Cabides

Quando chega a casa faz sempre o mesmo: segue directamente para o quarto e despe-se. É com um cuidado delicado, quase terno, que arruma o vestido que usara nesse dia num cabide; depois, olha-o durante um segundo, por vezes faz-lhe uma leve carícia. Tem consciência de que esse comportamento é um pouco estranho, talvez até um pouco louco, mas não se incomoda. Os seus vestidos são mais do que roupa, são mais do que parte da sua identidade, são mais do que uma extensão de si; são como uma parte do seu corpo, são uma segunda pele; ou primeira pele? Talvez seja por isso que os cuida com tanta dedicação, quase com uma pequena ponta de obsessão. No fundo, teme que se gastem; teme que percam vigor, beleza, energia, atractividade, deslumbre; que envelheçam. É por isso que os cuida de forma tão extrema: para os poupar. Pensa nisto, por vezes; e sente algum embaraço. Mas não existe mais ninguém na sua mente, aí é livre de pensar tudo o que desejar. E por isso continua a pensar embaraços, sentindo-se livre. (Possível definição de felicidade: sentir com outra pessoa o mesmo nível de liberdade que se tem na intimidade da própria mente, aquela liberdade total que apenas parece possível no interior de cada um.) Quando chega a casa faz sempre o mesmo: segue directamente para o quarto e despe-se. Mas depois de arrumar o vestido, pode optar por destinos diferentes. Um deles é deitar-se na cama, nua; e sentir na pele o ar fresco, o toque do lençol, a carícia dos seus dedos. E deixar o espírito deambular. Deixar o espírito sonhar. (Sonhar é melhor do que viver?) É isso que faz hoje. Despe-se, arruma o vestido, deita-se na sua cama, fecha os olhos e sonha. Dentro de momentos irá regressar à vida, ao seu quotidiano, às infinitas acções concretas que compõem os dias. Mas por enquanto, sonha. E enquanto sonha, sente a sua própria pele. (Sonhar e sentir: não é mais ou menos igual?) É então que um pensamento imprevisto surge em forma de pergunta e a inquieta, a surpreende, a desassossega: quais serão os sonhos da minha pele? É um pensamento desconcertante e que, de repente, alastra em direcções inesperadas. Se o espírito sonha, também a pele deverá ter os seus próprios sonhos. Todo o corpo deverá ter os seus próprios sonhos. Os dedos. A boca. Os olhos. Os seios. O coração. Todo o corpo a sonhar, infinitos sonhos a cruzarem-se por todo o lado. Como sangue. Um arrepio percorre o seu corpo, o seu espírito; estremece, agita-se. Abre os olhos como se algo dentro de si quisesse fugir desesperadamente por eles; e encara o tecto do quarto em busca de uma fuga. Uma pergunta que incomoda: será que tenho andado a impedir que o meu corpo sonhe? Levanta-se, a possibilidade de fuga não está no tecto mas na porta. Caminha, sabe que o movimento é sempre uma salvação. E é quando vai a passar pelo vestido que antes arrumara, cuidadosamente alinhado ao lado de dezenas de outros vestidos, que pensa: será que tenho andado a poupar o corpo, tal como poupo os vestidos para que não se gastem? Será que tenho andado a poupar o coração? Temendo que perca vigor, beleza, energia, atractividade, deslumbre? Que envelheça? Será que arrumei o meu coração num cabide para o poupar, para que não se gaste?

Crónica n.º 67 para o Jornal de Leiria