EU (quase distraído): E então refugio-me na varanda. Fumo e olho para o horizonte; sento-me no meu cadeirão e fico por aqui, à espera não sei de quê. (Pausa breve. Encolhendo os ombros, num tom displicente.) Sabes como é.
ELE (um pouco vacilante, como se falando apenas para si): A passar o tempo. (Pausa breve.) A adiar.
EU (num tom melancólico, ignorando o comentário): Geralmente, pego num livro e leio meia dúzia de linhas, sem fazer ideia do que estou realmente a ler. Mas insisto, vou fingindo que estou mesmo a ler, linha após linha; por vezes esqueço-me de mudar a página. (Pausa breve.) Uma desculpa, percebes? Uma forma de ter as mãos ocupadas. (Sorrio, muito brevemente.) Para o caso de alguém se preocupar com o que poderei estar a fazer, ter curiosidade. Lembrar-se de mim.
ELE (pensativo): É curioso, isso. Também já reparei. O modo como as pessoas receiam alguém que não esteja permanentemente ocupado, alguém que se atreva a estar simplesmente em stand by, à espera, em contemplação ou distraído ou assim. (Pausa breve.) Como se a imobilidade representasse um perigo, algo contagioso. Não é?
(Encolho os ombros.)
EU (após uma pausa, ignorando o comentário, a pergunta): Por vezes mudo de livro, agarro no primeiro que me atrai a atenção; ou passo por uma livraria e compro qualquer coisa, quase ao acaso. Mas já nem me lembro do último que li até ao fim. (Pausa breve.) Acessórios, nada mais.
(Ele sorri mas não correspondo; o seu sorriso vai-se apagando, lentamente; evitamos que os nossos olhares se cruzem, como se houvesse algum motivo de embaraço entre nós, algum constrangimento silencioso mas palpável.)
EU (tom distante e rígido, vacilante): E é nessas ocasiões que, por vezes, penso nisso. Sinto que não quero estar aqui, que não consigo estar aqui nem mais um instante; mas não há nenhum outro sítio onde queira estar, para onde me apeteça fugir. Sinto-me preso e condenado, completamente impotente, vulnerável. E então penso nisso.
ELE (após um longo silêncio): Saltar.
EU (um pouco chocado pela violência da palavra): Não é que pense obsessivamente ou metodicamente em saltar. Não, é uma ideia que vem e fica por aí um bocadinho, a pairar. Só isso. Uma espécie de possibilidade académica. Acho que nunca chegou a ser uma verdadeira tentação.
(Pausa breve. Acendo mais um cigarro, com gestos arrastados e mecânicos.)
ELE (olhando-me a acender o cigarro): Apenas uma vontade insistente de fazer algo, de agir. Não é? (Pausa breve.) Provocar o destino, precipitar a mudança. Saborear a ilusão de que, afinal, talvez se controle algo, talvez se tenha algum poder.
(Olho-o, um pouco impressionado com a sua análise; aceno com a cabeça e fumo, tranquilamente. Mantemo-nos em silêncio durante muito tempo, pensativos e distantes, esquecidos da presença do outro.)
EU (quebrando o silêncio e contrariando o leve desconforto que se foi instalando entre nós com um tom falsamente bem-disposto e prosaico): Mas sabes no que penso, por vezes? (Rio, forço-me a rir.) Que nunca saltarei porque serei sempre incapaz de me decidir se a altura é a adequada.
ELE (confuso, curioso; agradecido pela quebra do silêncio, pela regressão da tensão que momentaneamente surgiu entre nós e que, agora, se começa a dissipar): Não percebo.
EU (num tom novo e inesperado, genuinamente bem-disposto): O problema é decidir qual a altura certa. Se saltas de um sítio demasiado baixo corres o risco de não conseguir. Só te aleijas ou assim, e ficas pior do que estavas. (Pausa breve.) Mas se a altura é excessiva, demoras demasiado tempo até chegar lá ao fundo; e esse tempo pode ser suficiente para te arrependeres de ter saltado, percebes? E isso seria terrível, insuportável.
(Pausa longa. Ele levanta-se e dá uns alguns passos, hesitantes, pela varanda; olha lá para baixo, demoradamente. Volta a sentar-se e acende um cigarro, com gestos lentos e preguiçosos.)
ELE (num tom desprendido, sem me olhar): Vives num quinto andar. Parece-me perfeito.
