(Escrito a partir de uma fotografia de Julieta Domingos.)
Encontram-se na fila da caixa de pagamento do pingo doce. Ela está a encher um saco com fruta e cereais e iogurtes e bolachas e pensos e chás enquanto ele aguarda pacientemente a sua vez de pagar a lâmpada que fora comprar. A rapariga da caixa vai passando as compras e parece estremecer sempre que se ouve o apito (estará certamente a pensar em quem terá sido o filho da puta que se lembrou de inventar a necessidade das compras apitarem; não falaram disso na acção de formação de duas horas que tinha tido antes de começar no novo emprego e ela não quis perguntar, ainda não sabia que essa é a única questão que conta na vida de um operador de caixa); talvez estivesse triste e desamparada, talvez estivesse simplesmente cansada; não olha ninguém nos olhos nem sorri, como se fosse apenas um elemento do cenário; mas, de qualquer forma, a sua presença ali não conta para nada, naquele momento. Porque está a acontecer uma daquelas coisas absurdas que se vêem nos filmes palermas e que, por simples inveja, toda a gente jura que nunca acontecem na vida real: foi como se o mundo se imobilizasse momentaneamente e nada mais contasse, nada importasse; aqueles dois desconhecidos olharam-se uma vez, duas vezes, três vezes, enquanto as compras continuam a apitar; depois do quarto olhar, sorriem (primeiro ela e logo depois, com um segundo de atraso, ele); e antes da troca do décimo olhar já sabem que irão sair do pingo doce juntos. E saem, ela com os seus sacos de fruta e cereais e iogurtes e bolachas e pensos e chás e ele com a sua lâmpada na mão.
É sábado de manhã, há uma vida inteira pela frente. Ambos sabem que, na verdade, o mundo não se imobilizou; mas sabem, também, que dentro de pouco tempo estarão a foder; e é quase a mesma coisa.
Ela leva-o para sua casa; passam um bocado na varanda a fumar, falam sobre a moça do pingo doce e sobre os apitos das compras; depois, lembram-se que ainda não conhecem os respectivos nomes; sorriem bastante, como se fossem adolescentes nervosos ou assim. Mas ela (que é uma mulher assertiva e resoluta, dominadora, confiante; habituada a liderar as situações em que se envolve ou em que se deixa envolver) costuma preferir foder primeiro, conversar depois. E é o que acontece durante toda a tarde.
Depois do sexo, talvez venha o tempo de conversarem um pouco; de se conhecerem, de partilharem intimidades, de rirem juntos, de se acariciarem; de permanecerem em silêncio e isso parecer-lhes agradável. Ou não, talvez não aconteça nada disso, talvez subsista um leve desconforto, uma despedida apressada. Mas, pensa ela, existe sempre a possibilidade – existe mesmo, ela própria a criou – e isso é suficiente. Adormece tranquila, moderadamente expectante, moderadamente serena. O corpo apaziguado.
Quando acorda, vai encontrá-lo no seu quarto secreto. Certamente que andara a estudar a casa (tentando imaginar se poderia sentir-se feliz ali?, pergunta-se ela), tentando familiarizar-se, e acabou inevitavelmente por desembocar naquele sítio secreto e algo obscuro, disruptivo. A casa fora decorada por ela, num estilo sóbrio e minimalista, com ideias tiradas de revistas estrangeiras; há móveis do ikea e muitas reproduções de fotografias da vivian maier, estantes com livros, iluminação cuidada. Mas uma das divisões fora propositadamente ignorada e permanece completamente despojada, como se não pertencesse àquela mesma casa, como se fosse parte de um mundo diferente; é um quarto vazio e sem luz, degradado, sem decoração nem máscaras ou subterfúgios, sem sinais de vida ou de emoção, onde apenas existe um único móvel: uma cadeira velha.
Ele está a olhar para aquilo, silencioso e confuso; intimidado, talvez. Ela aproxima-se (sentindo-se um pouco ansiosa, o que a irrita e incomoda), observa-o, aguarda uma reacção, um sinal; sabe que o momento determinante chegou, afinal, mais cedo, que está a decorrer naquele preciso instante. E, em simultâneo, pressente que o momento determinante (odeia-se, por ser o tipo de mulher que ainda acredita em momentos determinantes) não está a decorrer como deveria, que mais uma vez não irá decorrer como deveria.
