Um destes dias haverá novo ebook, composto por ilustrações originais criadas por Licínio Florêncio a partir de estórias publicadas no livro Silêncios Entre Nós. Este é um dos exemplos, inspirado nesta estória.
Paulo Kellerman é autor de sete peças, duas óperas e uma curta-metragem. Publicou vinte e dois livros em diversos géneros literários. Concebeu, coordenou ou participou em projectos com dezenas de criadores das mais diversas áreas artísticas. É responsável pelo projecto Fotografar Palavras, que desde 2016 envolveu mais de 330 criadores (fotógrafos e escritores) de 35 países, e foi co-fundador da editora Minimalista. Recebeu o Grande Prémio do Conto da Associação Portuguesa de Escritores.
Dão-se livros # 05
Desafio encerrado e livro atribuído à Conceição.
Obrigado a todos pela participação.
Obrigado a todos pela participação.
Esboço # 77
(Estão há algum tempo a conversar entre si, quase esquecidos da minha presença. Vou comendo sem grande apetite, tentando disfarçar o enfado; por vezes, olho para as mesas em redor, em busca de algo que me distraia.)
EU (falando inesperadamente, surpreendendo-me mais a mim próprio do que a eles): Lembram-se quando eu era garoto e me levavam ao parque? (Olham-me, um pouco contrariados.) Andava por ali, nos balancés e escorregas, a imitar os outros garotos, perguntando-me quando é que começaria a sentir-me excitado e feliz. (Hesito e eles entreolham-se, curiosos.) E vocês sempre à minha volta, lembram-se? A fotografar, sempre a fotografar-me; mas cada um com a sua máquina, e isso espantava-me um pouco; no princípio até me sentia especial por causa disso. Mas depois comecei a estranhar, a perguntar para que serviriam tantas fotografias. Fotografias atrás de fotografias, centenas delas. (Escutam-me com apreensão, desagradados.) Nunca conversavam comigo, em vez disso tiravam-me fotografias e depois comparavam-nas e discutiam-nas, conversavam longamente sobre elas, enquanto eu continuava nos balancés, à espera que me chamassem. Como se as malditas fotografias falassem por mim, representando-me. Lembram-se? (O meu pai é o primeiro a desviar o olhar, o que me surpreende; e agrada.) Nunca me mostravam as fotos, nunca me pediam opinião; as minhas fotos eram um assunto exclusivamente vosso. (Sorrio, tentando que esse sorriso os magoe.) Lembram-se? Falavam sobre as minhas fotos e sobre mim, fartavam-se de falar sobre mim. Mas nunca falavam comigo. Nunca.
(Pego o garfo e levo um pedaço de batata à boca; mastigo devagarinho, reparando como o restaurante está silencioso.)
EU (falando inesperadamente, surpreendendo-me mais a mim próprio do que a eles): Lembram-se quando eu era garoto e me levavam ao parque? (Olham-me, um pouco contrariados.) Andava por ali, nos balancés e escorregas, a imitar os outros garotos, perguntando-me quando é que começaria a sentir-me excitado e feliz. (Hesito e eles entreolham-se, curiosos.) E vocês sempre à minha volta, lembram-se? A fotografar, sempre a fotografar-me; mas cada um com a sua máquina, e isso espantava-me um pouco; no princípio até me sentia especial por causa disso. Mas depois comecei a estranhar, a perguntar para que serviriam tantas fotografias. Fotografias atrás de fotografias, centenas delas. (Escutam-me com apreensão, desagradados.) Nunca conversavam comigo, em vez disso tiravam-me fotografias e depois comparavam-nas e discutiam-nas, conversavam longamente sobre elas, enquanto eu continuava nos balancés, à espera que me chamassem. Como se as malditas fotografias falassem por mim, representando-me. Lembram-se? (O meu pai é o primeiro a desviar o olhar, o que me surpreende; e agrada.) Nunca me mostravam as fotos, nunca me pediam opinião; as minhas fotos eram um assunto exclusivamente vosso. (Sorrio, tentando que esse sorriso os magoe.) Lembram-se? Falavam sobre as minhas fotos e sobre mim, fartavam-se de falar sobre mim. Mas nunca falavam comigo. Nunca.
(Pego o garfo e levo um pedaço de batata à boca; mastigo devagarinho, reparando como o restaurante está silencioso.)
Dão-se livros # 05
E como estamos em época de oferecer presentes e tal, desta vez nem há desafio. A quem interessar receber um livro, basta enviar um email a dizer olá ou quero um livro ou o que calhar; entre todos os emails recebidos até 21 de Dezembro será sorteado o vencedor do livro.