(Rimos em simultâneo, com gosto e sinceridade mas também com desespero, com medo; depois o riso desvanece, muito lentamente. Continuamos a fumar, calados, ouvindo os risos estridentes de crianças que brincam algures.)
ELE (um pouco vacilante, como se falando apenas para si): A passar o tempo. (Pausa breve.) A adiar.
EU (num tom melancólico, ignorando o comentário): Geralmente, pego num livro e leio meia dúzia de linhas, sem fazer ideia do que estou realmente a ler. Mas insisto, vou fingindo que estou mesmo a ler, linha após linha; por vezes esqueço-me de mudar a página. (Pausa breve.) Uma desculpa, percebes? Uma forma de ter as mãos ocupadas. (Sorrio, muito brevemente.) Para o caso de alguém se preocupar com o que poderei estar a fazer, ter curiosidade. Lembrar-se de mim.
ELE (pensativo): É curioso, isso. Também já reparei. O modo como as pessoas receiam alguém que não esteja permanentemente ocupado, alguém que se atreva a estar simplesmente em stand by, à espera, em contemplação ou distraído ou assim. (Pausa breve.) Como se a imobilidade representasse um perigo, algo contagioso. Não é?
(Encolho os ombros.)
EU (após uma pausa, ignorando o comentário, a pergunta): Por vezes mudo de livro, agarro no primeiro que me atrai a atenção; ou passo por uma livraria e compro qualquer coisa, quase ao acaso. Mas já nem me lembro do último que li até ao fim. (Pausa breve.) Acessórios, nada mais.
(Ele sorri mas não correspondo; o seu sorriso vai-se apagando, lentamente; evitamos que os nossos olhares se cruzem, como se houvesse algum motivo de embaraço entre nós, algum constrangimento silencioso mas palpável.)
EU (tom distante e rígido, vacilante): E é nessas ocasiões que, por vezes, penso nisso. Sinto que não quero estar aqui, que não consigo estar aqui nem mais um instante; mas não há nenhum outro sítio onde queira estar, para onde me apeteça fugir. Sinto-me preso e condenado, completamente impotente, vulnerável. E então penso nisso.
ELE (após um longo silêncio): Saltar.
EU (um pouco chocado pela violência da palavra): Não é que pense obsessivamente ou metodicamente em saltar. Não, é uma ideia que vem e fica por aí um bocadinho, a pairar. Só isso. Uma espécie de possibilidade académica. Acho que nunca chegou a ser uma verdadeira tentação.
(Pausa breve. Acendo mais um cigarro, com gestos arrastados e mecânicos.)
ELE (olhando-me a acender o cigarro): Apenas uma vontade insistente de fazer algo, de agir. Não é? (Pausa breve.) Provocar o destino, precipitar a mudança. Saborear a ilusão de que, afinal, talvez se controle algo, talvez se tenha algum poder.
(Olho-o, um pouco impressionado com a sua análise; aceno com a cabeça e fumo, tranquilamente. Mantemo-nos em silêncio durante muito tempo, pensativos e distantes, esquecidos da presença do outro.)
EU (quebrando o silêncio e contrariando o leve desconforto que se foi instalando entre nós com um tom falsamente bem-disposto e prosaico): Mas sabes no que penso, por vezes? (Rio, forço-me a rir.) Que nunca saltarei porque serei sempre incapaz de me decidir se a altura é a adequada.
ELE (confuso, curioso; agradecido pela quebra do silêncio, pela regressão da tensão que momentaneamente surgiu entre nós e que, agora, se começa a dissipar): Não percebo.
EU (num tom novo e inesperado, genuinamente bem-disposto): O problema é decidir qual a altura certa. Se saltas de um sítio demasiado baixo corres o risco de não conseguir. Só te aleijas ou assim, e ficas pior do que estavas. (Pausa breve.) Mas se a altura é excessiva, demoras demasiado tempo até chegar lá ao fundo; e esse tempo pode ser suficiente para te arrependeres de ter saltado, percebes? E isso seria terrível, insuportável.
(Pausa longa. Ele levanta-se e dá uns alguns passos, hesitantes, pela varanda; olha lá para baixo, demoradamente. Volta a sentar-se e acende um cigarro, com gestos lentos e preguiçosos.)
ELE (num tom desprendido, sem me olhar): Vives num quinto andar. Parece-me perfeito.
(Rimos em simultâneo, com gosto e sinceridade mas também com desespero, com medo; depois o riso desvanece, muito lentamente. Continuamos a fumar, calados, ouvindo os risos estridentes de crianças que brincam algures.)