1.
Via-te todos os domingos, durante alguns minutos. Conduzias o teu filho pela mão, em silêncio, sem pressa; depois, despedia-lo com um beijo na testa e ficavas a vê-lo desaparecer na entrada da sala, subindo as escadas; por fim, afastavas-te, ainda sem pressa, indiferente à presença dos outros pais; nunca dizias bom dia ou até logo; nunca sorrias; nunca permitias que o teu rosto revelasse qualquer indício de emoção, contrariedade, agitação; vinhas e partias, simplesmente: majestosa; irrelevante.
E eu espreitava-te; porque eras uma mulher bonita e misteriosa, porque o teu silêncio e a tua indiferença me cativavam. Olhava: e imaginava o som da tua voz, a possibilidade do teu sorriso; devaneava um pouco, sem maldade nem consequência, sem verdadeiro interesse.
2.
Até que, um dia, reages: correspondendo ao meu olhar; enfrentando-me: sem hostilidade nem incómodo, suponho que sem verdadeiro interesse (também). Sorrio, tentando disfarçar o desconforto, surpreendido e agradado com a tua súbita atenção; mas tu logo desvias o olhar (entediada, já?), ignorando o meu convite com displicência. E afastas-te no teu passo pausado e lânguido.
Contudo, foi quanto bastou. A troca de olhares repetiu-se nos domingos seguintes, discreta e fugaz mas intencional, consequente; revelando curiosidade e interesse, convite e disponibilidade; revelando uma ténue mas efectiva possibilidade de entendimento.
3.
Foi, pois, com naturalidade que numa dessas manhãs de domingo deixámos os respectivos filhos na catequese e nos afastámos em direcções opostas, para nos encontrarmos lá mais à frente, longe.
Despimo-nos sem pressa, excitados mas calmos, atentos à revelação do corpo do outro e agradecidos pela possibilidade de concretização da fantasia; ouvindo os inconfundíveis e monótonos burburinhos de uma missa de domingo, vindos da televisão de um vizinho. Fodemos, com vigor e ruído, com ânsia, com vontade. Depois, lavamo-nos, vestimo-nos, despedimo-nos: como se nunca tivéssemos estado verdadeiramente juntos.
Voltamos a encontrarmo-nos, minutos depois, à entrada da catequese; sem sorrisos nem palavras, sem olhares. O efeito dos orgasmos já há muito dissipado, quase esquecido. E os miúdos: atrasados.
4.
O encontro repetiu-se nos domingos seguintes; e o sexo, sempre reconfortante, foi-se tornando rotineiro e previsível mas ainda satisfatório, anestésico; perdeu-se a surpresa e a voracidade: inevitavelmente. Mas não nos ocorreu parar, desistir: porque ainda sabia bem, ainda apetecia.
Nunca conversávamos, nunca sorriamos, nunca nos acariciávamos; estávamos ali para foder, apenas; comme d’habitude? Sim. Saciar corpos, distrair espíritos, disfarçar vazios; ocupar tempo. Comme d’habitude.
Julgo que nem sentíamos curiosidade em conhecer o outro, descobrir afinidades, partilhar sentimentos; para quê? Não. Fustigávamos os sexos, gemíamos um pouco, por vezes (três ou quatro, não mais) gritavas. Gostávamos do torpor, dos cheiros que ficavam, do silêncio que os orgasmos traziam consigo; apreciávamos, em simultâneo, a presença e o desinteresse do outro (sós: mas acompanhados). Misturávamos os corpos, simplesmente: e o tempo ia passando. Uma rotina, sim; mas uma rotina diferente da habitual; um intervalo (de rotina) na rotina.
5.
Até hoje.
Não quis tomar banho e vesti-me apressadamente, enquanto permanecias na cama; talvez me olhasses, não sei. Talvez te apetecesse perguntar: porquê a pressa? (Não saberia o que responder.)
Saí, sem te olhar. E aqui estou, à espera que o garoto acabe a catequese. Há outros pais a aguardar (conversas inconsequentes, iguais às da semana passada e às da outra semana); uma ameaça de chuva a pairar; vontade de estar noutro lado qualquer; pressa de caminhar, de ir. E os risos das crianças, lá longe; um carro a passar, demasiado depressa; um gato gordo e imóvel à espreita de uma janela; o vento a sacudir quase imperceptivelmente as árvores. Tu a aproximares-te (sinto o teu cheiro, antes de te ver: também não tomaste banho.)
Aproximas-te, sim. Mas não paras onde costumas aguardar, junto ao habitual pedaço de parede; continuas a caminhar, sem aparente hesitação ou dúvida, sem pressa; aproximas-te: de mim. E eu não me mexo, não olho, não respiro; estendes as mãos e os teus dedos percorrem-me a face, o cabelo; puxam-me para ti. Depois, os lábios: tocando os meus.
Fecho os olhos, incapaz de resistir, incapaz de não corresponder ao teu beijo; incapaz de perceber. Sinto a tua língua acariciar-me, o teu corpo junto ao meu; sinto, também, os miúdos a descerem as escadas em audível correria, aproximando-se. As conversas circundantes silenciam-se (por um momento, pergunto-me se não terá sido apenas para isso que decidiste beijar-me publicamente: para suspender a monotonia das conversas desta gente) mas o vento continua a agitar as árvores, a embalar as folhas; e o gato continuará à janela, olhando.
Quase tudo como antes, como sempre: excepto o beijo, que prossegue. Conduzindo a nada, certamente; apenas prosseguindo.
