Xeque-mate

A partir duma foto de Maria João Dias.




Quando chego a casa, encontro-a dentro da banheira; mas a banheira está vazia e ela completamente vestida. Esta visão é surpreendente e perturba-me um pouco, assusta-me; contudo, a expressão do seu rosto é serena e tranquila, apaziguada. Olho-a e sorrio, tento não me alarmar nem reagir precipitadamente; mas sou incapaz de me aproximar dela e acariciar-lhe o cabelo (o que teria feito, em circunstâncias normais); respiro fundo e, esquecendo-me de continuar a sorrir, pergunto o que se passa. Ela sorri (por ela e por mim) e, calmamente, explica.
- Nem sei. Nada de especial, acho eu. Estava apenas a pensar como a vida avança em ciclos; não é? Os dias que se sucedem, e depois as semanas, os meses, os anos; tudo ordenado e previsível. Como se vivêssemos permanentemente no interior de uma rotunda, em rotundas dentro de rotundas, sempre às voltas; porque tudo é circular, tudo se repete. E como podemos inverter isto? Como quebrar a linearidade do tempo, como desafiar o destino, como enganar o futuro e torná-lo mesmo inesperado? Já alguma vez pensaste nisso? Eu penso, por vezes. Porque, afinal, que tem o futuro de verdadeiramente imprevisível? Que efectivo grau de surpresa nos reserva o futuro? Mesmo que os eventos nos surpreendam, nós somos sempre nós, somos uma espécie de constante que vai evoluindo mas sem efectivamente mudar na essência; seremos sempre incapazes de nos surpreender a nós próprios, é esse o problema, é isso que nos perturba e irrita, que nos deprime: nunca haverá genuína surpresa porque o futuro é uma mera repetição do passado. Portanto, apenas no resta tentar desafiar o futuro a surpreender-nos. E é nisto que tenho pensando, em formas de contornar a previsibilidade do que ainda há-de vir.
Sorri. Como se tudo estivesse normal. Como se fosse uma manhã de sábado cheia de sol e a banheira estivesse cheia de água, a casa de banho cheia de vapor, e estivéssemos a falar daquele programa de culinária que tínhamos visto no outro dia; tudo normal.
- Sabes de que me lembrei? Pensei que poderia tentar inverter as coisas: recusar-me a ficar à espera que o futuro me surpreenda mas surpreender, eu própria, o futuro. Fazer algo improvável e inesperado, inexplicável (talvez aquilo que muitos chamam loucuras, percebes?), algo que distraia o natural fluir dos acontecimentos, enganando e baralhando o futuro. Tentar inverter a normalidade, tentar suspender a metódica marcha do tempo; ou, pelo menos, brincar com o tempo, provocando-o um pouco, desorientá-lo de tal forma que possa surpreendê-lo por um momento e, apanhando-o distraído, tomar posse do meu próprio destino, fazendo dele o que desejar. Porque bastaria um pequeno momento, penso eu. E tudo poderia ser diferente. Não achas?
Não sei o que achar. Poderia dizer-lhe que se estava a contradizer, ao desejar que tudo fosse diferente quando acabara de afirmar que nunca existirá genuína surpresa na vida de alguém; mas talvez seja a contradição que nos desafie e faça avançar, talvez a harmonia apenas conduza ao conformismo e à letargia, à resignação.
- Há pessoas que pensam que a vida é como um jogo de xadrez; e depois decoram jogadas inteiras, planeiam tudo, antecipam tudo, imaginam que controlam tudo; esquecendo que quem joga com elas também tem as suas próprias estratégias, esquecendo que o destino tem as suas próprias estratégias. Diz-me, o que será melhor: jogar por instinto ou jogar planeado? Quanto a ti, não sei. Mas eu estou um bocadito cansada de jogar planeado. Estou mesmo. E estava aqui a imaginar o que pensará o destino quando me vir assim, vestida e sorridente numa banheira vazia. Não sei o que pensará mas, sabes, apetece-me mesmo fazer um xeque-mate ao destino. Sim, acho que é isso que queria: fazer xeque-mate ao destino.
Escuto-a mas não sei o que pensar, o que sentir; não sei se ela terá ficado momentaneamente louca ou se está simplesmente certa, tão certa que não existe razão para que eu tenha dúvidas ou hesitações. Permanecemos em silêncio, escutando apenas o distante rumor do universo (aquele rumor que, no fundo, mais não é do que um indisfarçável bocejo), infinitamente distantes um do outro. Mas, então, reparo que estou a sorrir, que por algum motivo desconhecido começara a sorrir; e é a sorrir que pergunto: deixas-me entrar, posso juntar-me a ti?