Quando danço

A partir de uma foto de Carla de Sousa




- Sabes o que me apaixona mesmo? O movimento do corpo. Podes mostrar-me o mundo inteiro e todos os fenómenos da natureza mas acredito que não existirá nada tão belo e inebriante como o movimento harmonioso de um corpo. Pois, já sei; vais dizer-me que, para ti, a beleza está na ordem e no rigor, na absoluta previsibilidade dos números; vais explicar-me que a beleza se encontra na certeza de que após o quatro virá o cinco. Mas não concordo contigo. Para mim, a verdadeira beleza esconde-se, por exemplo, na forma como se acaricia o cabelo de alguém que se ama: os dedos entrelaçam-se suavemente e o cabelo afasta-se, com languidez; e esse ligeiro movimento do cabelo representa, afinal, ternura pura; materializa ternura. Ou então um sorriso; já reparaste quanta beleza existe num simples sorriso? Já estudaste a delicadeza com que os músculos do rosto se contraem e os lábios movem, ganhando vida? Haverá algo mais belo? O sorriso é apenas um pequeno movimento, contracções e distensões de músculos, mas transmite muito mais emoção do que livros repletos de poesia, do que discursos infindáveis. Sabes, acredito que um sorriso contém em si mais beleza do que toda a filosofia do mundo. E é apenas um sorriso, imagina se sorrires com o corpo inteiro. Sim, já sei que não estás de acordo. Precisas de exactidão, anseias pelo rigor do número e da palavra para não te sentires perdido e vulnerável; e, por isso, encontrarás beleza na tabuada ou no dicionário, encontrarás beleza na ordenação. Mas, para mim, o número e a palavra são apenas convenções, são símbolos a que se confere determinado valor que depois se torna inquestionável; são criações da mente, projecções do espírito, nada mais do que instrumentos, a que atribuímos significados concretos e exactos que acabamos por aceitar como certezas absolutas. Mas no fundo, são apenas ideias e conceitos. Como podes estar absolutamente certo de que após o sete virá o oito? Na verdade, é apenas uma questão de fé, já reparaste? Digam o que disserem, comprovem o que puderem, encham quilómetros de papel com equações, mas no fundo a matemática é uma religião como outra qualquer; na essência, onde está a diferença entre o teorema de Pitágoras e a crença na vida após a morte apregoada por místicos e salvadores? Mas tudo bem, cada um entrincheira-se nas convicções que lhe convêm mais. E desculpa, afinal estou para aqui a divagar. Não ligues. Queria apenas falar de movimento, da beleza que encontro no movimento corporal. Estava a tentar explicar-te que o movimento do corpo me parece uma forma superior de comunicação pois abdica de signos e convenções, abdica da palavra, reduzindo, por isso, a possibilidade de ilusão e equívoco; porque a palavra é sempre subjectiva e dúplice, é condicionadora; não achas? Claro que não achas. Mas acredito que uma comunicação baseada no movimento do corpo é mais genuína, mais directa. Mais animal, se quiseres. Cada gesto representa e transmite acção e vontade, inconformidade, busca, interrogação. Já reparaste como tudo isso está presente num gesto tão banal como o estender da mão a alguém? No fundo, o corpo é a ferramenta mais adequada que possuímos para interagir genuinamente com o mundo e com o outro; e é por isso mesmo que não podemos satisfazer-nos em ser corpo e desfilar pelo mundo, não podemos satisfazer-nos em simplesmente ocupar espaço; é importante que nos preocupemos com o modo como ocupamos o espaço, pois já que o ocupamos deveríamos fazê-lo de forma bela. De forma útil e bela, o que vai dar ao mesmo porque a utilidade encerra beleza e não há beleza que não seja útil. E já sabes que entretanto vou começar a falar de dança. Sabes que te vou dizer, uma vez mais, como acredito que a dança pode ser a forma mais inebriante e arrebatadora de movimento; e, portanto, de beleza. A dança é um desafio à imobilidade, um desafio à natural apatia do corpo; é uma forma de dar vida ao corpo, de ser vida. É uma busca permanente de graciosidade e elegância, de leveza, de coordenação, de simplicidade. Mas estou a entusiasmar-me, como sempre.
- Como sempre.
- Porque é nisto que penso tantas vezes, em dançar e oferecer beleza com o corpo. Quando danço, busco harmonia, busco a perfeição do movimento; ou a perfeição através do movimento. Todo o corpo trabalha para um objectivo comum e único, todos os sentidos se transformam em acção pura. De certa forma, é uma busca de luz. Nunca tinha pensado nisso mas parece-me que faz algum sentido. Que achas? Afinal, dançar representa uma tentativa de fugir à escuridão porque, apesar da escuridão ser uma inevitabilidade, é através do movimento que impedimos o seu domínio sobre nós; enquanto dançamos, as sombras não nos alcançam, não nos soçobram. A escuridão é, no fundo, imobilidade; e o movimento, o movimento harmonioso e intencional, belo, é o seu antídoto. É claridade. Claro que sei que consideras tudo isto um devaneio de rapariga idealista, sei que me escutas com impaciência, sei que os movimentos musculares que conseguiste transformar nesse sorriso esforçado disfarçam, afinal, a tua impaciência e contrariedade; mas é nisto que acredito: através da dança, através do gesto e do movimento harmonioso, posso transformar pensamento e desejo, medo e esperança, alegria, em matéria física concreta; transformo sensação em acção. E, desse modo, fujo à escuridão que me rodeia e, por momentos, iludo as sombras que me perseguem; ofereço um pouco de luz ao mundo, porque beleza é luz e quando danço sinto-me bela. Tão simples quanto isto. Quando danço sinto-me bela. E é por isso, pai, que serei bailarina. É o que desejo, é o que farei. Desculpa-me mas não serei economista como tu; esse é o teu sonho, não o meu. Os números aborrecem-me, limitam-me, aprisionam-me; os números entediam-me. Todos tentamos fugir à escuridão, claro; apenas o sentido do que é escuridão diverge de pessoa para pessoa; para mim, a escuridão está na imobilidade, para ti deve estar num crash da bolsa ou assim. Tudo bem, somos diferentes. E se há algo que nunca serei é uma cópia de ti, nunca desejarei dissolver a minha diferença. Por isso, serei bailarina e a minha vida será repleta de movimento e graciosidade, de busca da beleza, de dádiva ao outro. Será assim porque só assim pode ser, não há alternativa. Quero dançar. Por mim e para mim. Mas também para ti; quero tanto que me vejas dançar e te sintas feliz. Quero ver-te sorrir, pai. Fazes isso por mim? Olhas-me e sorris de verdade? Porque nunca quiseste ver-me dançar, pai? Se o fizesses talvez percebesses tudo isto que estou a dizer-te, todos estes sentimentos que estou a tentar converter em palavras. Bastaria olhares mesmo e perceberias. E não seriam necessárias mais palavras. Vê-me dançar e não me faças falar mais, pai. É tudo o que te peço.

- Deixa-me ver a minha agenda. Afinal, a que horas é esse espectáculo?