Obrigado...



"«Serviços mínimos de felicidade», de Paulo Kellerman (Leiria, 1974) é um hino à angústia de uma mulher que sofre o acidente maior: o da própria filha que jaz inconsciente numa cama de hospital. Sentimos o seu monólogo interior com a força de um terramoto que conduz à ruína. Quando nos achamos sem abrigos o que resta, senão a honestidade que nos devemos. Eis o que mais me comoveu na obra, a autenticidade da voz desta mãe, agora sem a força de o ser, que não se poupa. Exaustiva, minuciosa e massacrante, mas também leve, distraída, errante e, por isso mesmo, redentora. A filha é sempre mencionada como P. . P de palavra impronunciável na dor indescritível de repetir o nome daquela que talvez não torne a abraçar. Lemos a noite mais longa. Não são as horas que custam a passar, até à certeza do que acontecerá ao seu amor maior. São os segundos. E enquanto os sente, de forma insuportável, numa dormência do corpo e dos sentimentos, entretém-se a «usar o pensamento para fugir» (pág. 31), projectando a sua vida numa tela privada, assistindo ao desenrolar da película da sua existência, na mais absoluta solidão. Conhecemos pormenores desde o momento decisivo da desgraça que estilhaçou as três vidas, passando pela construção da vida em comum com Afonso, o marido, pai de P., a quem mal conhece, até à trivialidade de um vestido bonito numa mulher sedutora, mais o encanto de algumas das paisagens que a habitam.

Qualquer momento é apropriado ao recomeço, inclusive, quando nos parecer que já morremos, muitas vezes, embora ainda não o tivéssemos constatado. Esta mulher fala-nos das suas várias mortes, consciencializando-se de cada uma delas, à medida que a atingem, implacáveis. Falta-nos o ar na maior parte das linhas.

É curioso que apenas Afonso, invisível nos afectos, seja identificado. Apenas o pai-condutor-responsável pode ser gritado, acusado, julgado. Identificar o desamor nos outros é mais fácil do que detectá-lo ao espelho. Eis que esta conversa, consigo mesma, a obrigará ao confronto com o que é, com o que julgava ser e lhe aparece agora desprovido de sentido, desfazendo, neste combate, todas as ilusões de poder ser alguma coisa através de terceiros.

Mais do que encontrar respostas para todas as questões que a narradora se coloca, importa repensar. Colocarmo-nos no seu lugar sem nome que é o de todos nós.

Se chegarmos àquele momento em que tudo muda, irremediavelmente, aquele que poderá ser o derradeiro, andámos a escolher o que desejávamos? O que podia ela ter feito diferente para não assassinar os sonhos da filha com pessimismo, realismo e afins? O que podia ela ter feito diferente para não ter desistido dos seus próprios sonhos? Sendo tarde para a filha, ainda o é para si?

Eis que o livro chega ao fim. Nos nossos olhos, silêncio, todavia, a sua música continua a tocar para nós, como nos auscultadores de P. logo após o desastre.

«Quem disse que terá de existir uma relação directa entre falar e amar?» (Pág. 62)

Talvez não haja. Sou parca em certezas. Tenho esta: este romance, que escava a esperança sob o desespero, é um acto de amor.

Obrigada, Paulo.

Felicidade














12.11.2016. Livraria Arquivo. 
Apresentação de Serviços Mínimos de Felicidade. Por VEIA – Vertente Exploratória em Intervenção Artística. 
Fotos de Gil Álvaro de Lemos.

Janelas

Oh menino, tenho mais que fazer do que andar a queixar-me. Desculpe lá chamar-lhe menino, mas é por causa do olhar. Tem um olhar de criança, e isso é raro. O mais comum é encontrar olhares de velho, sejam velhos ou não; aquele olhar de quem está desinteressado no que vê, um olhar virado para dentro. E vivo num lar, certo?, é natural que esteja rodeada de gente com olhar de velho. Quando encontro alguém com olhar de criança é uma festa porque é bom ser mesmo vista e não apenas olhada. Mas acabei de dizer que tenho mais que fazer do que queixar-me, e aqui estou eu a queixar-me. Enfim, não há mal nenhum em ser contraditória, antes isso que estar cheia de certezas. Aqui, as pessoas têm muitas certezas, é uma coisa que piora com a idade. E são todos velhos não só de corpo mas também de espírito. Alguns até já estão mortos mas ainda não o perceberam; é como se esperassem uma oficialização. No fundo, são pessoas respeitadoras de preceitos e burocracias, precisam de papéis para tudo; até para morrer. Mas não ligue, menino. Por vezes dá-me para a tolice. A tolice é como uma janela, não concorda? Se não a abrimos de vez em quando, é como se estivéssemos sempre fechados numa sala escura. O sonho também é uma janela, e essa devia estar sempre aberta. É verdade que tenho sessenta e oito anos mas não será isso que me impedirá de sonhar. Quer saber o que sonho? Tolices, claro; acho que são duas janelas que se comunicam, a do sonho e a da tolice. Olhe, sonho com rojões, nunca fazem disso aqui; ou com filhós de abóbora. Sabe aquilo que se diz sobre tratarem os velhos como crianças? Passa-se muito na alimentação, é triste uma pessoa não poder comer o que deseja. Que mal há em rojões e filhós? Mas se falo nisso, olham-me como se fosse doida, dizem: coma lá o iogurtinho, que lhe faz bem. Enfim. Sonho que alguns dos meus antigos alunos me venham visitar. Sonho com o meu filho, que está no estrangeiro, e com o meu marido, que morreu há três anos; sonho com eles quando durmo, e então acordo com um sorriso; ou sonho com eles quando estou acordada, e então sorrio na mesma. Sonho com excursões à Serra da Estrela ou ao Alentejo. Aqui, apenas fazem excursões a Fátima, não sei bem porquê. Sonho estar rodeada por gente que encare a velhice de forma menos dramática e egoísta, gente que não passe a vida a dar com as muletas na cabeça das auxiliares e a fazer escarcéus por causa da comida e dos remédios. Sonho não ter dores. E por vezes até sonho com um mundo melhorzito, mas estão a dar cabo disto tudo e uma pessoa vai perdendo esperança. Até deixei de ler jornais, davam-me azia. E de ver os telejornais. Aos domingos vêm aí as visitas e por vezes trazem garotos. Faz-me impressão, estão sempre agarrados aos telemóveis; e isso ainda é mais triste do que ver os telejornais. Houve aí uma assistente social que andou a criar facebooks para os velhos. Então certo dia um velho fez uma birra porque queria um telemóvel igual ao do neto para ir ao facebook e o filho não lho dava. Já viu? Este mundo está a ficar um bocado estrampalhado, menino. E nem a sonhar uma pessoa consegue sair da sala escura. Enfim. Mas fale-me de si, diga-me tolices. Não foi meu aluno, pois não?

