Uma estória antiga, retirada de um dos livros. Escrita a partir do quadro "Artistin
(Marcella)", de Ernst Ludwig Kirchner
1.
Receio que entres inesperadamente na
sala e me encontres – de novo –
assim: melancólica e distante, quase triste, encavalitada no sofá e enroscada a
mim própria, de olhar perdido na janela, no horizonte longínquo, em nada.
Porque talvez não te conseguisse mentir – uma
vez mais –, quando me perguntasses a origem desta passividade, o motivo
deste auto-afastamento (como lhe chamaste na última vez em que discutimos;
lembras-te?). Sim, talvez não conseguisse: porque, afinal, mentir-te exige-me
um esforço maior, cada vez maior, do que a simples e espontânea admissão da
verdade; e não sei – já não sei – se
justificas esse esforço, esse empenhamento.
Confesso (por enquanto: apenas a mim
própria) que não percebo porque motivo tenho continuado a esforçar-me, a
investir em ti e nesta relação; não percebo porque razão tenho insistido em
fingir, ou em acreditar. Não percebo mesmo, sou incapaz de entender. Porque a
verdade, a tal verdade que talvez te confessasse se entrasses agora aqui e me
olhasses com a tua habitual sobranceria e displicência, com a tua habitual
falta de atenção, é que estou cansada. Sim, suponho que talvez te falasse do
meu cansaço, se entrasses agora, precisamente agora; um cansaço múltiplo e
abrangente, caleidoscópico e labiríntico, formado por inúmeros e minúsculos
cansaços, por vezes antagónicos, por vezes complementares. E entre eles (nem
sequer o mais corrosivo, devo admitir): o cansaço de ti.
2.
Fecho os olhos durante um momento,
escutando os ténues sons da rua, indícios vagos de vidas distantes e
irrelevantes; um bebé que chora, o riso estridente e desagradável de uma
mulher, música num telemóvel; o rumor do trânsito; um grito imperceptível, uma
sirene, um avião longínquo; outro riso, também de mulher.
Volto a abrir os olhos: cansada de os ter fechados. Espreito a
porta e aguardo, sem ansiedade ou apreensão, sem expectativa: apenas porque é
suposto aguardar algo, a cada momento que passa, em cada momento que se vive.
Coço distraidamente o interior da coxa, sentindo algum desconforto em tocar a
minha própria pele; e penso em me levantar do sofá e caminhar até à janela,
olhar o avião que – ainda – passa
algures, quase imperceptível; ou ir à cozinha, beber água. Caminhar um pouco
pelo apartamento; e regressar ao ponto de partida, regressar aqui, ao meu sofá:
depois de gastar – consumir; preencher
– mais alguns minutos de vida.
Sinto, com surpresa, uma inesperada e
difusa vontade de te ver e de te olhar e de te falar e – até – de te sorrir: sempre seria – serias – uma distracção,
momentânea mas talvez eficaz; porque, afinal, estou tão – tão – cansada de mim própria. Mas o desejo (ou o prenúncio de algo
que quase chegou a ser um desejo) logo se dissipa, inconsequente e supérfluo;
deixando-me ainda mais vazia.
3.
Depois, logo depois, aborreço-me de espreitar a porta. E fecho os olhos:
cansada de os ter abertos.