Uma espécie de western: fascículo # 21
Estou, então, a metamorfosear-me em espírito; e tudo o que me apetece pensar é: não dói nada. Resta-me partir por aí, em busca de outras fantasmas; e distrair a solidão.
The end.
The end.
Uma espécie de western: fascículo # 20
Sinto o inesperado e estranho calor de uma expiração acariciar-me o rosto, adivinho a presença de alguém junto de mim, muito próxima, tão próxima quanto possível. Ainda me pergunto se deverei abrir os olhos uma última vez mas opto por não o fazer porque sei que não fará qualquer diferença, prefiro limitar-me a sentir a respiração que me acompanha, a saborear o conforto ilusório e inconsequente de não morrer só.
Talvez seja apenas um qualquer animal selvagem que se prepara para me devorar, aproximando-se porque talvez já me julgue morto; ou será que estou efectivamente morto há algum tempo e ainda não o percebi, aceitei? Afinal, quantos anos demora um homem a morrer? Poderá, por outro lado, ser o Xerife, que finalmente me alcançou, que se prepara para me pontapear suavemente (no ombro, numa perna?), até ter a certeza de que estou morto. (Ou, penso vagamente – sorrindo –, poderá ser o difuso e omnipresente encenador?)
Prefiro, contudo, acreditar que quem está junto de mim é o cavalo; sim, é possível que tenha regressado, para se despedir, para me acompanhar durante o último momento, num gesto fútil de solidariedade animal, de cumplicidade entre seres que pisaram o mesmo chão e respiraram o mesmo oxigénio, seres que compreendem e aceitam a irrelevância das suas existências. (Gostava de lhe ter dado um nome. Mas não faria diferença, afinal.)
Depois, deixo de sentir a respiração tocar-me o rosto; mas sei que está lá, ainda: eu é que não consigo, nem quero, continuar a senti-la. A sentir.
Talvez seja apenas um qualquer animal selvagem que se prepara para me devorar, aproximando-se porque talvez já me julgue morto; ou será que estou efectivamente morto há algum tempo e ainda não o percebi, aceitei? Afinal, quantos anos demora um homem a morrer? Poderá, por outro lado, ser o Xerife, que finalmente me alcançou, que se prepara para me pontapear suavemente (no ombro, numa perna?), até ter a certeza de que estou morto. (Ou, penso vagamente – sorrindo –, poderá ser o difuso e omnipresente encenador?)
Prefiro, contudo, acreditar que quem está junto de mim é o cavalo; sim, é possível que tenha regressado, para se despedir, para me acompanhar durante o último momento, num gesto fútil de solidariedade animal, de cumplicidade entre seres que pisaram o mesmo chão e respiraram o mesmo oxigénio, seres que compreendem e aceitam a irrelevância das suas existências. (Gostava de lhe ter dado um nome. Mas não faria diferença, afinal.)
Depois, deixo de sentir a respiração tocar-me o rosto; mas sei que está lá, ainda: eu é que não consigo, nem quero, continuar a senti-la. A sentir.
Uma espécie de western: fascículo # 19
Mas mudo de ideias, por nenhum motivo; e abro-os, devagarinho. Vejo uma estrela a piscar, envolvida pelo cinzento-escuro do céu; uma única estrela, ocupando toda a imensidão do horizonte, suficiente para iluminar a vastidão do universo. E decido que será ela a guiar-me, que será o seu ténue brilho a conduzir-me e orientar-me entre o negrume que se abate lentamente sobre mim, que reclama o meu regresso.
Fecho os olhos porque sei que a estrela continuará lá, sei que a escuridão do universo se confundirá imperceptivelmente com a escuridão do meu olhar, da minha vida; sei que tudo é (foi) escuridão, e que estou apenas a regressar.
Penso em tudo o que fica para trás, em tudo o que me motivou e distraiu, em tudo o que me entreteve; revivo memórias e prazeres e sensações. Evoco os ingénuos mantras que pretendi que orientassem a minha existência, que me esforcei por cumprir: viver plenamente, com paixão e entrega, com fervor e voracidade, aproveitar e saborear e dissecar cada momento, cada segundo, cada oportunidade. E sorrio, incrédulo com a minha simplicidade, com a minha arrogância. Pergunto-me: para quê, afinal?
Desisto de procurar uma resposta pouco depois; sei, agora, que não existe; que se existir, não altera nada. Mas persisto em sorrir, não sei porquê, para quê; sorrio, simplesmente. E suponho que ficarei aqui para sempre, talvez à espera que o deserto se transforme novamente em floresta; assistindo à lenta imutabilidade da natureza. Tornando-me parte do cenário.
(Reparo que tenho sorrido algumas vezes nestas últimas horas; vários sorrisos, genuínos e pacificadores, serenos; felizes. Sim, suponho que – apesar de tudo – esteja a ser um dia bom.)