(Crónica para o Jornal de Leiria.)

Calou-se. Saiu. Saltei.

O filme "Calou-se. Saiu. Saltei" (2014), de Bruno Carnide, e cujo argumento escrevi, pode ser visto integral e gratuitamente.



Bom dia

Gosta quando lhe desejam “bom dia” mas a maioria das pessoas diz simplesmente “Um café” ou “Era um café”. Gosta que a olhem quando falam consigo mas parece que toda a gente está demasiado ocupada ou demasiado desinteressada ou demasiado entretida com o telemóvel. Gosta quando a tratam por você – de igual para igual – mas a maioria aborda-a como se fosse uma criança, tratando-a por tu. Gosta quando usam o seu nome, que está bem visível na placa que tem de trazer ao peito, mas isso só aconteceu três ou quatro vezes desde que começou a trabalhar no café; e não gosta nada que lhe chamem “coisinha” ou “jeitosa”. Gosta que lhe perguntem se está tudo bem mas, das poucas vezes em que isso aconteceu, percebeu que a pessoa não estava realmente à espera de resposta. Gosta quando as pessoas sorriem. De um modo geral, não gosta nem desgosta de trabalhar no café. Tem dezoito anos e é o seu primeiro emprego. A escola podia ter corrido melhor. Se lhe perguntarem quais os seus sonhos, não sabe bem o que responder; e tem noção de que isso – não ter sonhos – é triste e um pouco assustador; mas acha que seria ainda pior se fingisse que tinha sonhos ou se adoptasse os sonhos de outras pessoas. A vida é o que é, agora é isto e depois logo se vê: podia ser pior, podia ser melhor. Por enquanto, passa o dia a tirar cafés e a fazer torradas. «Isto das torradas até é engraçado, no outro dia estava a pensar: se cada fatia de pão tiver dois centímetros, e considerando que devo fazer umas cinquenta por dia, sabe que distância dava se encostasse todas as fatias lado a lado, em fila? Trezentos metros. Já viu, trezentos metros de pão? Mais três meses e chego ao meio quilómetro.» À noite, conversa no facebook com as amigas; riem das senhoras que pedem abatanados porque a palavra é engraçada e dá para fazer trocadilhos parvos; queixa-se das pessoas que dizem “Um nata”, em vez de “Um pastel de nata”, o que a irrita por nenhum motivo que consiga entender; fala com tristeza dos velhos que passam o dia sentados nas mesas do canto, a olhar para o vazio ou a dormitar, porque não têm para onde ir, não têm quem os espere (e não entende por que motivo não se juntam e falam uns com os outros); lamenta-se dos engravatados e das madames que a olham com uma expressão de pena ou de arrogância, como se fazer torradas e tirar cafés fosse um trabalho inferior aos outros; segue com orgulho as aventuras académicas das amigas que andam a tirar cursos de esteticista e de professora de educação física e de enfermeira. Por vezes, essas amigas aparecem no café perto da hora de saída e pedem em coro “Oh coisinha, traz um nata e um abatanado”; e riem todas, bem alto; juntas. Pela manhã, de regresso às torradas e aos cariocas, olha o tráfego matinal enquanto aguarda o autocarro e pensa que gostaria de tirar a carta. Pensa, também, que gostaria de fazer um workshop de desenho e pintura; que gostaria de viajar um bocado; que gostaria de ter um namorado melhor que o último; que gostaria de ajudar mais os pais; que gostaria de voltar a estudar. «Olhe, afinal parece que até tenho sonhos. Agora é só lutar para os concretizar, não?» 

(Crónica para o Jornal de Leiria)

Caixões separados


O conto Caixões Separados foi lido por Filipa Leal e ilustrado por André Caetano para o programa Literatura Aqui (episódio 38), da RTP 2. Pode ser visto e ouvido aqui.  

