuos, perfeitos, seguros, com barbies e kens. E ele ouvia-me, com gosto; surpreendido por se rever em mim, de um modo tão inesperado.
(Pausa breve.)
PSIQUIATRA (num tom profissional e conclusivo): Quando o surpreendeu, ele decidiu não continuar a fugir; deixou-a entrar no seu mundo secreto, partilhou-o consigo. Foi algo instintivo, algo muito revelador. Uma prova de confiança. (Pausa breve.) E você correspondeu, acedendo ao convite. Entrando no mundo secreto; e respeitando-o.
PACIENTE (sorrindo): É mesmo isso. Entrei no mundo dele. Literalmente.
PSIQUIATRA (curiosa): Literalmente? (Sorriso.) Conte-me.
PACIENTE (num tom quase sonhador): Estávamos ali em silêncio, confortáveis; em perfeita sintonia, como já não acontecia há tanto tempo. E não queríamos que o momento terminasse, que tudo regressasse ao que era antes; à normalidade. Queríamos continuar a sentir aquele conforto, aquela empatia. (Pausa breve. Num tom diferente, mais hesitante.) E deve ter sido por isso que ele falou das barbies. Perguntou se eu não me lembrava que tinha uma caixa delas no sótão.
PSIQUIATRA (após uma pausa breve, num tom cuidado e hesitante): E foi buscá-las?
PACIENTE: Fui. (Pausa breve.) E foi então que tudo se tornou um pouco irreal, um pouco pateta. Mas pareceu tão natural, sabe? Pareceu a atitude correcta. (Pausa breve.) Ele a brincar com os carros dele, eu com as minhas bonecas. Consegue imaginar? Os dois esparramados no chão da sala, entretidos como duas crianças. Exactamente como nos teríamos comportado se nos tivéssemos conhecido quando éramos crianças. Felizes e confiantes, arrebatados; indiferentes ao mundo, às conveniências, à normalidade, a tudo. Juntos. (Pausa breve.) Consegue imaginar? Juntos.
PSIQUIATRA (num tom inesperadamente rude e veemente): Sabe, acho que todos os mecanismos que possam salvar a intimidade do casal e reforçar a relação, por mais peculiares que sejam, são válidos. Legítimos. Vale tudo, sabe? Desde que resulte, vale tudo. (Pausa breve.) Mas falamos melhor disto para a semana, está bem?