Geralmente, quando ele chaga à esplanada ela já está sentada a uma das mesas do canto; ele senta-se numa outra mesa, afastada, e abre o jornal, movendo as páginas ruidosamente (sinal inequívoco de que não está a ler nadinha). Por vezes, são as duas únicas pessoas sentadas na esplanada mas isso não significa que se estabeleça qualquer tipo de cumplicidade, na verdade nem se olham, talvez por considerarem os seus pensamentos tão importantes e recompensadores que não deixam espaço ou tempo para mais nada. São, portanto, apenas dois estranhos, aborrecidos e sem curiosidade, que se encontram quase diariamente no mesmo espaço; comem torradas e espreitam os telemóveis, nunca falam, nunca sorriem; contemplam muito o horizonte com um olhar melancólico (todos nós o fazemos, não é?) e pouco mais. Talvez sejam tímidos, talvez sejam desinteressados e desinteressantes, talvez se sintam miseráveis e não queiram contagiar ninguém com as suas insatisfações, talvez sejam daquelas pessoas que já desistiram de acreditar que a sua felicidade pode residir noutra pessoa, talvez estejam tão apaixonados por alguém que mais nada no universo interessa; ou talvez acreditem que contemplar o horizonte com atenção suficiente resolva alguma coisa (afinal, também tomam aspirinas com a convicção de que isso soluciona uma série de coisas).
Pois certa tarde algo acontece (talvez se tenham simplesmente fartado do silêncio do horizonte): olham-se. Primeiro, de forma algo tímida e desajeitada, alternativamente; espreitam-se, estudam-se, imaginam e fantasiam, interessam-se; como adolescentes envergonhados (o que é um pouco triste porque ambos têm mais de quarenta anos). Talvez se tentem distrair, passar o tempo; talvez tentem causar ciúmes ao horizonte, irritados por ele nada lhes ter oferecido apesar de tanto olhar. Talvez queiram apenas despertar a atenção do outro, provocar o seu olhar; serem olhados, e desse modo terem a certeza de que existem, terem a certeza de que estão ali e contam (talvez sejam daqueles românticos que acreditam que apenas vale a pena existir quando nos conseguimos ver reflectidos no olhar brilhante de alguém; as pessoas com mais de quarenta anos costumam pensar coisas assim).
Mas passam alguns dias e nova alteração ocorre: os olhares passam a ser assumidos, conscientes, desafiadores; simultâneos. De certa forma, começam a dialogar através do olhar (outra coisa que apenas as pessoas com mais de quarenta anos conseguem fazer de forma competente). Fazem-no, simplesmente, sem saberem bem porquê, para quê. Antes, olhavam para o telemóvel ou para o jornal, para o horizonte; agora, olham para os olhos de quem está mais perto. Afinal, é preciso olhar para algum lado, não olhar nada – não desejar olhar, desistir de olhar – é apenas uma forma de se estar morto, uma desistência definitiva, um pré-suicídio (não pensemos agora nos cegos, por favor). Não estivéssemos a lidar com pessoas com mais de quarenta anos e as consequências desta troca de olhares seria mais ou menos óbvia, mais ou menos previsível, mais ou menos inevitável. Mas neste caso, por culpa de ambos ou de ninguém (coisas do destino e assim; ou talvez seja o horizonte a conspirar, ciumento), nada acontece. As torradas continuam a marchar pelas goelas, os telemóveis nunca tocam, o jornal está cada vez mais ruidoso; o horizonte mantém-se por ali, quietinho; por vezes, outras pessoas sentam-se na esplanada e riem demasiado (rir é uma distracção tão boa como qualquer outra), chega alguém que pede uma moeda ou oferece um jornal de uma religião mais esquisita que todas as outras, um cãozito passa por ali a correr. Olham-se, é verdade; mas mais nada acontece.
Talvez um dia se aproximem e partilhem a mesma mesa; e sorriam, apenas à distância de uns quinze centímetros um do outro; talvez se toquem, daquelas carícias sem conotação sexual (que são as melhores: deixam espaço para tudo); talvez se aconcheguem, se abracem (que iria pensar a moça que todos os dias lhes traz as torradas? Nunca ninguém se preocupa com o que pensam as moças que trazem as torradas, e isso é muito triste). Talvez. Agora, que trocaram olhares (que dialogaram), tudo isso são possibilidades reais e concretas, escolhas possíveis; mas talvez lhes baste a existência da possibilidade, talvez isso seja suficiente. Afinal, se realmente partilhassem uma mesa (o que em si seria um gesto muito significativo, quase um caderno de encargos), que fariam depois? Conversariam, inevitavelmente; mas sobre o quê? Sobre as respectivas famílias e trabalho e livro e, claro, o tempo? Para quê? Talvez para se conhecerem melhor. Muito bem; mas e depois, que viria depois? Sexo? Ok, as pessoas com mais de quarenta anos também gostam bastante de sexo. Mas e depois? Mais conversa, mais sexo? (Na verdade, ambos tinham bastante disso lá em casa; e, ainda assim, fugiam para a esplanada. Para quê? Para procurar variações do mesmo? Talvez não.) E depois? Haveria sempre um depois.