Contágio

«Mas por que motivo vens sozinho?»
«Não há ninguém que possa vir comigo. Porque ninguém sabe.»
«A sério? Não contaste a ninguém?»
«Não, não contei.»
«Não quiseste? Ou não foste capaz?»
«Penso que ambas as coisas. Mas, principalmente, porque não quis. Sim, julgo que isso foi o mais importante: não quis contar a ninguém. Parece-te estranho?»
«Um pouco. Não sei. Cada pessoa tem uma forma diferente de reagir à doença, de lidar com essa nova realidade. Suponho que o secretismo seja uma opção tão válida como outra qualquer.»
«Qual é a reacção mais frequente?»
«As pessoas costumam ficar revoltadas. Ou com muita pena de si próprias. São os dois grandes grupos; as duas maiores tendências, digamos assim.»
«Penso que não fiquei propriamente revoltado. Ou talvez ainda seja demasiado cedo para isso. A primeira reacção foi de incredulidade, penso.»
«E com pena de ti, ficaste?»
«Pena? Que queres dizer?»
«Sei lá. Aquele discurso tipo: ai, o que vai ser de mim, só tenho azares na vida. Blá blá blá.»  
«Não, nem por isso. Nunca fui pessoa de me queixar muito.»
«Então é mesmo uma reacção atípica. Nem queixas, nem ódios.»
«E isso terá algum significado? Essa incapacidade de reagir normalmente?»
«Talvez seja como digas. Ainda estás na fase da incredulidade. O resto virá depois.»
«Mas eu já aceitei que estou realmente doente. E que isto poderá correr mesmo mal.»
«Aceitaste?»
«Aceitei.»
«Como?»
«Que queres dizer?»
«Como se faz? Um dia acordas e decides: bom, pode ser que morra nos próximos meses mas que se foda, não há-de ser nada. É assim?»
«Claro que não. Estás a hiper-simplificar, não achas? Aliás, deves saber melhor do que eu. Passas a vida a lidar com pessoas como eu.»
«Como tu?»
«Doentes.»
«Sim, é verdade. E sabes o que acontece com quase todos? Recusam-se a aceitar que poderão estar perante o fim. A maioria das pessoas convence-se que irá escapar, que algo de bom irá ocorrer, que alguém as salvará.»
«A sério? A maioria?»
«Sim. Incluindo muitos que fingem que não. Mas, no fundo, secretamente, estão convencidos que vai correr tudo bem, por mais que as indicações e os prognósticos indiquem o oposto. Têm esperança, mesmo que seja uma esperança secreta e inconfessável. E em parte é também por isso que contam às famílias, aos amigos. Porque depois toda a gente faz questão de contribuir para essa esperança. Toda a gente acredita, ou finge que acredita, que não haverá morte. E a esperança vai-se consolidando.»
«Comparando com essa tal maioria, parece que desisti. Não tenho esperança nem quero que ninguém me dê esperança.»
«O que não deixa de ser uma forma de estares com pena de ti próprio.»
«Afinal, sou como todos os outros.»
Conversavam numa pequena sala sem janelas onde os pacientes do hospital podiam aguardar os resultados dos exames médicos que tinham efectuado; não seria tanto uma sala de espera mas antes uma sala de ansiedade, uma sala de tensão, uma sala de medo, uma sala onde o pior poderia acontecer. Havia uma máquina de vending com chocolates e sumos, algumas mesas aparafusadas ao chão, cadeiras de plástico. Posters com conselhos médicos genéricos acompanhados por rostos sorridentes tornavam o ambiente da sala algo surrealista pois, de um modo geral, quem tivesse o azar de aguardar naquela sala teria muito poucas razões para sorrir. Uma sala desconfortável que ninguém iria recordar com simpatia ou saudade, já que a própria arquitectura e decoração inequivocamente hospitalar intensificava e perpetuava o desconforto e a angústia inerentes à doença. Não era a primeira vez que aguardava ali veredictos e sentenças mas nunca acontecera estar acompanhado. Já tinham conversado antes, conversas rápidas e algo fragmentárias mas interessantes, recompensadoras, inesperadamente cúmplices e íntimas considerando que ele era o paciente e ela uma enfermeira de serviço; conversas que o surpreenderam e perturbaram. Mas nunca tinham estado assim: frente a frente, como dois velhos amigos; ou dois novos amigos que se descobrem, fascinados.
«Gostas de ser diferente? De te sentir diferente?»
«Talvez goste. Um pouco.»
«E és?
«Duvido.»
«Todos gostamos de nos sentir especiais. Não é? Mas raramente o somos. O que acontece é que por vezes nos cruzamos com pessoas que nos acham especiais, que nos fazem sentir especiais. Não há nada de assinalável em nós, os outros é que por um qualquer erro de avaliação ou de interpretação ou de análise ou sei lá, sentem que somos especiais. E nós acreditamos nisso, porque queremos muito acreditar, precisamos de acreditar.»
«Mas se alguém nos considera especiais, na prática somos mesmo especiais.»
«Isso é um bocado simplista, não?»
«Tu sentes-te especial?»
«Sinto. Por vezes, sinto. Mas sei que não sou.»
«Não és?»
«Não, não sou.»
«Eu acho-te especial.»
«Mal me conheces.»
«Não acreditas no amor à primeira vista?»
«Amor? Por que estás a falar de amor?»
«Estou a falar por falar. Amizade à primeira vista, então.»
«Já somos amigos, é?»
«Gostava que fossemos. E afinal, estou a contar-te coisas que não conto nem ao meu melhor amigo. Sobre a doença, por exemplo.»
«Eu sei da tua doença porque sou enfermeira. Lembras-te? Trabalho aqui.»
«Verdade. Tu e mais umas dezenas de enfermeiras. Mas não conversei com mais ninguém nem ninguém manifestou qualquer interesse em conversar comigo.»
«Que significa isso, na tua opinião? Porque, aposto, para ti certamente terá um significado qualquer.»
«Não sei. Mas posso querer acreditar que aconteceu porque és uma pessoa especial. E, de qualquer forma, a tua atenção faz-me sentir especial.»
«Somos os dois especiais, então.»
