(Uma velha estória, há muito esquecida e agora reencontrada; é
uma interpretação de um dos meus quadros favoritos: Morning Sun, de Edward Hopper.)
Agora, faço isto todas as manhãs: sento-me na cama e olho
pela janela. Olho, simplesmente: à espera que o tempo passe, à espera que um
sonho ou uma esperança ou uma oportunidade entre pela janela e me invada o
corpo e a alma, trazendo consigo algum entusiasmo, algum prazer por estar viva
e ter vida pela frente; qualquer coisa. Fico assim durante alguns minutos,
enfrentando a luz do sol; olho, também, o céu, procurando no seu azul, nos seus
múltiplos e indefinidos tons de azul, uma distracção do cinzento deste quarto,
do cinzento da minha vida, do cinzento do meu futuro (e quando o cinzento da
minha vida se mistura com o cinzento do céu sinto-me estranhamente acompanhada,
menos só.) Depois, inevitavelmente, resigno-me: sei que nada acontecerá, que
ninguém virá. E desisto; visto-me muito devagarinho concentrando-me em cada
detalhe da roupa, da maquilhagem, dos acessórios, da escolha dos sapatos e do
perfume; depois, devidamente camuflada, saio e enfrento o mundo; ou melhor:
escondo-me do mundo, no mundo.
Mas são importantes, estes momentos: recordam-me como estou
só; e, algo perfidamente, dão-me alento: porque é impossível piorar, é
impossível ser mais infeliz, ou permanecer assim infeliz para sempre.
Por vezes, quando as fantasias nocturnas não se dissipam tão
velozmente como deveriam, dou por mim a tocar-me, a acariciar-me, a
confortar-me. Toco-me, para me sentir menos desprotegida, esforçando-me por
acreditar que não estou só, que sou
alguém; acompanho-me. Toco-me, também, para acalmar o corpo,
para o serenar, para o saciar. Para o distrair.
Descobri na masturbação uma forma cruel mas eficaz de
protecção; quando acalmo e anestesio o corpo com o prazer que eu própria lhe
proporciono, deixo de sentir necessidade de sair deste quarto e partir em busca
de alguém, de um qualquer homem anónimo, sem rosto nem nome, sem pretensões nem
diálogos nem futuro, que me acalme e pacifique, fodendo-me com competência mas
distanciamento. Porque certamente que o encontraria, encontrei sempre que quis,
sempre que precisei. Encontraria; mas, e depois? Depois de satisfeito o corpo,
pensaria – seria inevitável, penso sempre – que esse homem poderia, talvez, tentar
serenar-me a alma, preenchendo-a com amor (amor… mas que coisa mais pomposa),
ou simplesmente com carinho e cumplicidade e riso e alegria; pensaria que
talvez ele se pudesse interessar por mim, e não apenas pelo meu corpo. Pensaria
que talvez esse homem anónimo, competente mas desinteressado, pudesse tentar
amar-me. Ou seja: iludir-me-ia; e sofreria. Porque, agora, parece que ninguém
tenta amar seja quem for; já nem me lembro do último que tentou amar-me.
Um destes dias, quando olhava pela janela, perguntei-me: há
quanto tempo não sou verdadeiramente amada? E fui saltando de
companheiro em companheiro, recuando no tempo, especulando qual deles me
poderia ter amado, tentando recordar quais deles me disseram amo-te,
tentando adivinhar se algum dos que disse – poucos, tão poucos – teria sido
sincero. A conclusão, desencantada e dolorosa, a que cheguei foi que, afinal, talvez
nenhum me tivesse amado. Mas decidi ir um pouco mais longe, avançar mais por
mim a dentro; e arrisquei perguntar-me se eu os teria amado, se teria amado
algum dos homens da minha vida. E a resposta que chegou lá de dentro, bem do
fundo de mim, foi: talvez não. Sem dúvida que desejei amá-los; e talvez tenha
fingido amá-los, talvez tenha até acreditado que os amava. Mas não mais do que
isso.
Então, enquanto me agarrava aos joelhos e sentia a pele fria,
tão insuportavelmente fria apesar do calor do sol que entrava pela janela,
desisti de fugir, não me apeteceu continuar a fugir; e permiti que a
interrogação final, fatal, me atingisse: será que nunca fui amada apenas porque nunca amei? Levantei-me e
caminhei devagar, muito devagar, entrei na casa de banho, fechei a porta. E
chorei. Olhei-me no espelho e chorei, até deixar de sentir pena de mim própria.
