O nosso funeral


Uma estória antiga, retirada de um dos livros. Gostaria de lhe ter dado outro título: estou cheio de fome. :)
 
1.
Gostava que me fizesses feliz mais uma vez, uma última vez.
E ajudo-te: contorço-me, ajeito o corpo para te receber melhor, para te sentir melhor; agito-me e gemo, aperto-te com fúria. Desejo que dure, que não tenha fim. Mas tem, claro que tem: o teu sexo desfalece, o teu corpo perde a tensão e o vigor, o teu olhar torna-se amorfo. Lentamente, desligas-te de mim; abandonas-me e esqueces-me, regressas a ti. Passaram apenas alguns instantes e o prazer já se dissipou, transformado em recordação. Fecho os olhos, apenas para sentir a volúpia dolorosa e decepcionante de voltar a abri-los e perceber que nada mudou, que o tempo não passou (apesar de, realmente, ter passado).
Não. Não cheguei a ser feliz: não é suficiente querer.

2.
Levantas-te, finalmente. Gemes um pouco, já não és jovem, já não te preocupas em fingir que és ágil; caminhas, vagaroso, até à casa de banho: escondes-te. Não me olhas: talvez tenhas vergonha, como eu tenho. Aperto-me nos meus próprios braços e olho, absorvo, gravo; sei que vou sentir saudades deste momento, algures no futuro; sei que estes instantes serão recordados e revividos, talvez com nostalgia, talvez até com afecto. Apesar de não ser uma ocasião particularmente feliz: foi apenas um momento artificial, um cerimonial a que nos obrigámos, um ritual em que não acreditámos mas que decidimos cumprir. Uma despedida.
Ainda não é a despedida oficial: passaremos mais algumas noites nesta casa, juntos; mas não voltaremos a tocar-nos, não voltaremos a trocar carícias, olhares, prazeres, intimidades, palavras. Aliás: já não o fazemos há muito, o que acabou de acontecer foi uma excepção; cedemos à volúpia da última vez. Agora, serão apenas os advogados a trocar, serão eles a falar por nós. Depois, um juiz pronunciará umas palavras protocolares, talvez bata algures com o seu velho martelo de madeira: e voltaremos ao que éramos antes das nossas vidas se cruzarem, apagaremos estes anos em comum; seguiremos caminhos separados.
Antes, havia fadas com varinhas mágicas; agora, a magia pertence aos juízes: batem com os seus martelinhos e tudo muda. Por magia.

3.
Por enquanto, eis-nos no mesmo quarto. Juntos. O cheiro a sexo ainda a pairar: tão desagradável. Luz amarelada. Silêncio. Embaraço.
Teremos, em comum, alguns dias de desabituação; ao longo destes últimos meses fomos aprendendo a desamarmo-nos, trilhando o percurso inverso ao que percorremos no início, regredindo; tentámos reconquistar as nossas individualidades, recuperar os pedaços que cada um cedeu (ou emprestou?) para a construção do nosso amor; pedaços de eu, que formaram um nós. Mas o nós morreu e há que realizar o funeral, enterrar o cadáver bem fundo, para que o cheiro não nos sufoque.
É o que começámos a fazer, há pouco: o nosso funeral. E agora, teremos estes dias: para nos habituarmos a estar vivos.

4.
Regressas da casa de banho e caminhas pelo quarto, confuso, talvez um pouco perplexo. Vejo que te esforças por encontrar um assunto mas não consegues falar, não tens nada para me dizer; já dissemos tudo, esgotámos a provisão de palavras que cada casal tem à sua disposição. Sentimo-nos embaraçados, porque não sabemos o que dizer, porque não nos conseguimos olhar; tememos enfrentar o olhar do outro porque receamos o que poderíamos encontrar, o que significa que não nos conhecemos; não nos conhecemos ou nunca nos conhecemos verdadeiramente? Tanto faz, é igualmente triste.
Não sabemos o que fazer com estes restos de intimidade, envergonha-nos a nudez; por isso, limitamo-nos a esperar que o tempo vá passando, procuramos desesperadamente distracções. Concentramo-nos com fúria na tonalidade da luz ou na intensidade dos cheiros ou nas sombras misteriosas e algo lúgubres que se formam nas paredes e logo se metamorfoseiam noutras sombras misteriosas e algo lúgubres ou nos sons abafados e enigmáticos que chegam do exterior ou na textura suave da almofada ou no zumbido distante de uma melga esvoaçante ou no sopro quase sincronizado das nossas respirações; coisas assim: banais e irrelevantes, esquecíveis.
Olho em redor, sentindo-me uma espectadora da minha vida, e não a protagonista; na verdade, sinto-me distante e um pouco indiferente ao que acontece, ao que não acontece, ao que poderia acontecer; penso, apenas: estes são mesmo os últimos momentos. Penso, também: isto pode ser um começo.

5.
De repente, olhas-me; em simultâneo, a tua respiração suspende-se por um breve instante. Sei o que isso significa: vais falar. E quase acredito que irás dizer uma palavra mágica, algo que suspenda ou adie esta patética tragédia e nos devolva ao passado, algo que nos precipite na direcção da felicidade que, um dia, vislumbrámos e perseguimos. Apetece-me acreditar desesperadamente em palavras mágicas, no poder redentor das palavras mágicas (em contraponto ao poder assassino dos martelos mágicos). Desejo quase fervorosamente que as tuas palavras sejam mágicas, anseio pela tua magia. Mas tu dizes: estou cheio de fome.