Interrogava-se, algo distraidamente, algo envergonhadamente, algo excitadamente: estaria a ser seduzido? Na verdade, já não se lembrava como era ser seduzido, não se lembrava da última vez em que alguém o tentara seduzir. Ou estaria inconscientemente a seduzir aquela mulher? Seria ele o sedutor? Não o confessaria em voz alta mas sentia-se quase bem, apesar de estar num hospital a tentar lidar com um cancro; ela fazia-o sentir-se quase bem. Da mesma forma que o cancro limitava de forma cruelmente irrevogável e definitiva as possibilidades do seu futuro, a presença dela – a forma natural como se entendiam e apreciavam, como se atraíam – tornava esse mesmo futuro estranha mas irresistivelmente incerto. Ao conversar com ela, sentia-se não apenas menos assustado mas também um pouco excitado
«Por que estás aqui, neste momento?»
«Porque quero conhecer-te.»
«Boa resposta, essa. Mas por que me queres conhecer?»
«Não sei. Quero, simplesmente. Eu não sou de pensar muito, darling. Não racionalizo demasiado. Porque quando penso, fico mais presa; refém de mim própria, percebes? Por isso, evito pensar. Sigo o instinto.»
«Mas o instinto é uma forma de racionalização.»
«É?»
«Penso que sim. O instinto é uma espécie de decisão inconsciente; ou de pré-decisão. O cérebro apresenta-te uma solução racional mas como não percebes os mecanismos intelectuais que a produziram, como não tens consciência da forma como essa decisão se originou, não a entendes como uma decisão. E chamas-lhe instinto, como lhe poderias chamar outra coisa qualquer. Não sei se isto faz algum sentido para ti. É como aquilo do dejá-vu, que resulta de uma espécie de delay, de atraso infinitesimal, na consciencialização de algo que já sabíamos. Como quando nos vimos inesperadamente num espelho e demoramos um instante e perceber que estamos a olhar para nós próprios.»
«Pronto. Então pré-decidi conhecer-te.»
«Quando? Em que momento?»
«Houve um dia em que se fez um exame e te deixaram sozinho no quarto. Lembras-te? Eu entrei, já não me lembro porquê, e reparei na forma como me olhaste. Um olhar de confusão e desamparo, como o olhar de uma criança. Já te tinha visto antes mas foi essa expressão que me fez olhar-te com outra atenção. Ou com intensão, se quiseres. E depois, a forma como desviaste o olhar, como fugiste.»
«Há uma empatia qualquer entre nós, algo que nos aproxima. Não achas? Uma vontade de conhecer o outro e ser conhecido pelo outro; e, em simultâneo, uma certa sensação de que sempre nos conhecemos.»
«Um dejá-vu.»
«Pois.»
«Ou como se nos tivéssemos conhecido numa vida anterior.»
«É uma ideia curiosa, essa. Mas não acredito na vida para além da morte.»
«Neste caso, não seria vida além da morte. Mas vida anterior ao nascimento.»
«Que engraçadinha.»
«Quando vais contar à tua mulher, à tua família?»
«O quê?»
«Da doença.»
«Não sei. Nunca.»
«Nunca? Imagina que morres, desculpa falar assim. Morres e a pessoa com quem vives há não sei quantos anos descobre que estavas doente apenas no dia do funeral? Isso é de um egoísmo atroz.»
«Egoísmo talvez fosse contar-lhe. Estaria apenas a transferir o sofrimento, de mim para ela. Não era?»
«Isso é um argumento de miúdo.»
«Talvez. Mas não deixa de ser válido.»
«Tens medo de quê, afinal? Da reacção dela? Como achas que reagiria?»
«Em silêncio. Intimamente.»
«Que significa isso?»
«Uma reacção interior, cerebral. Pensaria indefinidamente, tentando analisar tudo. Como se pensar detalhadamente sobre um problema fosse o suficiente para o resolver.»
«Mas não seria solidária? Não te apoiaria?»
«Claro que sim. De forma obsessiva.»
«Como se fosse um problema dela?»
«Sim. Existiria uma espécie de apropriação da doença.»
«E isso incomodar-te-ia? Essa apropriação?»
«Sim. Incomodaria.»
«Mas não é essa a essência de uma relação? Que os problemas de um se tornem os problemas do outro? Que exista solidariedade e complementaridade?»
«Tens razão.»
«E quando não acontece desse modo, o que existe não é bem um casamento. É mais um ajuntamento de duas pessoas.»
«Que farias, se fosse contigo? Se fosses minha mulher e descobrisses a existência da doença?»
«Que faria? Não sei. Numa relação, há sempre certos segredos que não se deveriam partilhar; mas a partir do momento em que são conhecidos, não é possível que tudo permaneça como antes.»
«Raio de resposta. Estás a fugir»
«Pois estou. Por vezes, é necessário.»
«É?»
«É.»
A lata de sumo de laranja que ele retirara da máquina de vending quando se refugiara na pequena sala de espera estava esquecida à sua frente, quase cheia. Apenas se lembrou dela quando viu o modo descontraído como ela a pegou distraidamente e bebeu lentamente; fê-lo com à-vontade, como se fosse natural que os seus lábios se tocassem assim, através da lata. Talvez fosse um gesto banal e inconsequente mas achou-o sedutor, excitante, provocador. E ficou a olhar para a lata, tentando forçar-se a não lhe pegar. Porque a verdade – inconfessável, nem sequer assumida a si próprio – é que gostaria de sentir os lábios dela. E essa consciência não assumida desconcertava-o e perturbava-o, provocava-lhe ansiedade e nervosismo, culpa, ressentimento; a verdade é que durante um breve momento essa consciência (essa possibilidade?) o perturbou mais do que o cancro, do que a incerteza e a angústia provocada pela doença.   
«Diz-me uma coisa que adores na tua mulher.»
«Porquê?»
«Porque sim. Porque estou a pedir. Porque quero saber.»
«Está bem. Digo-te uma coisa.»
«Sem pensar. A primeira que te vier à cabeça.»
«Havia uns bilhetes que ela escrevia. Coisas simples como “estás no meu pensamento” ou “neste momento estou a sorrir para ti”. Escrevia pensamentos bonitos e fazia uns desenhos, tipo sorrisos ou corações.»
«Como os adolescentes apaixonados.»
