«Se
agora pudesses fugir, para onde irias?»
«Porque
haveria de querer fugir?»
«Todos
queremos fugir. Porque seria diferente contigo?»
«Tu
queres fugir?»
«Claro
que sim. Por vezes. Muitas vezes.»
«E
porque não o fazes?»
«Porque
para fugir é preciso ter coragem.»
«É?»
«Claro
que sim. A ideia de que a fuga é a opção dos cobardes parece-me bastante parva.
Já pensaste nisso? A maior parte das vezes, a alternativa mais fácil é precisamente
ficar. A permanência é mais fácil, a continuidade é mais fácil. Uma fuga é uma
quebra da ordem, um desafio à ordem. Exige coragem, não achas?»
«Não
sei. Nunca tinha pensado nisso.»
«Não?
Nunca pensas em fugir?»
«Queres
que te diga a verdade? Todos os dias penso em fugir.»
«De
quê?»
«Nem
sei. É preciso fugir de alguma coisa?»
«Geralmente,
fugimos porque algo nos persegue. E a maior parte das vezes esse algo somos nós
próprios. Somos nós que nos perseguimos, que forçamos a nossa própria fuga.»
«Isso
parece-me demasiado filosófico. E dizem que a filosofia é a ciência do saber
pensar mas cá para mim é a ciência do conseguir complicar. É verdade que não
reflecti sobre isto mas parece-me simples. A necessidade de fuga pode ser um mero
desejo de estar noutro lado, não? Quero estar ali e não aqui, apenas isso. E
provavelmente quando chegar ali percebo que já não quero estar lá.»
«É
assim que se passa contigo?»
«Por
vezes, é. Ou melhor, acho que é o que se passa sempre. Mas já me habituei a não
reparar, a fingir que não percebo.»
«A tua
vida é um fingimento?»
«Não
poupas nas perguntas, tu.»
«Desculpa.»
«Não
faz mal.»
«E
então? É?»
«Gosto
de ti. Quero impressionar-te, quero seduzir-te, quero agradar-te; porque gostaria
que também gostasses de mim. Parece simples, não achas? E no fundo podemos
reduzir tudo a isso: à necessidade de ser gostado. Queremos que gostem de nós.
Apenas isso. E se sentimos que não gostam, tendemos a fingir ser algo que não
somos, algo que imaginamos que os outros possam apreciar em nós. Fingimos
porque precisamos.»
«Que
perspectiva sombria da vida.»
«E não
será assim com toda a gente?»
«Preocupas-te
com o que os outros pensam de ti?»
«Por
vezes, claro que sim. Mas também me preocupo com o que penso de mim. No fundo,
a opinião que temos de nós próprios acaba por determinar tudo.»
«E que
opinião tens de ti próprio?»
«Geralmente,
a opinião que tenho de mim é muito condicionada pela opinião que os outros têm
de mim; como se me precisasse de olhar ao espelho, sabes? Se não te olhares ao
espelho durante um mês, acabas por começar a esquecer o aspecto do teu rosto. Podes
até correr o risco de não te reconheceres de imediato. Não acontece isso
contigo?»
«Nem
por isso.»
«E se
não vês o teu reflexo nos outros, também acabas por perder um pouco a noção daquilo
que és. Se ninguém te diz que tem saudades tuas, por exemplo; isso reflecte
algo, penso eu. Reflecte que ninguém gosta de ti o suficiente para sentir
saudades tuas, que ninguém sente verdadeiramente a tua ausência. Que não fazes
falta.»
«E não
poderá apenas significar que as pessoas não querem ou não conseguem dizer que
têm saudades, apesar de as sentirem? Há muita gente que prefere não o fazer,
que julga que dizer que tem saudades é uma forma de pedir atenção, de se
intrometer na vida no outro. Não dizer que tem saudades pode ser um acto de
respeito pelo outro. De respeito pelo seu espaço e pelo seu tempo; e pelos seus
sentires, claro.»
«É
verdade. Mas se toda a gente agir desse modo, ninguém verbaliza o que sente. E
a partir de certo momento, todos seríamos forçados a intuir os sentimentos dos
outros. Porque se não o diz, não podemos ter a certeza. Resta-nos adivinhar.»
«Mas não
é a palavra que confere certeza seja ao que for. Não é por ser dito, por se
transformar em palavras, que um sentimento ganha consistência.»
«Pois
não. Mas por outro lado, se o outro não diz o que sente, como poderás saber?
Vais falar-me de olhares, de gestos, de atitudes? Claro que um olhar pode dizer
mais que uma biblioteca cheia de palavras. Mas o ideal, parece-me, é que o
gesto coincida com a palavra. Que o gesto seja demonstrado mas também dito.»
«Não é
o facto de ser dito que o torna mais real, mais concreto. Um sentimento está
muito além das palavras que o possam descrever. Aliás, as palavras são apenas
uma convenção. Sentes de determinada forma e é conveniente que dês uma
designação a esse sentimento; e então atribuis-lhe uma palavra pré-definida,
que consensualmente descreve aquilo que sentes. No fundo, a mania de reduzir
tudo a palavras é uma forma de preguiça.»
«Achas
mesmo?»
«Diz-me,
o que preferes: que diga que te amo ou que te beije de uma forma que te mostre
o quanto te amo?»