Então ela explica:
- Conheces a história da cinderela, não conheces? Há aquela parte em que ela tem que fugir, à meia-noite, e perde o sapato; então, o príncipe pega no sapato e experimenta-o em todas as mulheres que lhe estendam o pé, sabendo que quando o sapato servir na perfeição estará perante a sua amada. E, naturalmente, pensa ele e deseja ela, quando isso acontecer, quando se descobrirem mutuamente, serão inevitavelmente felizes para sempre. Lembras-te? Gosto muito dessa ideia, apesar de toda a gente achar que é pirosa e estranha e mais não sei quê. Gosto. E acho que é por isso que esta sala está deste modo; digamos que não está bem abandonada, como parece, como pensaste; é mais uma espécie de instalação. Eu sei que é estranho, mas que queres? Não é que esteja à espera que me apareçam príncipes ou assim. Não estou, acredita. Mas acho que aquela cadeira que ali vês é como o sapato da cinderela, não sei se percebes onde quero chegar, representa mais ou menos o mesmo. Não, não é que deseje encontrar o homem que assente perfeitamente na cadeira e, assim, descobrir a felicidade instantânea. Não, nada de tão elementar. E de instantâneo, na nossa vida, apenas podemos contar com as decepções, não achas? Mas deixa ver se consigo explicar-te. É mais ou menos assim: há-de haver alguém neste mundo que entre nesta divisão e diga: olha, não sei qual é a tua ideia mas sabes que me faz lembrar isto? A história da cinderela. Por causa da cadeira e tal. Há-de haver alguém que perceba sem que eu tenha de explicar, que me perceba sem que eu tenha que me explicar. Intuitivamente, para além das palavras e dos olhares e do sexo; apenas porque pensamos parecido, em sintonia; não: em sincronia. Percebes. Acho que é isso.
Ele não sabe o que responder, pelo que fica calado. Ambos olham para a cadeira vazia e o tempo vai passando, vagaroso. Ouve-se o ruído distante de uma televisão (um vizinho solitário, certamente; apenas acompanhado pela televisão, o que é uma das formas mais perversas de solidão que existe). Ela não se sente propriamente triste ou decepcionada, na verdade não sente nada; houvera uma possibilidade – que ela própria criara – e agora já não há. Paciência: amanhã será domingo.
E diz, sem o olhar:
- Não te esqueças da tua lâmpada, quando saíres.
Encontram-se na fila da caixa de pagamento do pingo doce. Ela está a encher um saco com fruta e cereais e iogurtes e bolachas e pensos e chás enquanto ele aguarda pacientemente a sua vez de pagar a lâmpada que fora comprar. A rapariga da caixa vai passando as compras e parece estremecer sempre que se ouve o apito (estará certamente a pensar em quem terá sido o filho da puta que se lembrou de inventar a necessidade das compras apitarem; não falaram disso na acção de formação de duas horas que tinha tido antes de começar no novo emprego e ela não quis perguntar, ainda não sabia que essa é a única questão que conta na vida de um operador de caixa); talvez estivesse triste e desamparada, talvez estivesse simplesmente cansada; não olha ninguém nos olhos nem sorri, como se fosse apenas um elemento do cenário; mas, de qualquer forma, a sua presença ali não conta para nada, naquele momento. Porque está a acontecer uma daquelas coisas absurdas que se vêem nos filmes palermas e que, por simples inveja, toda a gente jura que nunca acontecem na vida real: foi como se o mundo se imobilizasse momentaneamente e nada mais contasse, nada importasse; aqueles dois desconhecidos olharam-se uma vez, duas vezes, três vezes, enquanto as compras continuam a apitar; depois do quarto olhar, sorriem (primeiro ela e logo depois, com um segundo de atraso, ele); e antes da troca do décimo olhar já sabem que irão sair do pingo doce juntos. E saem, ela com os seus sacos de fruta e cereais e iogurtes e bolachas e pensos e chás e ele com a sua lâmpada na mão.
É sábado de manhã, há uma vida inteira pela frente. Ambos sabem que, na verdade, o mundo não se imobilizou; mas sabem, também, que dentro de pouco tempo estarão a foder; e é quase a mesma coisa.
Ela leva-o para sua casa; passam um bocado na varanda a fumar, falam sobre a moça do pingo doce e sobre os apitos das compras; depois, lembram-se que ainda não conhecem os respectivos nomes; sorriem bastante, como se fossem adolescentes nervosos ou assim. Mas ela (que é uma mulher assertiva e resoluta, dominadora, confiante; habituada a liderar as situações em que se envolve ou em que se deixa envolver) costuma preferir foder primeiro, conversar depois. E é o que acontece durante toda a tarde.