«Sim. Depois, escondia os bilhetes em locais improváveis. E quando eu os encontrava, sentia uma surpresa deliciosa. Adorava essa surpresa.»
«Qual foi o sítio mais estranho onde ela escondeu um bilhete?»
«Sabes aquele triângulo de sinalização que é obrigatório ter no carro, que se coloca na estrada em caso de acidente? Para avisar? Foi aí, guardadinho lá dentro da caixa do triângulo. Dizia: “aviso-te que o meu amor por ti está a aumentar perigosamente”.»
«O amor é sempre uma coisa um pouco patética.»
«O amor em si, não. A expressão do amor, a sua verbalização, é que pode ser algo patética. Ou muito.»
«Pois. Isso.»
«Certo dia, tive um acidentezito e foi preciso usar o triângulo. Lá estava eu, todo enervado, com o carro lixado e a apanhar chuva, no meio da estrada. E vejo o papelito.»
«Que fizeste?»
«Sorri. E quase deixei de estar enervado.»
«E os papelinhos continuaram a aparecer indefinidamente?»
«Houve um dia em que encontrei um bilhete escondido numas cuecas lavadas. Dizia: “tenho saudades de te chupar”.»
«Uau.»
«Não sei por que raio te estou a contar estas coisas. Mal nos conhecemos. É irracional, tudo isto.»
«Contas porque queres, porque podes. Porque confias em mim. Porque estamos a iniciar qualquer coisa. Porque nos estamos a descobrir. Porque queremos que o outro faça parte da nossa vida e, para isso, precisa de saber de nós, precisa de ser integrado nessa vida. E porque temos pressa.»
«Temos?»
«Temos. Recuperar o tempo perdido.»
«É uma ideia curiosa, essa. E algo perturbadora.»
«Que aconteceu com os bilhetes?»
«Começaram a tornar-se exclusivamente sexuais. Recados, pedidos, marcações. Esse género de coisa.»
«E concretizavam, depois?»
«Sim, sempre. Ou quase sempre.»
«Parece divertido.»
«Era divertido.»
«E tu, não escrevias bilhetes?»
«Não.»
«Porquê?»
«Não sei. Por nenhum motivo particular. Apenas porque não.»
«Diz-me uma coisa. És uma pessoa reactiva?»
«Reactiva?»
«Sim. Limitas-te a reagir, sem tomar iniciativas. Como nessa história dos bilhetes. Ou, se preferires, dou outro exemplo: o teu interesse por mim é uma reacção ao meu interesse por ti? Limitaste-te a reagir ao meu interesse?»
«Não. Não sei. Quem sabe. Talvez.»
«Não te parece um pouco triste, isso?»
«Triste? Não diria triste.»
«Dirias o quê, então?»
«Não sei. Não sei o que diria.»
«Encolhes os ombros. Pelo que dizes, a tua vida é um permanente encolher de ombros.»
«Por que estás a ser cruel?»
«Tens razão, estou a ser cruel. Desculpa.»
«Tudo bem.»
«Mas deixa-me voltar à história dos bilhetes. Seria simplesmente um jogo? Ou um estratagema para superar uma qualquer dificuldade de comunicação?»
«Dificuldade de comunicação? Não creio.»
«Adoravas os bilhetes porque gostavas de ser surpreendido. Não foi o que disseste? E nunca te ocorreu que a tua mulher… como se chama a tua mulher?»
«Não interessa, isso.»
«Nunca te ocorreu que ela também quisesse ser surpreendida? Quando foi a última vez que a surpreendeste?»
«Estou a surpreendê-la agora mesmo. Não lhe contando que estou a morrer com um cancro.»
«Agora és tu que está a ser cruel.»
«É verdade.»
«Que aconteceu com os bilhetes, depois?»
«Um dia, a nossa filha encontrou um.»
«Ui»
«E de repente tudo aquilo pareceu uma coisa um bocado parva, percebes? Não falámos sobre o assunto, não fomos capazes de o fazer, seria constrangedor. Abandonámos a brincadeira e não voltámos a pensar nisso.»
«Podias escrever um bilhete a dizer “tenho cancro”; e escondê-lo tão bem que ela apenas o encontraria depois de teres morrido.»
«Estás a brincar, certo?»
«Claro que estou. É evidente.»
«Uma brincadeira um bocado estúpida, não?»
«Tens razão. E cruel, outra vez. Desculpa. Parece que a crueldade é uma espécie de tentação.»
«Deve ser isso. Uma tentação.»
«Sabes? Por vezes, sou um bocado parva.»
«Gosto de parvoíces.»
«Gostas? Ainda bem. E tu, nunca fazes coisas parvas? Ou só gostas das parvoíces dos outros?»
«Faço cada vez menos. Mas claro que o excesso de seriedade é sempre mal visto. Se és demasiado sério e não fazes coisas tolas, consideram-te alguém que não se sabe divertir, que não sabe aproveitar a vida.»
«Suponho que não concordes.»
«Não, não concordo. Parece-me uma simplificação um pouco idiota.»
«Então por que dizes que gostas de coisas parvas?»
«Não sei. Mas gosto. Por vezes, gostamos daquilo que não somos, que não conseguimos ser. Não é? Gostaríamos de ser diferentes, de ser outra pessoa qualquer.»
«Gostavas de ser menos sério? Mais descontraído e relaxado? Mais parvo?»
«Talvez. Quem sabe?»
«E por que não tentas?»
«Bom, somos o que somos. Podemos sonhar ter cabelo azul que não será por isso que ele deixará de ser castanho. Até o poderemos pintar de azul mas na essência nunca deixará de ser castanho.»
«Raio de exemplo, darling. Até parece que estás a falar com uma criança. Falas assim com a tua filha?»
«A minha filha já não é criança.»
«E a tua mulher? Aprecia essa seriedade toda?»
«É esquisito falares assim. Como se a conhecesses.»
«Incomoda-te?»
«Um pouco.»
«És mesmo sério, tu. Olha lá. Já que dizes que gostavas de ser mais parvo. Achas que se pode ficar parvo por contágio?»
«Por contágio? Que queres dizer?»
«Se conviveres com pessoas parvas será possível que fiques também um pouquinho mais parvo, que percas um pouco dessa seriedade toda? Que ocorra uma espécie de transferência de parvoíce.»
«Tu és demais, fazes-me rir. Tens cada ideia.»
«A sério. Imagina que faço agora mesmo uma enorme parvoíce que me está a apetecer fazer. Que aconteceria depois? Considerando que és uma pessoa reactiva. Corresponderias à minha parvoíce? Serias parvo?»
«Mas de que estás a falar? Que parvoíce te apetece fazer?»
Olhou-o em silêncio durante alguns segundos e sorriu. Depois aproximou-se lentamente dele e beijou-o.

