Estória velhinha (vê-se logo pelo título, que já nem existem bilhetes de identidade), baseada no quadro "Sunlight in a cafeteria", de Edward Hopper.
ELA (um pouco embaraçada): Obrigada. (Pausa breve.) Tu também.
(ELE
sorri, com tristeza; ela desvia o olhar.)
ELE (sem a olhar): Tenho feito algum exercício.
ELA (com alguma surpresa, talvez fingida): A sério?
ELE (com displicência): É. (Pausa
breve. Apoia as mãos na cadeira, revelando a sua predisposição em prolongar a
conversa. ELA, sentada, olha-o momentaneamente e volta a desviar o olhar,
talvez incomodada com a imposição da presença dele; aguarda, resignada.)
Meti-me num ginásio e comecei a gostar daquilo, nem sei bem porquê. Estar para
ali a esforçar o corpo, a apreciar o cansaço e assim, sempre me pareceu uma
coisa um bocado estúpida; mas, ao mesmo tempo, é libertador. (Pausa breve.) É esquisito, não sei
explicar. Uma espécie de intervalo da vida e da rotina e dos problemas,
percebes?
ELA (encolhe os ombros, tentando manter-se imparcial, não revelar
desinteresse ou curiosidade): Nunca fui a ginásios. (Mexe distraidamente o jornal que tem à frente, que estava a ler antes
de ele a abordar.) Fico-me pela parte do estúpido.
(ELE
sorri, desconfortável; vê como ela vira a página do jornal, com enfado; como se
estivesse aborrecida; ou desinteressada da sua presença; move-se, denunciando
algum nervosismo, apoiando o peso do corpo nas costas da cadeira.)
ELE (num tom de voz velado): Estás à espera de alguém?
(ELA
abana a cabeça, sem o olhar; volta outra página do jornal.)
ELE (tentando parecer entusiasmado): Aposto que também vieste tratar do
bilhete de identidade. Aquilo ali está complicado, não sei a que horas nos
despachamos.
(ELA
olha-o durante um momento, talvez preparando-se para dizer algo; mas permanece
calada, como se se arrependesse do seu pensamento, da sua intenção.)
ELE (receoso,
quase tímido): É curioso, não é? Estamos divorciados há… quê? Sete meses?
ELA (num tom gélido, traindo a sua pretensão de desinteresse): Nove.
ELE (ignorando a frieza dela): Nove meses. E escolhemos precisamente o
mesmo dia para vir mudar o estado civil, no bilhete de identidade. (Pausa breve.) Como se tivéssemos
combinado.
(Olham-se
em silêncio, embaraçados e tímidos.)
ELE (um pouco ansioso): Posso sentar-me aqui?
(ELA
encolhe os ombros. ELE hesita durante alguns segundos; depois, arrasta a
cadeira e senta-se. Permanecem em silêncio, sem se olharem. Pouco depois,
aproxima-se um funcionário do café; olha-os em silêncio, simultaneamente
expectante e desinteressado.)
ELE (dirigindo-se ao funcionário): Uma torrada e um sumo de maçã, se
faz favor.
(O
funcionário olha a mulher, que acaba por abanar a cabeça. Afasta-se, em passos
lentos e arrastados.)
ELA (após um longo silêncio; tom seco, como se se obrigasse a falar): Ginásios
e torradas. Tens mesmo uma vida nova. (Pausa
breve.) E que mais mudou, nestes nove meses?
ELE (num tom baixo e hesitante, envergonhado): Já não estou com ela.
(ELA
olha-o, surpreendida; esboça um breve sorriso de surpresa e incredulidade. ELE evita
o seu olhar.)
ELA (também num tom mais baixo, apreensivo): Já não estás com ela?
(ELE
abana a cabeça, lentamente, com desânimo; ou talvez vergonha. Ouve-se um
estrondo inesperado, talvez devido à queda de um copo; mas ambos mantêm os
olhares fixos e absortos, indiferentes.)
ELA (num tom simultaneamente embaraçado e curioso): Quanto tempo
viveram juntos, afinal?