Fecho os olhos porque sei que a estrela continuará lá, sei que a escuridão do universo se confundirá imperceptivelmente com a escuridão do meu olhar, da minha vida; sei que tudo é (foi) escuridão, e que estou apenas a regressar.
Penso em tudo o que fica para trás, em tudo o que me motivou e distraiu, em tudo o que me entreteve; revivo memórias e prazeres e sensações. Evoco os ingénuos mantras que pretendi que orientassem a minha existência, que me esforcei por cumprir: viver plenamente, com paixão e entrega, com fervor e voracidade, aproveitar e saborear e dissecar cada momento, cada segundo, cada oportunidade. E sorrio, incrédulo com a minha simplicidade, com a minha arrogância. Pergunto-me: para quê, afinal?
Desisto de procurar uma resposta pouco depois; sei, agora, que não existe; que se existir, não altera nada. Mas persisto em sorrir, não sei porquê, para quê; sorrio, simplesmente. E suponho que ficarei aqui para sempre, talvez à espera que o deserto se transforme novamente em floresta; assistindo à lenta imutabilidade da natureza. Tornando-me parte do cenário.
(Reparo que tenho sorrido algumas vezes nestas últimas horas; vários sorrisos, genuínos e pacificadores, serenos; felizes. Sim, suponho que – apesar de tudo – esteja a ser um dia bom.)
Uma espécie de western: fascículo # 18
Talvez a vida seja apenas o percurso que cada um tem de fazer em busca do lugar onde deve morrer. Fico a pensar nisto durante uns instantes (as dores desapareceram, restando apenas a incapacidade de as sentir; e, por isso, posso distrair-me assim, ingenuamente, pensando nisto e naquilo, em nada, em tudo); depois, digo a mim próprio (voz baixinha, envergonhada): mas que pensamento mais disparatado.
Soube-me bem, falar; e penso em mais qualquer coisa que possa dizer a mim próprio, ouvir de mim próprio. Penso porque é tudo o que me resta, agora: pensar. E olho o céu, assistindo à lenta transformação do azul em cinzento; não há nuvens, não há vento; nada que distraia ou adie, nada que denuncie vida, nada que ofereça esperança. Apenas o silêncio do mundo mesclando-se imperceptivelmente com o silêncio do meu próprio corpo, engolindo-o e dissolvendo-o.
Depois, surge uma pequena nuvem, minúscula – talvez imaginada; e enquanto a olho, enquanto a imagino, regressa o pensamento de há pouco, teimoso e persistente, insidioso: procurar o local adequado para morrer. E por um momento, gostava – o último desejo do condenado – que estivesse aqui alguém que me pudesse explicar (pacientemente, de preferência; sem pressa nem sobranceria) que não importa nada o local onde se morre, do mesmo modo que não importa nada o local onde se vive; aqui ou ali ou acolá: apenas um cenário. Alguém que me explicasse (que me recordasse): talvez a natureza seja apenas um cenário e os homens meros actores e figurantes, que correm e riem e sofrem e sonham e fodem e acreditam e adiam e morrem. Alguém que me sorrisse, quando eu perguntasse: mas, se assim for, quem é o dramaturgo, o encenador? Quem nos escreve, quem nos ensaia?
Tento erguer-me mas não consigo, o corpo deixou de obedecer; então, desisto e deixo-me simplesmente deslizar pela rocha, deito-me na terra rija, fecho os olhos; pergunto-me se os voltarei a abrir, se quero voltar a abri-los.
Acho que não.
Soube-me bem, falar; e penso em mais qualquer coisa que possa dizer a mim próprio, ouvir de mim próprio. Penso porque é tudo o que me resta, agora: pensar. E olho o céu, assistindo à lenta transformação do azul em cinzento; não há nuvens, não há vento; nada que distraia ou adie, nada que denuncie vida, nada que ofereça esperança. Apenas o silêncio do mundo mesclando-se imperceptivelmente com o silêncio do meu próprio corpo, engolindo-o e dissolvendo-o.
Depois, surge uma pequena nuvem, minúscula – talvez imaginada; e enquanto a olho, enquanto a imagino, regressa o pensamento de há pouco, teimoso e persistente, insidioso: procurar o local adequado para morrer. E por um momento, gostava – o último desejo do condenado – que estivesse aqui alguém que me pudesse explicar (pacientemente, de preferência; sem pressa nem sobranceria) que não importa nada o local onde se morre, do mesmo modo que não importa nada o local onde se vive; aqui ou ali ou acolá: apenas um cenário. Alguém que me explicasse (que me recordasse): talvez a natureza seja apenas um cenário e os homens meros actores e figurantes, que correm e riem e sofrem e sonham e fodem e acreditam e adiam e morrem. Alguém que me sorrisse, quando eu perguntasse: mas, se assim for, quem é o dramaturgo, o encenador? Quem nos escreve, quem nos ensaia?