«Tu não
me amas.»
«Mas se
amasse? E já agora, como sabes que não te amo? Porque não te disse? Para ti, o
amor apenas existe a partir do momento em que se anuncia formalmente?»
«Achas
que isso pode vir a acontecer?»
«O
quê?»
«Que
venhas a amar-me.»
«Primeiro
teríamos que definir o que significa amar, não é? Vês como as palavras apenas
complicam as coisas?»
«Estás
a fugir à pergunta.»
«E não
posso fugir às perguntas que quiser? Diz-me tu, então: achas possível que eu
venha a amar-te? Seja lá o que signifique isso de amar.»
«Parece-te
normal estarmos para aqui a falar de amor? Quando, no fundo, nem meia dúzia de
vezes falámos?»
«Também
foges às perguntas, afinal.»
«Se
calhar é demasiado cedo para fazer certas perguntas.»
«O
problema nunca está nas perguntas mas nas respostas. E não devemos fazer as
perguntas se não estivermos preparados para as respostas.»
«És tão
sentenciosa.»
«Estás
preparado para a resposta à tua pergunta? E se disser que te amo? Estás
preparado para isso?»
«Estás
a brincar com as palavras.»
«Tu é
que és defensor do uso da palavra. E se as palavras permitem que se brinque com
elas, é mau sinal. Já com os sentimentos, é mais complicado brincar.»
«Também
estás a brincar com os meus sentimentos, de certa forma.»
«Desculpa,
então. Não, não te amo. Não faço ideia se alguma vez amarei. Nem sei, sequer,
se quero amar-te.»
«Se
queres? Mas então o amor é um acto de decisão? De opção?»
«Tens
razão. Agora, expressei-me mal. Se calhar, estou defensiva.»
«Porquê?»
«Não
sei. No fundo, é como dizes. É um pouco disparatado estarmos aqui a falar de
amor quando mal nos conhecemos.»
«Mas o
facto de o estarmos a fazer talvez seja revelador de algo, não?»
«De que
somos parvos, talvez.»
«Porque
estás defensiva?»
«Talvez
porque o amor me assuste. O amor é avassalador, não se controla, não se liga
nem desliga. Ou existe ou não existe, ponto final. E, por isso, assusta-me.
Porque me vulnerabiliza completamente. O amor é aquilo que, simultaneamente,
mais nos fortalece e enfraquece, já reparaste? O que queria dizer era que não
sei se neste momento da minha vida me quero vulnerabilizar.»
«Tens
medo do que sentes, do que podes sentir?»
«Claro.
Agrada-te a ideia de que possa apaixonar-me por ti? Excita-te?»
«Que
disseste há pouco? Se não estiveres preparada para as respostas, não faças as
perguntas.»
«Agrada-te?»
«Tu
agradas-me.»
«Achas
que esta conversa vai conduzir a algum lado?»
«Todas
as conversas conduzem a algum lado. E gosto do destino desta.»
«Não
achas disparatado falar de futuro quando o presente deveria merecer toda a
nossa atenção? Quando o presente é feliz.»
«É?
Estás feliz?»
«Claro.
Falar contigo faz-me feliz.»
«Porquê?»
«Racionalizar
a felicidade é algo que não me interessa. Uma perda de tempo, acho eu.»
«Sim,
talvez seja. Afinal, o problema da felicidade é o pós-felicidade, não? Estamos
felizes e parece que o mundo parou, nada mais interessa; somos o mundo. Mas de
repente, a felicidade cessa. E pronto. Cessa, simplesmente; ponto final. E os
momentos que se seguem a essa constatação são desoladores. Como se tivéssemos
acabado de perder tudo, como se fossemos forçados a recomeçar sempre e sempre;
como se, no fundo, tudo o que vivemos acabe por ser quase irrelevante.»
«Lá
está, essa é mais uma forma de misturar presente e futuro. Quando o que importa,
acho eu, é desligar o presente do passado e do futuro. Interessa o momento, em
si.»
«Mas o
momento apenas pode ser verdadeiramente valorizado quando enquadrado numa
continuidade, numa linha evolutiva. Cada momento, por si, isolado, vale pouco.
O que o valoriza e potencia, o que o intensifica, é o enquadramento. Este
momento, por exemplo. É um momento feliz, em si próprio. Mas o que o torna
verdadeiramente especial é tudo o que conduziu até aqui e tudo o que seguirá. O
cadenciar de momentos, a sequência.»
«Como
se a vida fosse um dominó. Conheço a perspectiva. As peças que se tocam, que
estão interligadas, que são interdependentes; que apenas cumprem a sua função
quando conjugadas com as outras peças, etc., etc., etc. Já reparaste que é uma
perspectiva que menoriza o valor individual de cada peça? Que insinua que
importa mais o conjunto do que a individualidade. Uma espécie de comunismo. E a
verdade é que não sei se concordo muito com isso. Percebo mas não concordo.»
«Esta
conversa faz-te feliz, mesmo que não tenha qualquer continuidade? Mesmo que
nunca mais nos vejamos? A possibilidade que daqui uns dias nos voltemos a
encontrar não contribui em nada para que este momento, o aqui e agora, seja
mais feliz?»
«Será
que concordamos em alguma coisa?»
«Sim.
Pelo menos numa coisa concordamos. Nisto.»
E beija-a.