Uma
das minhas estórias favoritas, mais ou menos infantil. É um pouco inspirada numa fotografia
de Sara Peixoto e integra um livro da Associação Zoófila de Leiria para
angariação de fundos, a favor da associação.
1.
Virgílio
estava cansado de apenas ter amigos imaginários. Na verdade, não se lembrava de
ter tido um único amigo verdadeiro em toda a sua vida, pelo que nem sabia muito
bem como seria isso de ter um amigo a sério nem o que poderia fazer com ele.
Mas olhava para os colegas da sua turma, que eram todos mais velhos, e notava
que andavam sempre em grupos inseparáveis de três ou quatro rapazes ou
raparigas, notava que se riam de coisas que só para eles tinham piada, notava
que depois da escola faziam actividades juntos e iam a sítios e partilhavam
boleias, notava que todos eles falavam com animação das brincadeiras e
projectos de fim-de-semana que tinham partilhado com os vizinhos ou com os
primos.
Mas
Virgílio não tinha vizinhos nem primos, não tinha ninguém que o convidasse para
nada; e nas poucas vezes que tivera coragem para convidar alguém, os convites
foram sempre recusados com desculpas um bocado palermas (mas, pensou ele, que
talvez fossem verdadeiras). Continuava, portanto, a passar os fins-de-semana
sozinho, a ler banda desenhada ou a jogar wii ou sentado em frente da televisão
ou a ver coisas no youtube ou a olhar pela janela (se esperasse tempo
suficiente, havia sempre algum velho que tropeçava, um ciclista que era
perseguido por um cão, uma mulher que aparecia a correr e mesmo assim perdia o
autocarro). E como se aborrecia, pois gostaria de fazer todas essas coisas
acompanhado por alguém (alguém com quem pudesse rir e discutir, alguém que lhe
ensinasse truques e ouvisse com atenção as suas descobertas, alguém que ficasse
triste quando fosse hora de ir embora), desde muito cedo que se habituara a
imaginar-se acompanhado por amigos inventados.
Aliás,
a invenção de amigos fora durante algum tempo uma das suas brincadeiras
favoritas porque podia fazer o que quisesse, era ele que mandava e que decidia,
como se fosse um deus todo-poderoso numa banda desenhada. Na realidade, achava
divertido o processo de inventar amigos, de decidir como seriam e o que fariam,
de lhes atribuir defeitos e atributos; mas depois dos amigos estarem prontos,
aborrecia-se um bocado porque, afinal, não podia fazer grande coisa com eles.
Apesar de tudo, sabia perfeitamente que brincar com amigos inventados não era
tão divertido como brincar com amigos verdadeiros mas achava que era melhor do
que nada e, por isso, começou a fingir que se divertia quando brincava com os
seus amigos fictícios, para que eles não se aborrecessem consigo e o
abandonassem; suspeitava, também, que se fingisse com muita força talvez
começasse a acreditar que estava mesmo
a divertir-se.
Assim,
continuara a inventar amigos e a incluí-los nas suas brincadeiras; fazia-o por
hábito mas sem grande vontade, apenas porque não tinha nada melhor para fazer.
Mas depois, certo dia, começou a pensar seriamente no que diriam os seus
colegas de turma se descobrissem que ele brincava com amigos imaginários (como
se ainda fosse um garoto de quatro anos ou assim), começou a pensar como iriam
rir dele e gozá-lo, começou a pensar como seria insuportável se todos o
tratassem como um bebé que ainda deveria andar no jardim-de-infância e não no
quinto ano (e havia ainda outro problema, pensou Virgílio; se nem conseguia
arranjar um amigo como é que alguma vez seria capaz de arranjar uma namorada?
Mas era melhor nem pensar nisso, por enquanto). Assustado, percebeu que ter
imaginação em demasia poderia não ser muito bom.
2.
Por
isso, numa bela manhã de sábado em que apetecia mesmo ir para a rua correr e
saltar, decidiu acabar com os amigos imaginários. Decidiu e foi o que fez:
mandou-os embora; e eles, sempre obedientes, foram. Pela primeira vez na sua
vida, sentiu-se verdadeiramente sozinho no mundo (sabia que antes, apesar de
todos os amigos imaginários que o rodeavam, já estava sozinho no mundo; mas
agora parecia diferente, parecia pior, parecia mais assustador); e ao longo
desse sábado, em que não correu nem saltou porque correr e saltar sozinho é uma
coisa parva de se fazer, percebeu que teria de fazer qualquer coisa para mudar
a sua situação e descobrir uma solução para o seu problema; percebeu que teria
de encontrar um amigo de verdade.