Depois do sexo, talvez venha o tempo de conversarem um pouco; de se conhecerem, de partilharem intimidades, de rirem juntos, de se acariciarem; de permanecerem em silêncio e isso parecer-lhes agradável. Ou não, talvez não aconteça nada disso, talvez subsista um leve desconforto, uma despedida apressada. Mas, pensa ela, existe sempre a possibilidade – existe mesmo, ela própria a criou – e isso é suficiente. Adormece tranquila, moderadamente expectante, moderadamente serena. O corpo apaziguado.
Quando acorda, vai encontrá-lo no seu quarto secreto. Certamente que andara a estudar a casa (tentando imaginar se poderia sentir-se feliz ali?, pergunta-se ela), tentando familiarizar-se, e acabou inevitavelmente por desembocar naquele sítio secreto e algo obscuro, disruptivo. A casa fora decorada por ela, num estilo sóbrio e minimalista, com ideias tiradas de revistas estrangeiras; há móveis do ikea e muitas reproduções de fotografias da vivian maier, estantes com livros, iluminação cuidada. Mas uma das divisões fora propositadamente ignorada e permanece completamente despojada, como se não pertencesse àquela mesma casa, como se fosse parte de um mundo diferente; é um quarto vazio e sem luz, degradado, sem decoração nem máscaras ou subterfúgios, sem sinais de vida ou de emoção, onde apenas existe um único móvel: uma cadeira velha.
Ele está a olhar para aquilo, silencioso e confuso; intimidado, talvez. Ela aproxima-se (sentindo-se um pouco ansiosa, o que a irrita e incomoda), observa-o, aguarda uma reacção, um sinal; sabe que o momento determinante chegou, afinal, mais cedo, que está a decorrer naquele preciso instante. E, em simultâneo, pressente que o momento determinante (odeia-se, por ser o tipo de mulher que ainda acredita em momentos determinantes) não está a decorrer como deveria, que mais uma vez não irá decorrer como deveria.
Então ela explica:
- Conheces a história da cinderela, não conheces? Há aquela parte em que ela tem que fugir, à meia-noite, e perde o sapato; então, o príncipe pega no sapato e experimenta-o em todas as mulheres que lhe estendam o pé, sabendo que quando o sapato servir na perfeição estará perante a sua amada. E, naturalmente, pensa ele e deseja ela, quando isso acontecer, quando se descobrirem mutuamente, serão inevitavelmente felizes para sempre. Lembras-te? Gosto muito dessa ideia, apesar de toda a gente achar que é pirosa e estranha e mais não sei quê. Gosto. E acho que é por isso que esta sala está deste modo; digamos que não está bem abandonada, como parece, como pensaste; é mais uma espécie de instalação. Eu sei que é estranho, mas que queres? Não é que esteja à espera que me apareçam príncipes ou assim. Não estou, acredita. Mas acho que aquela cadeira que ali vês é como o sapato da cinderela, não sei se percebes onde quero chegar, representa mais ou menos o mesmo. Não, não é que deseje encontrar o homem que assente perfeitamente na cadeira e, assim, descobrir a felicidade instantânea. Não, nada de tão elementar. E de instantâneo, na nossa vida, apenas podemos contar com as decepções, não achas? Mas deixa ver se consigo explicar-te. É mais ou menos assim: há-de haver alguém neste mundo que entre nesta divisão e diga: olha, não sei qual é a tua ideia mas sabes que me faz lembrar isto? A história da cinderela. Por causa da cadeira e tal. Há-de haver alguém que perceba sem que eu tenha de explicar, que me perceba sem que eu tenha que me explicar. Intuitivamente, para além das palavras e dos olhares e do sexo; apenas porque pensamos parecido, em sintonia; não: em sincronia. Percebes. Acho que é isso.
Ele não sabe o que responder, pelo que fica calado. Ambos olham para a cadeira vazia e o tempo vai passando, vagaroso. Ouve-se o ruído distante de uma televisão (um vizinho solitário, certamente; apenas acompanhado pela televisão, o que é uma das formas mais perversas de solidão que existe). Ela não se sente propriamente triste ou decepcionada, na verdade não sente nada; houvera uma possibilidade – que ela própria criara – e agora já não há. Paciência: amanhã será domingo.
E diz, sem o olhar:
- Não te esqueças da tua lâmpada, quando saíres.