ELE (após um longo silêncio): Umas semanas, não sei bem quantas. (Pausa breve.) Nove ou dez, talvez. Ou
menos.
ELA (tentando dominar uma súbita indignação, um prenúncio de fúria): Só?
(Pausa breve.) Mas porquê? (Pausa breve.) Porquê?
ELE (hesitante): Suponho que nos cansámos. (Pausa breve.) Que me cansei.
(O
funcionário surge, de súbito, junto da mesa, surpreendendo-os a ambos. Pousa a
torrada e o sumo em frente do homem, com gestos vagarosos, descuidados, e fica
a olhá-los, durante alguns instantes; depois afasta-se. Num gesto automático,
talvez inconsciente, o homem pega um pedaço de torrada, que tem um aspecto seco
e queimado, e dá uma dentada; engole com dificuldade e pousa o pedaço que tinha
na mão. A mulher tem estado a olhá-lo, fixamente, acusadora e expectante.)
ELA (irritada e incrédula): Cansaste-te?
(ELE
encolhe os ombros, embaraçado. Permanecem em silêncio, afastados e distantes,
desconfortáveis.)
ELA (muito tempo mais tarde, quase num murmúrio): Cansaste-te. (E, de súbito ri; uma gargalhada breve e
explosiva, ansiosa, libertadora.)
(ELE
olha-a e sorri, com tristeza. Bebe um gole de sumo. Volta a pegar um pedaço de
torrada, que logo pousa.)
ELA (olhando a chávena de chá que tem à sua frente, vazia.) Acho que
vou ver como está a fila. (Não se move,
como se pretendesse que ele a contrariasse, impedisse a sua partida.) Mas a
manhã já está perdida. (Começa a dobrar o
jornal.)
(De
súbito, a mulher levanta-se, desajeitada e impulsivamente. ELE fica a olhá-la,
vendo-a afastar-se em direcção ao balcão do café; paga, pergunta qualquer coisa
ao funcionário, que primeiro encolhe os ombros e depois abana a cabeça. Depois,
regressa à mesa. Olham-se durante um instante, desconfortáveis. Ele permanece
sentado, ela de pé. Como se estivessem ansiosos por se despedirem mas não
quisessem tomar a iniciativa; ou como se, secretamente, não se quisessem
despedir mas temessem que o outro o percebesse.)
ELE (num tom sonhador, sem a olhar): Estava a olhar para ti e a pensar
que… sei lá. (Pausa breve.) A pensar
disparates.
(ELE
olha-a, como se procurasse um incentivo a continuar; ELA, contudo, mantém-se
rígida e inexpressiva.)
ELE (tímido e inseguro): Não sei. Acho que se não nos conhecêssemos e
estivéssemos os dois aqui ao mesmo tempo, neste café. (Pausa breve.) Assim como estamos mas cada um sentado na sua mesa,
cada um distraído com os seus problemas e pensamentos, sem nada a unir-nos. Sem
um passado comum. Percebes? Perfeitamente desconhecidos e anónimos.
(ELA
agora olha-o, curiosa.)
ELE (hesitante): Se isso acontecesse. (Pausa breve.) Acho que não conseguiria tirar os olhos de ti. (Pausa longa.) Acho que acabaria por me
levantar e meter conversa. Tentar.
(ELA
sorri, contrariada. Depois, arruma a cadeira a que está apoiada, a mesma onde
antes estivera sentada. Olha-o, em silêncio.)
ELA (num tom provocatório, quase amigável): E eu talvez correspondesse
ao teu interesse. (Pausa breve.) Mas
depois, eventualmente, acabavas por te cansar. (Sorri.) Outra vez.
(ELE
encolhe-se quase imperceptivelmente, como se tivesse sido atingido por um golpe
traiçoeiro, como se estivesse a ser atacado.)
ELA (quase jovial): Vou andando. (Olham-se,
embaraçados e constrangidos; ELA hesita durante um instante; depois, avança um
passo.) Gostei de te ver.
(ELA caminha com alguma
ansiedade, subitamente apressada; passa mesmo junto dele, quase o tocando.)