Nessa
noite, Virgílio reflectiu seriamente em como poderia encontrar um amigo a
sério; não sabia o que fazer mas acreditava que se pensasse com força e durante
muito tempo, alguma coisa acabaria por ocorrer. Infelizmente, nem por um
momento pensou no que aconteceria aos seus ex-amigos, agora que os dispensara
de uma forma algo bruta e indelicada. Para onde vão os amigos imaginários
quando quem os imaginou deixa de precisar deles? Estarão algures num sítio
escuro e frio – uma gruta, por exemplo –, à espera que alguém se lembre deles e
os chame? Ou talvez fiquem tão tristes e revoltados por terem sido dispensados
e esquecidos que se transformem em monstros ou fantasmas, regressando à vida de
quem os abandonou através de pesadelos? Evidentemente que poderão,
simplesmente, arranjar emprego como actores – haverá grande diferença entre um
amigo imaginado e uma personagem de telenovela? – e ocupar assim o seu tempo,
entretidos a fingir isto e a representar aquilo; se for assim, menos mal: pelo
menos não estão desempregados. Mas claro que Virgílio não pensou em nada disto,
estava demasiado ocupado a ressonar.
E
o problema persistira, noite fora: afinal, onde vai um rapaz à procura quando
precisa de amigos? Nalgum sítio devem eles estar à espera; ou não?
3.
Virgílio
fartou-se de pensar, pois passava horas a olhar para uma das paredes do seu
quarto com os olhos muito abertos (porque achava que era assim que se fazia
para ter as melhores ideias, como se as ideias precisassem de entrar pelos
olhos – mas se precisavam de entrar, por que não o faziam pelo nariz, por
exemplo? Havia mais espaço; de qualquer forma, parecia-lhe uma discussão
interessante: as ideias já estão na cabeça de uma pessoa ou vêm de fora?).
Pensou
que uma maneira fácil de conseguir um amigo seria pedir aos pais que lhe
arranjassem um irmãozinho; iria demorar algum tempo mas sem dúvida que quando o
rapaz chegasse e crescesse, Virgílio poderia obrigá-lo a ser seu amigo, já que
quem nasce primeiro é que manda. Mas a verdade é que, apesar de não perceber muito
de amizade e assim, calculou que um amigo forçado não deveria ser o melhor tipo
de amigo (apesar de lhe parecer que poderia ser um bocadinho melhor do que um
amigo imaginado). E havia ainda outro problema: e se os pais, por algum motivo
estranho, se lembrassem de arranjar uma menina?
Achou,
portanto, que seria melhor continuar a olhar para a parede e pensar mais, achou
que se pensasse com força suficiente haveria mesmo de ter uma ideia das boas.
Foi então, um bocado de repente (será que as melhores ideias aparecem quando
não se está a tentar ter boas ideias, quando não se está a fazer muita força?),
que teve uma ideia relacionada com uns colegas mais preguiçosos que tinha lá na
turma: podia tentar ajudá-los com as suas tarefas escolares. Poderia, por exemplo,
fazer os seus tpc’s e os trabalhos de grupo e as tarefas que os professores
estavam sempre a inventar; em troca e como agradecimento, talvez os miúdos o
deixassem integrar o seu grupo. Não seria uma forma de amizade especialmente
excitante mas, pelo menos, pertenceria a um grupo, deixaria de andar sozinho. E
apesar da ideia inicialmente parecer boa, logo começou a despertar-lhe algumas
dúvidas; por exemplo: seriam os amigos comprados com favores ou presentes
melhores que os amigos imaginários que já tinha? Talvez, pensou, fossem apenas
uma outra forma de amigos imaginários, já que afinal apenas seriam
verdadeiramente amigos na sua imaginação.
4.
Noite
após noite, continuou a pensar, fixando os olhos esbugalhados na parede branca
(já aborrecido porque tudo isto lhe parecia demasiado complicado; como farão os
adultos para resolver estes problemas?, perguntou a si próprio), em busca de
uma alternativa melhor, mais segura, mais eficaz. E de repente – outra vez de
repente –, ocorreu-lhe uma: procurar a companhia de outros rapazes solitários,
de outros rapazes sem amigos. Com certeza que haveria na escola miúdos que
passavam os fins-de-semana sem companhia, que não tinham quem ouvisse as suas
histórias e partilhasse as suas brincadeiras; miúdos a precisarem de um amigo.
