Espairecer

Há uma imensidão de árvores nos dois lados da estrada que percorro há quilómetros; por cima, o céu azul. E nada mais. Paro na berma, num recanto que poderia servir para fazer piqueniques ou dormir uma sesta. Saio do carro e caminho ao acaso, espreguiço-me ruidosamente; o canto de pássaros preenche o ar, faz-me companhia; poderia ser interessante passar o resto da tarde a tentar identificar cada som, a tentar imaginar o que cada pássaro estará a dizer. Parecem cânticos, e se cantam certamente estarão felizes. Olho o céu e depois as árvores. Se queremos conhecer verdadeiramente uma pessoa olhamo-la nos olhos; e se queremos conhecer verdadeiramente uma árvore, onde a olhamos? Caminho. Respiro o cheiro das árvores, que é o cheiro mais tranquilizador que alguma vez existirá. Regresso ao interior do carro e abro as janelas, convidando árvores e pássaros a entrarem. Deixo-me estar quieto e de olhos fechados; sem pressa nem ansiedade, tentando decifrar a linguagem dos pássaros. Quando reabro os olhos, vejo o velho; caminha na berma oposta da estrada arrastando uma bicicleta, vagaroso e desalentado. Os nossos olhares cruzam-se mas não existe comunicação, não entendo o mistério do seu olhar. Prossegue, indiferente à minha presença. Depois, pára; após uma hesitação, pousa a bicicleta no chão e atravessa a estrada. Diz: «Boa tarde, amigo; tem um cigarrinho?» Respondo que não fumo. Ele fica um segundo a olhar-me e depois ri. Diz: «Não faz mal, que eu também não fumo; era só para meter conversa.» Não sei o que responder. Diz: «Não falo com ninguém há mais de uma semana.» E desvia o olhar, envergonhado. Pergunto-lhe para onde vai com a bicicleta; responde: «Para lado nenhum, ando apenas a espairecer.» Depois, ganha balanço e não se cala durante um bom bocado. Fala dos filhos que emigraram, da mulher que já morreu, da aldeia que desertificou; fala de como gosta de percorrer a floresta a ouvir os seus barulhos, das tardes que passa a pescar num ribeiro; fala das saudades que tem de jogar às cartas e de discutir sobre bola. Após um silêncio, acrescenta: «Também tenho saudades de ver o mar. Há mais de vinte anos que não o vejo. Mas não posso ir de bicicleta.» E ri. Durante um instante, fantasio: podia oferecer-me para o levar a ver o mar; talvez uns duzentos quilómetros, ida e volta; porque não? Mas ele acorda-me do devaneio: «E você, faz o quê?» Escritor, respondo. E agora sou eu que desvio o olhar, envergonhado. Diz: «Ah, isso é uma coisa boa. Eu mal conheço as letras e tenho pena.» Ficamos a olhar um para o outro, sem saber o que dizer. À nossa volta, o cântico dos pássaros. Diz: «Você, que é escritor e sabe coisas, consegue entender o que dizem os pássaros? Gostava de saber, parecem sempre tão felizes.» Sinto uma vontade inexplicável de lhe dar um abraço; mas sei que não o farei. Abana a cabeça e diz: «Digo cada maluqueira, você não ligue. Faça boa viagem, sim?» Recupera a bicicleta e afasta-se, enquanto eu penso nos abraços que ficam por dar.

Crónica para o Jornal de Leiria.