Basicamente, era um caracol preguiçoso. Gostava de estar sossegado no seu canto da floresta, indiferente às pressas do mundo. Havia um pássaro seu amigo que lhe dizia: «Oh pá, tu és o único caracol que tem duas conchas. Essa em que vives e onde te proteges da chuva. E outra, que não se vê mas que é a mais rija: aquela onde te escondes do mundo.» O caracol encolhia os ombros (faz de conta, porque os caracóis não têm ombros), o pássaro encolhia os ombros (faz de conta, porque os pássaros não têm ombros) e ficavam os dois a olhar para as árvores. Depois, o pássaro cansava-se do silêncio e falava dos seus voos. Contava como era bom furar as nuvens com o bico e sentir a sua brancura húmida, como era inebriante sobrevoar o mar e sentir os salpicos das ondas nas penas, como gostava de voar na direcção do pôr-do-sol e sentir que um dia chegaria até junto dele, como sentia serenidade quando pousava no cimo do farol e contemplava aquela linha mágica onde o azul do céu se mistura com o azul do mar. E suspirava. Para afastar a fantasia, o caracol dizia uma qualquer coisa pragmática e anti-sonho, como por exemplo: «És palerma. Então não sabes que se conseguisses chegar junto ao sol, te queimavas todo? Pode parecer mais fraquinho quando está a desaparecer mas olha que mesmo assim está quente. Uns cinquenta e nove graus. Pelo menos.» A fantasia afastava-se. E antes de regressar aos seus esvoaçamentos, o pássaro dizia: «Gostava de te levar comigo, um dia. Mas o peso das tuas conchas é demasiado para mim.» Contudo, ambos sabiam que quando partilhava os seus voos e os seus sentires, o pássaro transportava o amigo consigo. Depois do pássaro partir, o caracol percorria os seus caminhos de sempre e deixava neles o seu rasto pegajoso; mas, na verdade, estava a voar; o seu espírito voava. E de tal forma esses voos eram reais que começaram a corroer as suas conchas. Foi por isso que, certo dia, deu por si a planear um voo verdadeiro. Como perceber em que momento um sonho se transforma num plano? Talvez isso seja tão difícil de determinar como perceber onde termina o azul do céu e começa o azul do mar. Mas que importa? Há dois azuis e de repente ambos se transformam apenas num, em algo que é muito mais do que uma simples soma de duas partes. 1+1=∞. «Oh pá, é magia. E não penses mais nisso.», diria o pássaro. Houve, portanto, um momento em que o sonho passou a plano. E, na segurança da sua concha, o caracol começou a preparar uma viagem de descoberta. Um voo. Uma caminhada, que é aquilo que os caracóis fazem quando precisam sair das suas conchas e sentir o mundo. Planeou que caminharia até ao farol, porque de tudo o que o pássaro lhe contava era o farol o que mais o fascinava. Não diria nada a ninguém, limitar-se-ia a ir (talvez amanhã, porque basicamente era preguiçoso. Mas iria…); e após uma longa e difícil jornada até ao topo do farol, contemplaria a imensidão do horizonte e talvez conseguisse sentir-se verdadeiramente parte do mundo; nesse momento, as suas conchas ficariam mais leves, tão leves que nem as sentiria. E poderia aguardar a chegada do pássaro, para o surpreender: «Que andas a fazer por aqui?», diria num tom sério. E depois ririam, juntos. Leves.

(Crónica para Jornal de Leiria)