Entusiasmou-se
com este novo plano, imaginando como seria excitante reunir toda essa multidão
de rapazes solitários (seria mesmo uma multidão?) e formar um clube; um clube a
sério, que até poderia ter juras de fidelidade e rituais secretos e outras
coisas engraçadas como as que vira em filmes do Canal Disney; um clube onde
todos os membros teriam a certeza de que haveria sempre alguém disponível para
fazer companhia ou brincar, para ouvir e aconselhar, para ser amigo. Contudo,
logo percebeu que existia um problema grave neste seu plano. Sabia muito bem
que nome se dava aos miúdos que andam sempre sozinhos, aos miúdos que têm boas
notas e não sabem jogar futebol, aos miúdos que são humilhados e por vezes até
levam porrada, aos miúdos que não saberiam o que fazer se de repente uma
rapariga os quisesse beijar; Virgílio sabia porque era o nome que, às vezes,
lhe chamavam: cromo. E a realidade é que ninguém gosta de ser considerado
cromo. Porque haveriam, então, os cromos de querer assumir publicamente o seu
estado de cromisse e formar um clube
de cromos? Percebeu que seria difícil convencer os outros miúdos solitários a
exporem-se, seria difícil convencê-los de que a partir do momento em que
tivessem amigos deixariam de ser vistos como cromos e passariam a ser os miúdos
normais que, na realidade, nunca
tinham deixado de ser.
Uma
coisa era certa: Virgílio andava a pensar demasiado (e as ideias boas que não
vinham, apesar de continuar a olhar para a parede com uma intensidade que
pareceria assustadora caso houvesse alguém ali para a testemunhar; ou talvez o
problema fosse da parede e não dele, da cor da parede, por exemplo; afinal,
sabe-se lá se as ideias de génio não estão escondidas na tinta; e se pedisse ao
pai para lhe pintar o quarto com outra cor qualquer?). E, simultaneamente,
andava cansado de pensar tanto, cansado de inventar planos e não ter com quem
os discutir. Tão cansado que quase caiu na tentação de regressar aos seus
amigos imaginários e esquecer os amigos verdadeiros; quase desistiu. E, antes
de adormecer, ia imaginando como seria mais fácil se os amigos nascessem nas
árvores ou se estivessem à venda nos supermercados ou se viessem nas caixas de
cereais (uma pessoa podia enchê-los, como se enchem as bolas de praia) ou se
pudessem ser alugados como os adultos alugam carros.
5.
E
então, sem aviso prévio nem aparente razão, aconteceu que os pais lhe
ofereceram um cão. Um cãozinho pequenino e envergonhado que ficou parado no
meio da sala a olhar, sem se mexer, sem se importar com nada; se fosse uma
menina, Virgílio talvez dissesse: ai, que
fofinho. Mas Virgílio não era uma menina e, talvez apenas por isso, não
disse nada; decidiu não se interessar pelo cão, pois pareceu-lhe que de pouco
lhe serviria a sua companhia. Poderiam jogar wii juntos? Claro que não.
Poderiam partilhar segredos sobre miúdas? Também não. Na verdade, até ficou um
pouquinho irritado com os pais: precisava de um amigo, não de um cão. Seria
preciso fazer-lhes um desenho?
Nessa
noite, adormeceu chateado com os pais e com a injustiça da vida; e certamente
por isso, teve um pesadelo bastante assustador. Nesse pesadelo, havia uma
família de cães que vivia numa casa de cães que ficava numa cidade de cães;
certo dia, o cão pai decidiu oferecer ao seu cachorrinho mais novo um animal de
estimação, para ele se distrair. Acontece que naquele mundo estranho, os
animais de estimação preferidos dos cães eram meninos. E foi assim que Virgílio
se viu transformado no animal de estimação de um cachorrinho não muito
simpático. O cachorrinho, pouco impressionado com o seu presente, disse aos
pais, lá na sua linguagem de cão: mas que
faço eu com este miúdo, para que serve ele? Será que irá desenterrar ossos
comigo? Não me parece. E foi à
sua vida, deixando Virgílio por ali, sozinho e abandonado, como se a sua
presença naquela casa de cães fosse um estorvo, um incómodo, um embaraço.
6.
Quando
acordou, Virgílio ficou a olhar para a sua parede, primeiro assustado e depois
pensativo. Talvez aquilo não fosse um pesadelo mas uma mensagem qualquer; ou um
aviso. E foi pensando ao longo da noite (Virgílio, já percebemos, é um rapaz
que pensa demasiado mas isso apenas acontece porque tem muito tempo livre;
afinal, pensar é uma maneira de conversarmos connosco próprios; e, se estamos
sozinhos, não podemos conversar com mais ninguém, não é verdade?). Até que
começou a ter algumas ideias curiosas, relacionadas com a sua solidão, com a
sua necessidade de ter amigos. E como toda a gente sabe, as melhores ideias
chegam na forma de perguntas; o que significa que, para afastar a confusão e
chamar o sono, começou a fazer perguntas a si próprio. Por exemplo: o que é, na verdade, um amigo?
