A partir de uma foto de Sonja Valentina.
Pela
manhã, olho pela janela e percebo como o dia está magnífico; tão magnífico que,
ao sair à rua, não resisto a levar o guarda-chuva comigo. Desço pelo passeio
quase deserto sentindo a brisa no rosto e o sol brilhante na pele, sentindo-me
livre, sentindo-me liberto. É difícil resistir a olhar o céu, difícil resistir
a procurar entre o esplendor do azul um farrapo de nuvem branca, uma minúscula
falha no azul que me deixe sem respirar, anestesiado pela imperfeição da beleza
perfeita. Mas resisto, importa focar-me nas pessoas com quem me cruzo; não
tanto nos rostos, nos olhares; isso ficará para mais tarde. Por enquanto,
interessam-me as mãos; e é o que faço: olho as mãos das mulheres com quem me
cruzo, na esperança de encontrar numa delas um guarda-chuva. Foi por isso que
saí de casa. Porque o dia está magnífico, tão magnífico que apetece
apaixonar-me.
Vou
caminhando sem pressa, balançando ligeiramente o guarda-chuva na mão. Há quem
olhe e estranhe, uns miúdos riem com gosto e abanam a cabeça; nem os velhinhos
são compreensivos. Homem jovem e impecavelmente vestido mas agarrado a um
guarda-chuva escuro e imponente no mais deslumbrante dos dias de Verão? Só pode
ser doido. Serei?
Pouca gente na rua. E claro que é
prematuro falar em paixão; prematuro e absurdo. Primeiro há que, obviamente,
encontrar alguém com um guarda-chuva na mão e que, por isso, me perceba, intua
de imediato os meus motivos. Alguém a quem não seja necessário explicar o que
sinto, como sinto. Alguém que perceba o que simboliza andar com um guarda-chuva
num dia em que não existe a mais pequena possibilidade de chover. Alguém que,
por exemplo, não banalize uma relação como se banaliza o uso do guarda-chuva,
que logo se esquece, abandona ou perde mal o sol chega. Alguém que não coleccione
relacionamentos por acreditar que a quantidade é uma protecção, como as pessoas
que acumulam vários guarda-chuvas para nunca serem surpreendidos quando a
intempérie surge inesperadamente mas, depois, nem os distinguem uns dos outros,
quase sendo preciso colocar-lhes um papelinho com um número para os
individualizar e hierarquizar. Alguém que não procure um relacionamento a
pensar nos momentos infelizes ou solitários e guarde a felicidade apenas para
si, como aquelas pessoas que ignoram os guarda-chuvas quando não precisam
deles, abandonando-os à porta de casa, e que no fundo acreditam que até podem
passar sem eles. Alguém que não queira ter
um guarda-chuva e prefira ser
guarda-chuva.
Caminho pelo passeio respirando o
cheiro inebriante das árvores que me rodeiam e penso como seria bom encontrar
alguém que sentisse e pensasse assim: igual. Alguém que eu já conhecesse profundamente
antes de saber, sequer, que existe; antes de conhecer o seu rosto e perscrutar
o seu olhar, antes de ouvir a sua voz e inspirar o seu cheiro, antes de tocar a
sua pele.
Mas a manhã ainda mal começou, é
demasiado cedo para paixões. Caminho sem pressa nem ansiedade, olhando em
frente; à espera do que possa acontecer. E talvez não seja ainda hoje que me
cruze com alguém que sorria e pergunte: queres ser o meu guarda-chuva? Na
verdade, há sempre algo a acontecer: basta estar atento, basta saber reconhecer;
ser activo mas também (principalmente?) receptivo. Aquilo que se designa por
viver deve ser pouco mais do que uma forma de ordenar e agregar acontecimentos.
Muito raramente se consegue originar algo, provocar algo, conduzir algo,
construir algo; limitamo-nos a reconhecer e aproveitar algumas das coisas que nos aparecem pela frente
(depois, por vezes, agarramo-nos a elas e fazemo-las nossas). Como uma criança
que vai ao centro comercial acompanhado pela mãe: encontra lá tudo o que possa
desejar, deambula pelos corredores e ambiciona, pedincha, fantasia, implora,
desdenha; tudo está disponível e é alcançável, tudo está à distância de um
toque; mas a mãe – já se sabe como são as mães – apenas oferece um chupa de
morango e a criança – já se sabe como são as crianças – coloca-o na boca e saboreia;
talvez até acabe por agradecer, logo esquecida de todas as possibilidades
perdidas. E é isso, afinal, a vida: um chupa de morango.