Via-te todos os domingos, durante alguns minutos. Conduzias o teu filho pela mão, em silêncio, sem pressa; depois, despedia-lo com um beijo na testa e ficavas a vê-lo desaparecer na entrada da sala, subindo as escadas; por fim, afastavas-te, ainda sem pressa, indiferente à presença dos outros pais; nunca dizias bom dia ou até logo; nunca sorrias; nunca permitias que o teu rosto revelasse qualquer indício de emoção, contrariedade, agitação; vinhas e partias, simplesmente: majestosa; irrelevante.
E eu espreitava-te; porque eras uma mulher bonita e misteriosa, porque o teu silêncio e a tua indiferença me cativavam. Olhava: e imaginava o som da tua voz, a possibilidade do teu sorriso; devaneava um pouco, sem maldade nem consequência, sem verdadeiro interesse.
2.
Até que, um dia, reages: correspondendo ao meu olhar; enfrentando-me: sem hostilidade nem incómodo, suponho que sem verdadeiro interesse (também). Sorrio, tentando disfarçar o desconforto, surpreendido e agradado com a tua súbita atenção; mas tu logo desvias o olhar (entediada, já?), ignorando o meu convite com displicência. E afastas-te no teu passo pausado e lânguido.
Contudo, foi quanto bastou. A troca de olhares repetiu-se nos domingos seguintes, discreta e fugaz mas intencional, consequente; revelando curiosidade e interesse, convite e disponibilidade; revelando uma ténue mas efectiva possibilidade de entendimento.
3.
Foi, pois, com naturalidade que numa dessas manhãs de domingo deixámos os respectivos filhos na catequese e nos afastámos em direcções opostas, para nos encontrarmos lá mais à frente, longe.
Despimo-nos sem pressa, excitados mas calmos, atentos à revelação do corpo do outro e agradecidos pela possibilidade de concretização da fantasia; ouvindo os inconfundíveis e monótonos burburinhos de uma missa de domingo, vindos da televisão de um vizinho. Fodemos, com vigor e ruído, com ânsia, com vontade. Depois, lavamo-nos, vestimo-nos, despedimo-nos: como se nunca tivéssemos estado verdadeiramente juntos.
Voltamos a encontrarmo-nos, minutos depois, à entrada da catequese; sem sorrisos nem palavras, sem olhares. O efeito dos orgasmos já há muito dissipado, quase esquecido. E os miúdos: atrasados.
4.
O encontro repetiu-se nos domingos seguintes; e o sexo, sempre reconfortante, foi-se tornando rotineiro e previsível mas ainda satisfatório, anestésico; perdeu-se a surpresa e a voracidade: inevitavelmente. Mas não nos ocorreu parar, desistir: porque ainda sabia bem, ainda apetecia.
Nunca conversávamos, nunca sorriamos, nunca nos acariciávamos; estávamos ali para foder, apenas; comme d’habitude? Sim. Saciar corpos, distrair espíritos, disfarçar vazios; ocupar tempo. Comme d’habitude.
Julgo que nem sentíamos curiosidade em conhecer o outro, descobrir afinidades, partilhar sentimentos; para quê? Não. Fustigávamos os sexos, gemíamos um pouco, por vezes (três ou quatro, não mais) gritavas. Gostávamos do torpor, dos cheiros que ficavam, do silêncio que os orgasmos traziam consigo; apreciávamos, em simultâneo, a presença e o desinteresse do outro (sós: mas acompanhados). Misturávamos os corpos, simplesmente: e o tempo ia passando. Uma rotina, sim; mas uma rotina diferente da habitual; um intervalo (de rotina) na rotina.
5.
Até hoje.
Não quis tomar banho e vesti-me apressadamente, enquanto permanecias na cama; talvez me olhasses, não sei. Talvez te apetecesse perguntar: porquê a pressa? (Não saberia o que responder.)
Saí, sem te olhar. E aqui estou, à espera que o garoto acabe a catequese. Há outros pais a aguardar (conversas inconsequentes, iguais às da semana passada e às da outra semana); uma ameaça de chuva a pairar; vontade de estar noutro lado qualquer; pressa de caminhar, de ir. E os risos das crianças, lá longe; um carro a passar, demasiado depressa; um gato gordo e imóvel à espreita de uma janela; o vento a sacudir quase imperceptivelmente as árvores. Tu a aproximares-te (sinto o teu cheiro, antes de te ver: também não tomaste banho.)
Aproximas-te, sim. Mas não paras onde costumas aguardar, junto ao habitual pedaço de parede; continuas a caminhar, sem aparente hesitação ou dúvida, sem pressa; aproximas-te: de mim. E eu não me mexo, não olho, não respiro; estendes as mãos e os teus dedos percorrem-me a face, o cabelo; puxam-me para ti. Depois, os lábios: tocando os meus.
Fecho os olhos, incapaz de resistir, incapaz de não corresponder ao teu beijo; incapaz de perceber. Sinto a tua língua acariciar-me, o teu corpo junto ao meu; sinto, também, os miúdos a descerem as escadas em audível correria, aproximando-se. As conversas circundantes silenciam-se (por um momento, pergunto-me se não terá sido apenas para isso que decidiste beijar-me publicamente: para suspender a monotonia das conversas desta gente) mas o vento continua a agitar as árvores, a embalar as folhas; e o gato continuará à janela, olhando.
Quase tudo como antes, como sempre: excepto o beijo, que prossegue. Conduzindo a nada, certamente; apenas prosseguindo.