Talvez não fosse absurdo de todo, pensaram (os dois, em simultâneo? Como se tivessem comunicado tal conclusão através do olhar ou assim? Strange…), se simplesmente mantivessem a possibilidade em aberto mas nada fizessem para a concretizar; ambos continuariam nas suas mesas, pensando o que quisessem, retirando do outro tudo aquilo de que precisassem; servindo-se. Não é que conversar – e, já agora, foder – não fosse agradável; seria, certamente. Mas tudo isso acabaria por se esgotar – palavras e orgasmos –, deixando apenas um novo vazio por preencher. Assim, pelo menos, permanecia sempre a possibilidade em aberto (claro que uma pessoa não vive de possibilidades mas, pronto, talvez as pessoas com mais de quarenta anos saibam algo mais sobre a vida, algo que todas as outras pessoas ainda desconhecem), uma possibilidade disponível para quando fosse mesmo, mesmo necessária (e como saberiam que chegara o momento? Strange, indeed…).
Havia, contudo, outra questão a atormentá-los (que talvez se esclarecesse se, simplesmente, falassem – falar a sério, com palavras e tal – um bocado sobre o assunto; mas com gente desta já se vê que nem tudo é óbvio e linear), a prendê-los às respectivas cadeiras. Apesar de tanta comunicação visual, a verdade é que não sabiam (como poderiam saber?) se as suas necessidades seriam coincidentes. Afinal, qual a possibilidade de ambos procurarem precisamente a mesma coisa e logo por coincidência estar logo ali o outro, mesmo a jeito, para a proporcionar? Uma espécie de conjugação cósmica, um alinhamento de astros, que os colocasse um perante o outro em estado de potencial simbiose perfeita (tipo almas gémeas, ou tolice do género: eu preciso “disto” e tenho “aquilo” para dar; e tu tens o “disto” que eu quero e precisas do “aquilo” que eu posso dar… Pessoas com mais de quarenta anos não acreditam neste género coisa – o que não significa que não gostassem de acreditar ou não precisem de acreditar –, são uma espécie de ateus em questões de amor). Pouco provável, portanto. Mas poderia ainda ser mais complicado se, afinal, cada um deles nem soubesse verdadeiramente o que quer, de que precisa (e pode muito bem ser o caso); se nenhum deles souber o que está em causa quando se fala “disto” e “aquilo”.
O pior, pensarão eles, é que até pode acontecer que a felicidade esteja mesmo ali, a rondar pela esplanada, à disposição de ambos (sim, seria esquisito; mas as pessoas esquisitas tendem a atrair esquisitices). E se fosse esse o caso? Como se atreveriam a deixá-la fugir (levada pelo horizonte)? A realidade é que tinham medo, e o medo é muito condicionante; não sabiam o que queriam, e isso ainda é mais condicionante (até parece que, afinal, as pessoas com mais de quarenta anos são iguaizinhas a todas as outras). E o preço a pagar era permanecerem sozinhos, sabendo que isso talvez não fosse inevitável. Sozinhos, com as suas torradas (e, verdade seja dita, ninguém está verdadeiramente sozinho enquanto tiver uma torrada por perto).
Quantas vezes já se teriam cruzado pelas ruas da cidade, antes? Sem sequer se olharem. Porque haveriam de se olhar, afinal? Porque o fariam? E se olhassem, que aconteceria? Como reconhecer a felicidade, quando ela passa mesmo à nossa frente? Como, foda-se, como? (Perguntam-se eles, subitamente irritados. E a verdade é que é um bocado idiota alguém formular a si próprio uma questão para a qual desconhece a resposta; um desperdício de tempo e recursos e expectativas, digamos.) Como se reconhece a felicidade? Talvez o encontro com a felicidade seja apenas uma questão de adivinhação, um acaso total que os poetas tentam disfarçar há séculos apesar de até eles saberem que não passa de casualidade (ok, esta ideia é algo sombria, até para pessoas com mais de quarenta anos). Ou não, poderá não ser acaso, poderá até ter uma qualquer base científica. Mas a realidade é que lá porque um homem e uma mulher se cruzam numa esplanada e se olham com curiosidade e desejo, com interesse, isso não significa forçosamente que estoure logo ali uma história de amor. Ambos o sabem (e a irritação de há pouco esvai-se; é para isso, talvez, que serve o artifício de nos questionar-mos; sempre se tem a ilusão de que se está a fazer algo e, de repente, tudo parece um pouco melhor.).
Tem sido, portanto, assim. Geralmente, quando ele chaga à esplanada ela já está sentada a uma das mesas do canto; ele senta-se numa outra mesa, afastada, e abre o jornal, movendo as páginas ruidosamente (sinal inequívoco de que não está a ler nadinha). E etc. Até que hoje, quando ele pede a habitual torrada, a moça responde: acabou-se o pão para as torradas. E nem sorri, a desgraçada. Nem sorri.