Marionetas

«Se pudesse escrever num jornal, gostaria de falar de algo em que reparo mais desde que entrei no secundário: parece que as pessoas acompanham os actos dos outros apenas à espera de encontrar um erro, para depois emitirem uma opinião ou fazerem um julgamento. Confunde-se emitir opiniões com caçar defeitos e há muita gente que apenas fala para dizer mal, para criticar. Não me importo com o que as pessoas fazem, desde que não magoem ou afectem os outros; e acredito que todos devem ser livres de se exprimir, de revelar o seu verdadeiro eu. Mas parece que a maioria se ofende com pouco e vai ligando cada vez menos àquilo que verdadeiramente importa. Forma-se um ciclo vicioso: uma pessoa habitua-se a dizer que está bem quando não é o caso (talvez porque não se queira fragilizar ou se tente convencer que está mesmo bem) e as coisas desse modo nunca se resolvem, apenas pioram; as relações baseiam-se num certo fingimento e indiferença, nunca se conhece o que o outro realmente sente porque se valoriza mais o parecer do que o ser. Um exemplo dessa incapacidade em ver e aceitar a diferença nota-se nalgumas pessoas que se consideram feministas e acham que isso é algo que envolve apenas o sexo feminino, quando o feminismo não defende a superioridade de ninguém mas a igualdade dos géneros. Não há regras escritas mas na prática a sociedade dá-as como definitivas; e essas regras, os papéis rígidos que a sociedade impõe, aprisionam-nos. Acredito que cada um é como é e gosta do que gosta, o resto é palha. Mas muitas pessoas vão seguindo as regras impostas e nunca são verdadeiramente felizes, transformam-se numa espécie de marionetas da sociedade. Fecham-se nas suas certezas e se olham para o lado é apenas para criticar. Acredito que a mudança começa no indivíduo, ao ter confiança em se afirmar, assumir a sua diferença, não ser escravo do que a sociedade determina quando aquilo que a sociedade determina é injusto. E não entendo por que motivo as pessoas continuam com mentes tão fechadas, bastava que houvesse respeito e compreensão pela diferença, que houvesse tolerância. Mas se as pessoas não têm coragem de ser como querem e mostrar o que são, nunca se sentirão livres, nunca serão verdadeiramente felizes. E assusta-me viver num mundo assim. Creio que é importante pensarmos em nós e nas consequências das nossas acções, mas é ainda mais importante não pensar apenas nisso, pensar também nos outros. Percebermos que somos singulares e devemos pensar por nós, termos o nosso mundo; mas nunca esquecer que o mundo não é nosso. Era disto que gostaria de falar, se tivesse oportunidade de escrever num jornal. Porque apesar de ter a completa noção de que não iria mudar nada, gostaria de acreditar que talvez encontrasse um leitor com paciência e curiosidade para ler o texto com atenção, alguém que partilhasse algumas das minhas ideias. Alguém que acreditasse, como eu acredito, que se queremos que as coisas fiquem melhores temos de ser nós a fazer por isso.»
(A Maria tem quinze anos e falou durante meia hora quando lhe coloquei o desafio: “Se pudesses escrever num jornal, o que gostarias de dizer?” Esta crónica é um pequeno resumo do que disse.)

