Aguardo junto
da janela, à espera que chegues; estás atrasado, para não variar. Como sempre,
olho lá para fora, para a rua e para o céu, para o vazio, para nada em
concreto, apenas porque olhar para algures (olhar sem ver) é uma forma eficaz de
distrair o pensamento, de ocupar a passagem do tempo. Por vezes, a cortina
acaricia-me o rosto, movendo-se quase imperceptivalmente ao ritmo da minha
respiração (como se houvesse uma tempestade dentro de mim, a querer sair; como
se a minha expiração fosse um vento incontrolável); e nada mais acontece:
pensamentos e expirações em turbulência, ténues movimentos, suspensão da vida.
Mas de
repente, ao sentir a ocasional carícia da cortina na minha face, surge-me no
espírito uma questão súbita e inesperada (como se alguém invisível a gritasse com
tal veemência que fosse impossível fugir-lhe): porque haveremos de usar
cortinas, porque nos protegemos da luz? Porque não procuramos a luz? Não seria
esse um desejo mais natural, uma necessidade mais natural? Afinal, a luz nunca
deveria ser demasiada, deveríamos viver sôfregos por ela. Mas não: usamos
cortinas. Porquê?
Paro um
momento para pensar (ou seja: excluo todos os outros pensamentos da minha
mente), percebendo que não estou a ser ensombrada por uma fútil e passageira questão
mas por várias e múltiplas perplexidades, que se vão desdobrando, enredando-me
em dúvidas. Na verdade, gostaria de estar a conversar estes assuntos contigo.
(Lembras-te quando passávamos noites a discutir aquelas irrelevâncias que tanto
nos entusiasmavam e comoviam? Teremos alguma vez falado de cortinas? Certamente
que sim, porque na nossa primeira casa optámos por não usar cortinados;
lembras-te?) Mas estás atrasado, como sempre; e, por isso, terei que conversar sozinha;
comigo própria.
Que
absurdo é pensar em cortinas; ou talvez não. Na realidade, um pensamento é uma parte
de nós, nasce de nós e apenas existe porque nós existimos; deveremos, por isso,
assumi-lo como nosso, pois afinal é uma mera exteriorização do que somos; cada
pensamento é um pedaço de nós, tal como as mãos, o cabelo, as unhas; ou, noutra
dimensão, como cada palavra que dizemos, como o cheiro que emanamos, como cada
acção que executamos. Nós somos tudo isso; não apenas corpo e espírito mas
também som e cheiro, tudo o que fazemos e sentimos e pensamos.
Pensemos
em cortinas, então. (Detesto tanto os teus atrasos.) Usamo-las para nos
protegermos do exterior, para não nos revelarmos demasiado; não concordas? Mas
a verdade é que queremos revelar-nos um pouco (ou não teríamos janelas; recusaríamos
o exterior; tentaríamos permanecer encerrados em nós, fugindo do mundo);
queremos revelar-nos parcialmente e as cortinas protegem-nos, impedem que sejamos
vistos inteiros e nítidos; as cortinas deformam-nos, desfocam-nos. É para isso
que servem, é por isso que as usamos. Mas há um preço, infelizmente: também
impedem que o mundo nos chegue completo e inteiro, pleno, fulgurante; filtram o
que recebemos do mundo. Ou seja (digo eu a mim própria): o que nos protege
também nos empobrece. E fico um instante a imaginar o que responderias a isto.
Talvez dissesses: sim, tens razão; o que
nos protege do mundo também protege o mundo de nós; e é uma ideia algo
perturbadora, não achas? O mundo lá passa, sem nos ver completos, sem nos
perceber completos; vê as nossas cortinas, apenas – e falo em cortinas como
poderia falar em máscaras, não é? Protegemo-nos do mundo e, por isso, o mundo
vê-nos parcialmente, vê um fragmento, uma sombra, uma aparência de nós. Mas será
isso que desejamos verdadeiramente? Manipulamos o que o mundo vê de nós e
achamos isso inteligente e sensato, pragmático; mas sê-lo-á?
Continuo a
olhar lá para fora (o mundo a passar por mim, totalmente indiferente) e
reflicto nesta tua ideia, nesta ideia que tive por ti: protegemo-nos com
máscaras, como protegemos as janelas com cortinas. E depois, assim de repente e
sem aviso, deixo de pensar nisso; não me apetece. Não me apetece pensar seja no
que for porque, afinal, os pensamentos também podem ser como cortinas:
separam-nos da realidade. E quando deixo de pensar, há algo que se torna óbvio:
não me apetece esperar mais. O que desejo verdadeiramente – percebo-o sem
surpresa nem receio, sem entusiasmo ou incredulidade – é dispensar a protecção
das cortinas e abandonar a penumbra do nosso quarto; o que desejo é enfrentar o
mundo e saborear toda a sua luz; mostrar-me ao mundo completa e inteira, ser
luz. É isso o que desejo, assim de repente. Acreditas numa coisa destas?
Atrasas-te, a cortina toque-o o rosto, os pensamentos atropelam-se: e é tudo;
mas o suficiente para que a minha vida mude.
Saio sem
sequer trancar a porta, corro pelas escadas e abandono o prédio, atravesso a
rua como se fugisse a um qualquer perigo indefinido (ou como se corresse em
direcção à felicidade?); mas depois paro, simplesmente paro: e fico a olhar
para a nossa janela, vendo-a como nunca a vira antes, vendo-a do lado de fora.
Estou parada no meio do passeio, há pessoas indiferentes e apáticas a passarem
por mim (desviando-se, sem me tocarem; porque atemorizará tanto o toque de um
estranho, o toque a um estranho?); o céu brilha, o ar resplandece de luz. E eu
aqui parada, olhando a nossa janela: como se olhasse algo desconhecido e
enigmático, algo que não fosse meu; tentando perceber como seria estar do lado
de lá da cortina; tentando ver-me como os outros (o mundo) me veriam;
olhando-me a mim própria – à versão pública de mim própria – mas sabendo que
existe uma cortina pelo meio, a separar-nos. Perguntando-me: porque insistimos
em manter duas versões de nós próprios, uma íntima e outra pública, versões
irremediavelmente separadas por espessas cortinas inamovíveis? Porquê?
Eis-me, assim,
chegada a este inesperado momento. Parada no passeio e sentindo a brisa no
rosto, o vestido a esvoaçar ligeiramente, a luz a rodear-me, a envolver-me, a
acariciar-me, a clarear-me, a inebriar-me: olho com ternura a nossa janela, a
nossa cortina (sim, como se fosse uma despedida); mas não se trata de olhar sem
ver, desta vez é algo diferente; olho e vejo mesmo. Vejo a realidade, sem o filtro de cortinas ou máscaras; apenas
a realidade concreta e real, materializada numa banal janela, numa perspectiva
diferente da mesma banal janela de sempre. E tu continuas sem chegar, atrasado;
sempre apressado, apesar de irremediavelmente atrasado em relação à vida, a
mim. Mas – e enquanto consciencializo isto talvez esteja a sorrir, o que é um
pouco triste – o teu atraso deixa subitamente de ter qualquer importância; porque
quando chegares, já não estarei à tua espera.