O céu está repleto de nuvens brancas e redondas que se
arrastam com preguiça, resignadas e apáticas como transeuntes arrastando as all
star e os saltos altos no corredor de um centro comercial numa manhã de domingo;
a luz do sol da manhã invade o quarto, fraca e ténue, triste. E não há mais
ninguém, apenas eu e a luz e as nuvens e a vontade de companhia. Sinto-me
vazia, mais do que o habitual. Sinto a mente ziguezaguear, frenética e
assustada, arrastando-me atrás de si, apetite após apetite; e o mais triste é
que sei que me está a arrastar para lado nenhum. Apetece-me chorar; apetece-me
rir; apetece-me abraçar; apetece-me morrer; apetece-me falar; apetece-me
acreditar; apetece-me ser olhada; apetece-me uma surpresa; apetece-me
arrebatamento; apetece-me o oposto de solidão e não sei o poderá isso ser; mais
que tudo, apetece-me ser tocada.
Toco-me, então; não há mais ninguém para o fazer, agora,
neste momento; por isso, toco-me a mim própria. Envolvo o seio na mão, aperto o
mamilo. Fecho os olhos: e imagino-me beijada, imagino o meu mamilo acariciado
por uma língua. Tento acreditar na fantasia, retirando da escuridão que me envolve
o vislumbre de imagem de um qualquer rosto, percorro a memória em busca da
recordação de uma boca que preencha e consubstancie o meu devaneio. E é então
que, inesperadamente, me surge o teu rosto, o teu beijo; pela primeira vez em
tantos, tantos anos penso em ti. E deslumbro-me com a nitidez das imagens,
repentinas, imparáveis: nós os dois deitados na praia, cobertos de areia,
arrepiados e desconfortáveis; a tua mão no meu seio, os teus dedos no meu
mamilo; e depois, abrupto e desajeitado: lambeste-o, chupaste-o, mordeste-o.
Pela primeira vez: para ti, para mim.
Lembras-te? Tínhamos dezasseis anos e queríamos ser médicos,
ter filhos, comprar um barco, viver em África e escrever poemas, salvar o
mundo, descobrir novos mundos; mas antes, queríamos, mais que tudo, descobrir
os nossos corpos e levá-los ao limite. Fugíamos das aulas, escondíamo-nos na
praia; e fazíamos amor, desajeitadamente e muito depressa, com uma intensidade
quase doentia; depois, deixávamo-nos estar, disfarçando a decepção que
sentíamos por o sexo nunca ser verdadeiramente reconfortante com longas
conversas inconsequentes, desfilando fantasias que nem chegavam a ser utopias
de adolescente, fantasias que não passavam de devaneios de criança. E depois,
partíamos, de bicicleta, tão eufóricos quanto frustrados. Lembras-te?
A ti, amei-te; e tu, amaste-me. Tenho a certeza.
Não sei por que penso agora em ti, não sei por que nunca
pensei em ti, até hoje. Largo o seio e levanto-me, aproximo-me da janela. Olho
o mundo, lá fora: e não tenho medo, por um momento consigo não ter medo. Já
amei, já fui amada; afinal, o que desejo não é uma impossibilidade: já
aconteceu, pode repetir-se. E que se fodam todos os que me dizem que a
felicidade, a minha felicidade, não virá na forma de um homem. Olho a cidade
anónima e distante, expectante, subitamente convidativa; pergunto-me o que será
feito de ti; pergunto-me se não estarás a olhar por uma qualquer janela, a
pensar em mim.
Agora, faço isto todas as manhãs: sento-me na cama e olho pela
janela. Penso em ti. Penso que talvez pudesse partir pela cidade fora, à tua
procura; penso que, se o fizesse, certamente te encontraria; penso que, se nos
encontrássemos, poderíamos tentar ser felizes, outra vez, mais uma vez. Penso
que sou (sinto-me como) uma miúda de dezasseis anos, a alimentar devaneios inconsequentes: e
não me importo.
(Quando passeio no centro comercial, ao domingo de
manhã, já não olho tanto para o chão como fazem quase todas as outras pessoas,
já não reparo tanto nos saltos altos e nas all star; olho os rostos (sim,
atrevo-me a fazê-lo), olho-os simplesmente, durante uma fracção de momento; e
surpreendo-me tanto, mas tanto, quando algum desses rostos, um dos que também
não olha o chão, me sorri que não consigo deixar de sorrir também. Vou
sorrindo, então: sorrisos de manhã de domingo; treinando para o dia em que finalmente
te encontrar e me perguntares se ainda quero ir a África.)