[Crónica para o Jornal de Leiria]

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Estória em cinco partes a partir de fotos de Sílaba Súbita.






E agora?

[Um conto com vinte anos.]


I

Espreito pela janela: o imenso azul do céu convida-me à liberdade, desafia-me a partir. A manhã está fria, o sol acaba de nascer e parece espreguiçar-se pelo céu como se também a ele lhe custasse enfrentar mais uma segunda-feira. Decido apressar-me, antes que a coragem me abandone. E concentrado na imagem que guardo do céu, imaginando o que poderei fazer debaixo daquele azul libertador, regresso ao interior do quarto, regresso à realidade. Ela move, ameaça acordar; e o pavor de ter de lhe falar invade-me, avassalador: seria incapaz de pronunciar uma única palavra, não saberia o que dizer.
Quase corro até à casa de banho, tranco a porta com estrondo. E apenas quando a água quente do chuveiro me metralha, com violência e indiferença, sinto alguma serenidade. Espreito um pedaço de céu pela pequena janela: mantém-se azul, convidativo. Espera-me. Os pensamentos vêm e partem, atropelam-se. Excitam-me e angustiam-me, passam por mim como se não me pertencessem. Como se fossem segredos murmurados por um anjo da guarda. E deixo-me ir, indefeso, seduzido.
Visto-me, apressado. Tento não olhar nada, porque sei: o último olhar dói. Não quero despedidas, é mais fácil esquecer. E esta casa, esta vida, deve ser esquecida.


Ainda dorme. Queria sair e desaparecer para sempre mas não tenho coragem; ainda. Seria mais fácil, menos hipócrita: deixá-la a dormir e sair. Mas sou incapaz, por uma última vez tenho de representar a comédia familiar, fingir que esta não é a última manhã que passamos juntos. Talvez dar uma explicação.
Estou sentado na cozinha e o tempo passa. Olho o copo de leite que está à minha frente e pergunto-me quem o terá derramado no copo, não me lembro de o ter feito. O silêncio quase tétrico do apartamento incomoda-me, não sei o que fazer com as mãos. Não sei o que fazer com os pensamentos. Olho o copo de leite. E o tempo vai passando, vazio e fútil.


Ouço-a levantar-se. Pequeno arroto. Tosse. Ruído do isqueiro. Mais tosse. Sinto a tensão percorrer-me o corpo, o medo espreitar. Apetece-me fugir, desejo irracionalmente que venha um tremor de terra e me salve. Ouço passos e ei-la: está nua e a beleza do seu corpo perturba-me. Segura o cigarro com uma mão, ordena o cabelo selvagem com a outra. Passa por mim e, sem me olhar, deposita-me um beijo seco e indiferente na testa. O seu gesto choca-me: não indicia ternura nem sentimento nem amor. É apenas uma acção mecânica e irreflectida, condicionada por dez anos de rotina. Indiferente, como alguém a sacudir a cinza do cigarro num cinzeiro.


Sacode a cinza do cigarro num cinzeiro e desaparece na casa de banho. Pego no copo de leite e bebo um trago; amarga, apetece-me cuspi-lo.
Vagas recordações do passado invadem-me a mente, perturbam-me as ténues e incipientes fantasias de liberdade. Tento esquecer. Uma nuvem de nevoeiro chega da casa de banho e confronta-me com a realidade: um corpo que toma banho e do qual preciso despedir-me. Aguardo.
Quando passa por mim, sem me olhar, tento dizer alguma coisa. Depois, sons desordenados chegam do quarto; atrapalho-me com os pensamentos, não consigo dominar a ansiedade. Levanto-me e procuro-a. Está a vestir as cuecas. Noutros tempos (noutra vida), teria simplesmente despido as calças e faríamos sexo. Prazer. Passado.
Fico a vê-la vestir-se, tentando encontrar palavras. Ignora-me. Passa por mim, sem me tocar, e volta a fechar-se na casa de banho. E é quando ouço o baque da porta que percebo (admito): não terei coragem. Não direi uma palavra. Serei, uma vez mais, o cobarde que sempre fui. Direi até logo e fugirei para longe, na direcção do céu. Admito-o.
E uma sensação de alívio invade-me, lenta e libertadora.


Quando ela sai da casa de banho, atravesso-me no seu caminho e dou-lhe um beijo na testa. Digo até logo. Saio e fecho a porta. Tudo muito rápido, como se temesse arrepender-me e voltar atrás. Mas não volto. Caminho pelo corredor, firme e resoluto.
Pergunto-me: e agora?


