Claro que nos dias bonitos também se morre; e
quando acontece alguém morrer num dia bonito, é particularmente difícil aceitar
essa morte, por nos parecer mais desconcertante e mais insuportável, mais
injusta, mais desnecessária, do que se ocorresse na cinzentude de uma madrugada
chuvosa de inverno. Porque se ninguém está preparado para morrer seja quando
for, pensa-se ainda menos do que o habitual em morte num dia bonito; é,
portanto, perfidamente traiçoeira a forma como a morte cumpre o seu propósito quando
menos se espera (afinal, todos ingenuamente acreditamos que nos dias bonitos,
naqueles dias esplendorosamente deslumbrantes, a morte estará de folga,
algures). Se alguém morre num dia bonito não é apenas a morte, em si, que nos
desconcerta; é, também, a traição e a deslealdade que essa morte contém e representa.
Mas nem parece que estou a falar da morte da
minha filha. E é isso que está em questão: a morte da minha filha, aos
dezasseis anos. Junto palavras como se isso fosse fácil e inofensivo,
conjugo-as em devaneios e teorias inconsequentes, como se fosse uma professora
estagiária de filosofia, falando sozinha em frente de um espelho decrépito num
lúgubre quarto de pensão, ensaiando a sua primeira aula; e que sei eu de
filosofia, afinal? Que se foda a filosofia. O que sei é que a minha filha
morreu num dia bonito, isso sei; e desconfio que a filosofia pouco tenha a
acrescentar ao que sei, pelo menos neste caso específico. De qualquer forma,
que nos anima a vida pacata e inconsequente, se não os devaneios e teorias
inconsequentes? Talvez sejamos todos professores de filosofia, sós e levemente
esperançosos, entretidos em frente de espelhos decrépitos; à espera que alguém
nos mande calar.
Era, portanto, um dia bonito. Uma manhã de
primavera, daquelas em que o azul do céu nos parece magnético e hipnotizante, à
distância de um toque: se fecharmos os olhos e estendermos muito a mão talvez
não consigamos tocar-lhe mas quase acreditamos que poderemos, pelo menos, senti-lo. Não posso jurar mas julgo que,
algures, haveria uma nuvem branca, apenas uma; e não há nada mais
desconcertante – mais aconchegante – que um imponente céu azul acompanhado de
uma única nuvem branca. Poderia ainda falar do brilho e reverberação dos raios
de sol, da forma como pareciam planar mesmo à nossa frente, conferindo uma
sensação de ténue e quase imperceptível movimento à irredutível imobilidade do
horizonte, da paisagem, do mundo; poderia, também, falar de como a brisa agitava
as árvores ou de como essas mesmas árvores acolhiam nos seus ramos pequenos
bandos de desassossegados pássaros esvoaçantes e de outras irrelevâncias
paisagísticas, poderia falar durante muito tempo de todo o género de
irrelevâncias. Mas, na verdade, não preciso de o fazer porque todos sabemos o
que significa um dia bonito, todos experienciámos a volúpia de nos sentirmos
plenamente vivos e revigorados, invencíveis, num dia bonito.
Não quero falar de dias bonitos, da mesma
forma que não quero filosofar em frente de um espelho. Aquilo de que quero
falar é do silêncio e da quietude, do vazio, da impotência, do medo que se
seguiu ao despiste do carro. O céu lá continuava, azul e inútil, acompanhado
pela sua nuvem branca (que, de repente, irá ficar acompanhada de outras, vindas
não se sabe de onde, agoirentas e tenebrosas, quase imperceptivelmente menos
brancas; mas isso será mais tarde: haverá um momento em que nuvens inundarão o
azul do céu e o dia ficará, por isso, menos bonito; e as pessoas dirão que o
dia ficou menos bonito, apenas porque apareceram umas nuvens; não importa que
haja vidas despedaçadas, aquilo que entristecerá realmente as pessoas são as
nuvens brancas). O sol não parou de brilhar e a brisa não se suspendeu; as
árvores lá permaneceram, morrendo de pé, que é o que fazem durante toda a sua
vida. Tudo como antes, tudo igual, tudo tranquilo e sereno: porque a verdade é
que o mundo, mesmo nos dias bonitos, não se incomoda absolutamente nada com as
pequenas desgraças dos homens. Aquilo de que quero falar – mesmo que não
interesse ao mundo – é do momento em que percebi que a minha vida terminava,
irremediavelmente; para logo recomeçar: mas tão diferente do que era antes, do
que sempre fora e do que sempre pensei que seria, que ainda hoje não a
reconheço.
E tudo isto num sábado, que é o dia em que
sempre desconfiamos que o mundo está a começar e jamais acabará, o dia em que
não conseguimos deixar de nos sentir positivos e optimistas, felizes;
agradecidos. Tudo isto num sábado, o dia em que assumimos a convicção
(presunçosa e arrogante e, por isso, inconfessável; mas talvez compreensível)
de que o nosso mundo jamais acabará; e afinal estamos correctos: o mundo não
acaba, nós é que acabamos.