Foi
pensando e perguntando e respondendo e bocejando e voltando a perguntar, até
que adormeceu de novo. Mas quando isso aconteceu já tinha chegado a uma espécie
de conclusão; apesar de não perceber muito do assunto, começava a desconfiar
que a amizade era algo que, talvez por ser tão especial e importante, tão
fundamental, poderia afinal ter muitas e diversas formas; e tantas poderiam ser
as formas de amizade existentes que coisas que ele tanto desejava (como,
simplesmente, pertencer a um grupo de rapazes ou ter alguém com quem jogar wii
e comer gomas) talvez nem fossem as manifestações mais importantes e
recompensadoras de amizade.
Ou
seja: poderia acontecer que o seu melhor amigo, quando o encontrasse, nem fosse
um rapaz.
7.
De
manhã, acordou um pouco confuso, por causa do sonho e das conclusões a que
chegara. Era sábado e os pais estavam a tomar o pequeno-almoço; conversavam e
sorriam, olhavam pela enorme janela por onde entrava um sol magnífico, voltavam
a sorrir; pareciam felizes, e se há coisa que um menino goste de ver é os seus
pais felizes. E ali mesmo ao lado da mesa, estava o cachorrinho. Virgílio
olhou-o com algum receio, até decidir que o cão que se encontrava ali à sua
frente nada tinha a ver com o do seu pesadelo; aproximou-se, pensando no que
poderia acontecer se lhe tocasse (seria mesmo fofinho?). Então, de repente,
perguntou à mãe como se chamava; e a mãe respondeu, com um sorriso meio tolo: chama-se Amigo.
Virgílio
achou que era um nome bastante parvo; apesar disso (e porque pensou que aquilo
poderia ser tipo um sinal ou assim), chegou-se mesmo junto do cão, olhou-o de
muito perto, quase o tocou; depois, disfarçando a vergonha, perguntou-lhe: olha lá, gostas de correr no parque? E
logo de seguida, acrescentou numa vozinha mais baixa, mais hesitante: amigo.
8.
Nessa
mesma manhã, Virgílio e Amigo foram ao parque; correram, deram pinotes, fizeram
disparates. Depois, como por magia, apareceu ali um rapazinho que também tinha
um cão e duas miúdas que passeavam com os telemóveis na mão e um rapaz com
aspecto de gótico e dois irmãos com outro cão. O parque era tão grande e,
apesar disso, estavam ali, mesmo perto de Virgílio, olhando e sorrindo, à
espera de qualquer coisa. De repente, estavam todos a conversar e a rir alto,
os cães andavam doidos de alegria e ladravam muito, e até parecia que todos
aqueles miúdos e cães se conheciam há montes de anos e que aquela manhã de
sábado nunca mais iria terminar (e se terminasse não fazia mal porque logo de
seguida viria outra igualzinha); Virgílio, olhando para os seus amigos,
sentiu-se espantado com a normalidade de tudo aquilo, com a felicidade de tudo
aquilo. Afinal, era tão, tão fácil; e disse a si próprio, de maneira que nem
ele ouvisse muito bem: oh Virgílio, o teu
mal é pensares demasiado. (Talvez à noite repetisse o mesmo pensamento ao
cachorrinho Amigo, seu primeiro amigo, seu melhor amigo; e depois, antes de
adormecer, talvez também lhe dissesse: que
importa a cor das paredes quanto temos um Amigo?)
Riu
muito alto, enquanto gritava o nome de todos os amigos que andavam em seu
redor, apenas porque não há nada melhor no mundo – acabara de o descobrir – do
que chamar um amigo e ele olhar para nós com um sorriso.
9.
O
dia seguinte era domingo. Apesar de cansado (nunca correra tanto como no dia
anterior), Virgílio acordou cedo; o sol brilhava lá fora e havia um magnífico
cheiro de torradas fresquinhas a passear pela casa; parecia que o tempo tinha
parado, como sempre acontece nas manhãs de domingo. E a primeira coisa que
Virgílio fez quando acordou foi perguntar ao cachorrinho que o olhava do fundo
da cama, ansioso mas paciente: então,
Amigo? Que queres fazer hoje?
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