Vê-se uma
sala ampla, repleta de pessoas que caminham em diversas direcções, com
determinação mas sem pressa, como alguém que têm um destino mas não está
particularmente ansioso por lá chegar; todas as pessoas que se vêem estão
sozinhas, em silêncio, com expressões pesadas; ninguém sorri ou ri.
A câmara
fixa-se num homem que está sentado num canto da sala, olhando fixamente para
alguém. A sua expressão é atenta, curiosa, intrometida. Depois, a câmara segue
o seu olhar, incidindo por fim na pessoa que ele observa. É uma mulher que está
sentada, ali próximo. Parece aborrecida e enfadada, como se aguardasse a
chegada de alguém que está muito atrasado. Olha para o telemóvel com
impaciência.
No momento
em que a câmara a fixa, chega um homem, apressado. Aproxima-se dela e beija-a,
de forma rápida e quase desinteressada.
HOMEM (algo
abrupto, sem fazer qualquer saudação; como se pretendesse disfarçar o seu
atraso): Tens uns óculos novos?
MULHER (olhando
para o telemóvel): Hum hum.
HOMEM (distraído):
Gosto. Dão-te um ar mais austero.
MULHER (olhando-o
subitamente com desagrado): Austero? Ok. Mas olha lá: diz-me uma coisa.
HOMEM (desinteressado):
Sim?
MULHER (incisiva
e acusadora): Não costumas olhar muito para mim, pois não?
HOMEM (surpreendido):
O quê?
MULHER (irritada):
Estamos juntos há tanto tempo, tão habituados um ao outro, que tu já deixaste
de me olhar no rosto e nos olhos e assim. Não olhas para mim.
HOMEM (defensivo):
Estás a exagerar.
MULHER (irritada):
Se calhar, não estou. Sabes há quanto tempo uso estes óculos?
HOMEM (quase
indiferente): Dois dias?
MULHER (suspirando):Três
semanas.
HOMEM (envergonhado
e confuso): Ok.
MULHER (acusadora):
E durante este tempo todo, não reparaste na merda dos óculos.
HOMEM (incomodado):
Ok, desculpa lá.
MULHER (pensativa):
Não te percebo. Não sei se não me olhas ou se olhas mas não reparas. Ou, se
calhar, até olhas, e isso não te serve de nada. Se calhar até viste logo a
porcaria dos óculos mas não te apeteceu dizer nada, levaste este tempo todo a
interessar-te. Falaste neles, agora, para disfarçar o teu atraso.
HOMEM (irritado):
Olha, estava só a tentar fazer conversa. Está bem? A tentar fazer conversa. Só
isso.
MULHER (subitamente
desinteressada dele): Ok. Whatever.
HOMEM (afastando-se,
irritado): Vou ver se encontro o raio da Catarina, que estamos atrasados.
A mulher não
responde e volta a concentrar-se no telemóvel, enquanto o homem se afasta,
apressado. Durante todo este diálogo continuaram a passar pessoas por eles e
foram observados pelo homem sentado, que escutou toda a conversa.
Pouco
depois, a mulher é abordada por uma outra mulher, que chega da direcção oposta
à que o homem tomara.
MULHER 2 (apressada):
Então, onde anda o Ricardo?
MULHER (arrumando
o telemóvel): Anda à tua procura.
MULHER 2 (irritada):
Oh que cena. Nunca mais nos orientamos, assim.
MULHER (indiferente):
É o normal, não é?
MULHER 2 (decidida
e pragmática): Anda lá, vamos à procura dele. (A mulher levanta-se, sem grande entusiasmo mas também sem se opor.
Começam a caminhar na direcção em que o homem seguiu pouco antes.) Olha,
que giros. Gosto muito dos teus óculos novos.
MULHER (algo
entusiasmada): São muito fixes, não são? (E depois de uma pequena pausa, quando estão mesmo a passar junto do
homem que acompanhou toda a cena.) Fui buscá-los esta manhã mas parece que
sempre os usei. Uma maravilha.
Nesse
instante, o homem ri. Uma gargalhada enorme, que se ouve em toda a sala. Olha a
mulheres e ri, sendo ignorado por elas, por toda a gente. Como se nem estivesse
ali, como se o riso não tivesse qualquer valor, não existisse.
A câmara
acompanha as mulheres que se afastam, misturadas na confusão de gente apática.
Depois, aproxima-se do homem que lentamente deixa de rir, até se tornar tão sério
como estava no início. Continuam pessoas a caminhar por todo o lado, sérias e
silenciosas.