Havia poucos carros na auto-estrada e não
íamos em excesso de velocidade nem distraídos nem a falar ao telemóvel nem a
discutir nem com sono nem alcoolizados; nada de anormal aconteceu, não houve
alerta ou suspeita, não houve aviso ou premonição, quase poderia dizer que não
houve culpa. Quase. Mas como é
possível não haver culpa? Ou, mesmo que não haja, como é possível não culpar
alguém? Culpar é, muitas vezes, a única forma de conseguir suportar, uma
espécie de aspirina que não cura mas alivia e a que nos habituamos
irremediavelmente. Culpamos, logo sobrevivemos.
Nem sei em que pensava, qual foi o meu último
pensamento antes de tudo se transformar (e se pudesse escolher, qual teria
sido?); tenho tentado recordar, apenas por teimosia e na certeza de que não
serei capaz, mas não consegui reviver aquele último momento; e ainda bem que
não consegui, pois a decepção seria inevitável, tão avassaladora como a dor. Suponho
que deveria ser um qualquer pensamento insignificante, porque a verdade é que a
maioria do que penso é insignificante. Talvez pensasse no que iria preparar
para o almoço, talvez pensasse como preferia ter ficado em casa e no que
estaria a fazer se lá estivesse, talvez pensasse que o dia parecia demasiado
bonito e em como os dias demasiado bonitos podem ser um pouco assustadores,
talvez pensasse em algo para dizer, talvez pensasse que deveria ter vestido
outra roupa qualquer, talvez pensasse que antes as manhãs de sábado eram quase
sempre sinónimo de sexo e conforto e letargia e saciedade; certamente que
pensaria alguma coisa porque ainda não consegui descobrir uma maneira de não
pensar, de simplesmente desligar o pensamento; talvez pensasse nisso mesmo:
como desligar o pensamento.
E de repente o carro estava a voar. Voou e
todos devemos ter gritado incontrolavelmente, que é a única coisa que se
consegue fazer quando se vislumbra a iminência da morte; gritar e talvez agitar
os braços de forma desarticulada e frenética, deve ter sido tudo o que fizemos.
Quando o carro aterrou na relva verde e se imobilizou, o que primeiro notei foi
o silêncio; um silêncio visceral e irremediável, o silêncio que deve ter
existido antes de se ter inventado o som; e devo ter pensado que estava morta,
precisamente por causa desse silêncio. Mas logo depois comecei a sentir focos
de dor perfurando-me o corpo, pequenos no início mas alastrando, insidiosos e
destrutivos, corroendo; foi quando percebi que, afinal, deveria estar viva,
porque é suposto a morte ser indolor (se não o for, para que servirá?). Mexi-me
um pouco, tentando perceber o que poderia estar irremediavelmente danificado no
meu corpo (com os danos do espírito preocupar-me-ia mais tarde), analisar os
estragos, perspectivar o futuro imediato; simultaneamente, senti o cheiro da
relva, intenso e reconfortante; penso que foi isso, algo tão irrelevante e
banal como o cheiro da relva, que me tranquilizou um pouco, recordando-me que
sempre existem constantes, elementos estruturais que não mudam nem oscilam nem
variam nem defraudam, que nos sustentam e amparam nos momentos de dúvida
profunda, de susto desamparado; mesmo que sejam tão frágeis e ténues, tão
intangíveis, tão subjectivos e insubstanciais como o cheiro da relva.
Foi então que abri os olhos. A beleza do dia
entrou por mim adentro, trazendo consigo os primeiros indícios de consciência;
e com a consciência, uma revelação: naquele momento de perigo, o meu primeiro
pensamento não fora para a minha filha; nem o segundo, nem o terceiro. E só então
recordei que havia gente comigo, ali mesmo ao meu lado, e não uma gente
qualquer mas a gente que eu mais amava; ali ao meu lado: talvez mortos. E eu a
pensar em relva.
Mas afinal havia um som a perturbar o
silêncio. O som de música, quase inaudível mas, apesar de tudo, perceptível e
próximo, como se tivesse que atravessar todo o mundo para chegar até mim: a
minha filha, lá no banco de trás do carro destruído, ainda ouvia música; quando
finalmente a olhei, o seu rosto parecia tranquilo e imperturbável, sereno;
tinha os olhos fechados, mas era um fecho de olhos mais próximo do sono do que
da morte (foi o que pensei, apesar de não saber como os distinguir); e os
auscultadores cor-de-rosa permaneciam enfiados nas suas orelhas, deixando
escapar o vago rumor de música dançável. Vago mas reconfortante, infinitamente esperançoso.