II

            Pergunto-me: e agora?
            Quando ouvia porta fechar, senti uma onda de alívio invadir-me, lenta e libertadora. Mas, e agora?
            Sento-me num canto da cama e fecho os olhos. Apetece-me chorar: dez anos depois, aqui estou. Parece que foi ontem, parece que passou uma eternidade. Mas acabou, a eternidade. E quero sentir-me feliz mas não consigo, teria vergonha se me sentisse feliz.
            Pensamentos desordenados atropelam-se, procurando captar a minha atenção. Mas a minha atenção não se deixa captar e voa, anárquica, em busca de tudo, encontrando nada. Deixou ali no chão as meias azuis que comprei no Verão passado, naquela loja do shopping perto dos cinemas, fazia um calor dos diabos nesse dia; e havia um rapaz que não tirava os olhos das minhas pernas. Era bem bonito, o rapaz. E as minhas pernas também. Bastaria ter estalado os dedos e seria meu, como no tempo da escola, tanta vez que estalei os dedos, e havia rapazes e beijos e prazer. Há tanto tempo que não tenho prazer. Devia ter estalado os dedos; olho as meias azuis abandonadas no chão e penso: devia ter estalado os dedos.
Levanto-me, decidida a apanhar as meias mas mudo de planos e não o faço. Fico parada no meio do quarto, com a mão estendida. Congelada. Sentindo-me patética.


E agora?
Tive uma última oportunidade para tentar explicar, para o fazer perceber, para me despedir. Não a usei, fui cobarde, tive medo de mim; de ir longe demais, de não ir tão longe quanto devia. Ou terá sido, simplesmente, preguiça?
Talvez. Afinal, explicar o quê? Como se explica que o amor acabou? Não se explica, sente-se; sobrevive-se; continua-se.
É melhor assim. Sem explicações.


Levanto-me e caminho pelo apartamento, tocando ao acaso nos objectos, despedindo-me deles. E tento convencer-me: se ele tivesse feito qualquer coisa, se tivesse dito uma palavra, poderia ter sido diferente. Se tivesse entrado na casa de banho e ficasse a olhar-me, a devorar-me o corpo com aquele seu olhar de infantil deslumbramento que tanto amei, talvez o tivesse puxado para a banheira; ou talvez ele tivesse percebido o quanto queria que me fodesse contra qualquer coisa; talvez conseguíssemos encontrar um vestígio de amor. Mas não entrou na casa de banho. Ficou a olhar para o copo de leite.
Afasto o ímpeto de nostalgia que me foi dominando, tento controlar as emoções. Caminho, quase firme, na direcção da porta, abro-a, lanço um último olhar para tudo o que vou abandonar. Não consigo evitar a antecipação: ele a abrir a porta e a observar o apartamento exactamente do mesmo ângulo que olho agora; e descobrir que parti. O que pensará? O que sentirá?
Puxo a porta e enfrento o corredor, decidida.


Sugus

Ouço distraidamente uma música da Capicua; espero que o trânsito avance e acompanho a letra quando, de repente, surge uma palavra inesperada: sugus. É uma palavra mágica, que de imediato me desperta um sorriso e me faz fugir do trânsito parado, dos devaneios da Capicua, de um fim de dia sem história. Porque nesse momento, devido a uma simples palavra e ao que essa palavra evoca, regresso às tardes de domingo dos anos oitenta, quando os meus pais iam algures tomar café e regressavam com dois pacotes de sugus, para mim e para o meu irmão; tardes pachorrentas preenchidas com coboiadas antigas na RTP, em que se tentava não pensar em escola, em que se esperava pelas sete da tarde para ver mais um episódio do Justiceiro. Mas o que permaneceu como catalisador de algumas das melhores memórias de infância (além dos legos, mas isso é outra conversa) foram os sugus, talvez por serem uma memória com gosto, com cheiro, com tacto; uma memória com sentidos. É curioso o modo como personificamos em objectos as sensações que nos fazem sentir vivos; é curioso, e algo infantil, o modo como povoamos o mundo que nos rodeia com as nossas emoções. Talvez seja uma estratégia inconsciente de selecção, já que em cada dia existem inúmeras sensações, pensamentos, desejos, fantasias e emoções que se apoderam de nós, sendo impossível (e indesejável) guardar tudo na memória. Mas como se fará essa selecção? Que mecanismos determinam que algo permaneça connosco para sempre e tudo o resto se perca irremediavelmente? Se fosse uma questão de intensidade, apenas guardaríamos momentos avassaladores; mas não é o que acontece, pois temos a memória repleta de pormenores, de detalhes, de coisas simples que afinal são fundamentais. Como sugus. Talvez seja por isso que associamos objectos físicos às sensações que desejamos preservar: para as distinguir e destacar; para as arrancar à monótona e implacável passagem dos dias. Um processo de associação incontrolável, instantâneo, inexplicável, inconsciente; inesperado, e por isso particularmente intenso. Sensações que personificamos numa fotografia ou numa música, num filme, num cheiro, num prato ou numa bebida, numa terra ou num local; numa palavra, que quando lemos num livro ou numa parede ou num rodapé de noticiário nos transporta de imediato a determinado momento do passado. Como se as regras de espaço e tempo estivessem suspensas e fossemos projectados para o tempo e espaço da memória que o objecto personifica; uma espécie de sonhar acordado, no qual entramos (e do qual saímos) abruptamente, num processo desencadeado por percepções físicas que dão uma dimensão sensitiva a memórias intangíveis. Ou tão só uma tentativa ingénua de não esquecer, de não perder, de não largar; de atenuar a monótona e implacável passagem dos dias e dar-lhe um pouco de sentido; de regressar às tardes de domingo.

(41ª crónica para o Jornal de Leiria

Tempo

Disponível aqui.


Contos imperfeitos



Apresentação: Arquivo - Leiria | 5 de Março | 18h30