Tento erguer-me mas não consigo, o corpo deixou de obedecer; então, desisto e deixo-me simplesmente deslizar pela rocha, deito-me na terra rija, fecho os olhos; pergunto-me se os voltarei a abrir, se quero voltar a abri-los.
Acho que não.
Uma espécie de western: fascículo # 17
O cavalo já se refrescou, agora passeia nervosamente, mantendo-se afastado de mim, ignorando-me; em silêncio absoluto, como se desejasse que não desse por ele, que o esquecesse. E sei o que isto significa: mas não me revolto. Permito que fuja, que me abandone.
Quando, um pouco mais tarde, o procuro com o olhar e não encontro, sou incapaz de me sentir mais só que antes. E tento não ter pena de mim, não pensar – demasiado – em arrependimento. A noite cai, transmitindo-me tranquilidade; e talvez seja melhor assim: morrer devagarinho, sem medo nem ansiedade, sentindo o silêncio e escutando a solidão. Sem testemunhas.
Sim, encontrei um bom lugar para morrer; e pergunto-me se alguém terá escolhido este refúgio para morrer, antes; se alguém o escolherá no futuro. Ou se terei encontrado, finalmente, o meu lugar no mundo.
Quando, um pouco mais tarde, o procuro com o olhar e não encontro, sou incapaz de me sentir mais só que antes. E tento não ter pena de mim, não pensar – demasiado – em arrependimento. A noite cai, transmitindo-me tranquilidade; e talvez seja melhor assim: morrer devagarinho, sem medo nem ansiedade, sentindo o silêncio e escutando a solidão. Sem testemunhas.
Sim, encontrei um bom lugar para morrer; e pergunto-me se alguém terá escolhido este refúgio para morrer, antes; se alguém o escolherá no futuro. Ou se terei encontrado, finalmente, o meu lugar no mundo.
Uma espécie de western: fascículo # 16
Sim, talvez não seja um abutre; e anjo não será: que faria ele por aqui? Penso, então, em fantasmas, nos fantasmas das velhas lendas. Vou sentindo o sangue fugir de mim, irredutível, enquanto penso como a pradaria estará certamente repleta de fantasmas índios, vagueando sem objectivo nem destino, sem pressa, enclausurados na sua imortalidade; e quase me apetece ceder à tentação, ao desvario, de abrir bem os olhos e procurá-los por entre a cintilação da luz, por entre as palpitações do silêncio. Nem que fossem aqueles temidos espíritos que pertenceram, um dia, a homens cruéis e, agora, ocupam a sua eternidade percorrendo campos e planícies, ou montanhas e pradarias, em busca de pessoas que possam perseguir e amaldiçoar, tornando-as consequentemente homens cruéis e, após a morte, espíritos temidos, numa espécie de imparável contágio malévolo.
Pergunto-me quantas vezes já me terei cruzado com um destes espíritos; pergunto-me, também, quanto tempo faltará para me tornar um deles.
Pergunto-me quantas vezes já me terei cruzado com um destes espíritos; pergunto-me, também, quanto tempo faltará para me tornar um deles.
Uma espécie de western: fascículo # 15
Quando chegamos junto ao riacho, paramos; permaneço durante alguns instantes a olhar o pedaço de água cristalina que desliza preguiçosamente entre tufos de ervas selvagens e rochas de colorações misteriosas, como se esperasse autorização de alguém, como se já nem o privilégio de pisar terra firme me fosse concedido; por fim, quando admito que afinal estou apenas a ponderar se valerá a pena ou não, forço-me a descer do cavalo com lentidão; sento-me numa rocha, aperto a ferida com a mão. Olho o charco que as gotas de sangue vão formando lentamente, segundo após segundo, reparo como o vermelho é menos vívido do que algumas horas atrás.
Um abutre passa, lá por cima; o suave ruído provocado pelo seu voo parece-me sinistro, malévolo; felizmente, já não há nada a temer, esgotei o medo; e por isso não o olho, não me protejo. De qualquer modo, talvez nem seja um abutre. Não importa; até poderia ser um anjo: que se foda.
Um abutre passa, lá por cima; o suave ruído provocado pelo seu voo parece-me sinistro, malévolo; felizmente, já não há nada a temer, esgotei o medo; e por isso não o olho, não me protejo. De qualquer modo, talvez nem seja um abutre. Não importa; até poderia ser um anjo: que se foda.
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