Outros sons se tornaram lentamente perceptíveis,
atenuando o zumbido agreste do silêncio. Gemidos que demorei alguns momentos a
localizar mas que eram, afinal, provenientes de muito próximo: a poucos
centímetros de mim, Afonso acordava do desmaio (ou da própria morte, talvez), lutando
para reconquistar um pouco de consciência; perguntei-me quais seriam as suas
primeiras palavras, quando conseguisse pronunciá-las. Havia também vozes,
excitadas e tensas, vindas do exterior do carro; pessoas que se aproximavam,
talvez a correr, não sei se para salvar alguém ou apenas testemunhar uma
desgraça; identifiquei a palavra «ambulância», dita por mais do que uma pessoa;
depois, alguém muito próximo disse: «Ai cum caralho, que deve estar tudo
morto.» Também o ruído do tráfego se tornou perceptível, carros que continuavam
a fustigar a auto-estrada com os seus pneus gastos, gente a quem a desgraça
alheia não incomodava (ou talvez apenas gente com pressa, demasiada pressa para
se distrair com desgraças). E havia um pássaro algures, fazendo o que os
pássaros sempre fazem.
Continuava a olhar o rosto adormecido da
minha filha, tentando escutar algo da sua música; perguntando-me se lhe deveria
tocar e, logo de seguida, odiando-me por ainda não a ter tocado, odiando-me por
não a estar a abraçar, a acordá-la com beijos, a segredar-lhe que não se
preocupasse, que tudo iria passar. Do lado de fora, alguém disse (excitado): «O
gajo está a mexer-se, é bom sinal.» E logo depois, uma mulher falou para nós
através do vidro, falou para o interior do carro como se falasse para um mundo
longínquo, para dentro de um aquário: «Calma, não saiam daí.» Sair? Gostaria de
ter conseguido sorrir, não sei bem porquê; talvez porque sorrir é quase sempre
melhor do que qualquer outra coisa que se possa fazer. E depois outras pessoas
falaram, há sempre gente a falar nas vizinhanças de uma desgraça, mas eu deixei
de ouvir pois acabara de reparar que não havia vidros partidos e pensava como a
inexistência de vidros partidos certamente significaria que a gravidade do
acidente não seria assim tão avassaladora; ninguém morre num acidente em que os
vidros ficam intactos, toda a gente o sabe. Pensava nisso, na ausência de
vidros partidos, e escutava o rumor da música proveniente dos auscultadores
cor-de-rosa. Sabia que alguma coisa acabaria por acontecer.
Durante todo o tempo em que decorreram as
operações de desencarceramento houve sempre uma sirene a gemer, mesmo ali
juntinho a mim; alguém se teria esquecido de a desligar, certamente; ou seria
para manter a morte à distância? E a primeira coisa que os bombeiros fizeram
quando chegaram junto do carro foi partir os vidros (e isso, por si só teria
estilhaçado toda a minha esperança, se eu tivesse ainda alguma); diziam coisas
que eu não percebia, davam instruções, esforçavam-se por demonstrar uma
infinita eficiência; e eu pensava nos vidros, com pena de os saber partidos. Pensei,
absurdamente: repararão na minha roupa? Afinal, qual é a roupa apropriada para
se usar quando se é vítima de um acidente? Havia também um médico aos gritos,
tentando convencer-se que sabia o que estava a fazer, que a sua presença
poderia fazer a diferença; talvez soubesse, talvez fizesse. Quase cedi à
tentação de me fingir inconsciente e esperar que tudo avançasse normalmente, pois
é essa a função dos bombeiros, dos médicos: repor a normalidade; que diferença
faria, afinal, a minha consciência, a minha presença: poderiam os meus olhos
abertos anular a desgraça, reverter a tragédia?
Portanto, permaneci com os olhos abertos, tão
assustada que nem o medo sentia; à beira da morte mas de olhos abertos,
teimosamente. Porque é nos momentos de maior perigo, de total incerteza, de
absoluta falta de domínio sobre os acontecimentos e o tempo, que os nossos
verdadeiros instintos se manifestam, se sobrepõem, nos dominam; aquilo que
verdadeiramente somos, percebemo-lo quando estamos perante a iminência da nossa
morte. E a minha essência é, tudo o indica, manter os olhos abertos; não
desisto, não fujo, não me supero, não me transcendo, não me liberto, não me
descontrolo; limito-me a manter os olhos abertos, talvez porque se os fechasse poderia
não querer voltar a abri-los. Abri-los para quê, mesmo quando os dias são
bonitos? Talvez maior que o medo de enfrentar a morte seja o medo de nos
conhecermos verdadeiramente; e todos sabemos que a melhor forma de não ver é
manter os olhos abertos.
Legendas anteriores:
#07: A partir de uma
fotografia de Rute Violante
#06: A partir de uma
fotografia de Sofia Mota
#05: A partir de um
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