(Escrito a partir de uma fotografia de Sofia Mota.)
É
então que me abraças pela primeira vez. E sinto que acontece algo semelhante ao
que sempre vi nos filmes palermas (tu sabes o quanto gosto de filmes palermas,
não sabes?): um daqueles momentos em que parece que o mundo pára durante um
fragmento de segundo e tudo se suspende em redor; claro que sabemos muito bem
que o mundo, na verdade, não parou, pois o mundo não é nada de paragens, mas de
certa forma deixou de nos importar que ande ou não ande; portanto, é como se
tivesse mesmo parado. Parvo, não achas? A verdade é que esta fantasia acaba por
ser uma forma de libertação ingénua mas eficaz, porque é em instantes assim que
nos desembaraçamos momentaneamente do mundo e dos seus constrangimentos. Talvez
por isso goste de filmes palermas: lembram-nos coisinhas elementares e
essenciais, há muito esquecidas porque sempre as escondemos sob camadas de
racionalização e filosofia e presunção e complexidade; coisinhas mesmo, mesmo simples
que deveriam ser evidentes e inquestionáveis mas que ocultámos de tal forma, com
tanta dedicação e empenho, com tanta eficiência,
que esquecemos as coisinhas em si e apenas nos lembramos das camadas que fomos
amontoando; porque, na verdade, somos pessoas que precisam de camadas, muitas
camadas, pois acreditamos que elas podem disfarçar – ou mesmo preencher, quem
sabe – os nossos vazios existenciais e o facto de, afinal, sermos um pouquinho
ocos.
Portanto:
o mundo pára quando sinto todo o teu corpo envolver o meu, complementando-o e
prolongando-o, dando-lhe uma nova dimensão e realidade, uma nova espessura; um
propósito. Sim, sei que isto já nem é conversa de filme palerma mas, bem pior,
discurso de telenovela; mas que queres? É o que sinto. Que estou a ser tocada
não pelos teus dedos ou pelos teus lábios mas pela totalidade do teu corpo. E penso:
ah, então é para isto que o meu corpo
serve, era disto que estava à espera. Porque há qualquer coisa de
desestruturante e arrebatador, de desconcertante, numa primeira vez; é o
primeiro abraço que me dás e por mais vezes que se repita, sei que nenhuma
dessas réplicas se aproximará da intensidade inicial; portanto, de certa forma
também é o último abraço, porque os que vierem posteriormente serão outra coisa
qualquer, serão algo diferente, serão imitações e tentativas.
O
abraço dura uns segundos; mas tentar medir ou quantificar a felicidade é um
disparate, é um vício dos infelizes; claro que não interessa quanto tempo tenha
durado um momento de felicidade, na verdade tudo interessa excepto isso. Mas
confesso que, por vezes, tenho pensamentos tolos. Por exemplo: que giro seria
se houvesse uma medida para a felicidade – o teu beijo proporcionou-me três
quilos ou setecentos bytes ou meio mililitro ou vinte watts de felicidade. Se
assim fosse, até se poderia estabelecer um qualquer mercado de trocas, sistemas
de crédito, um índice na bolsa, empréstimos bancários específicos, avaliações
das agências de rating; enfim, poder-se-ia matematizar a felicidade e
comercializá-la. (Poderias até perguntar, se fosses tão tolo como eu: sabes
quanto me deves, por estes segundos de felicidade que te dei?) Tolices, enfim. Não
ligues.
Portanto,
não importa que o abraço tenha durado apenas uns segundos: o mundo pára e isso
é que conta. Depois, passados os tais segundos que não interessam, termina o
abraço ao mesmo tempo em que os relógios retomam o seu monótono tiquetaquear
(eu sei: estou a dizer que o tempo parou mas, simultaneamente, os segundos continuaram
a passar; pois, uma parvinha). Claro que o parque, onde tudo isto ocorre, está
cheio de vida; há, por exemplo, outros casais de namorados (para mim, é o
abraço que oficializa o início do nosso namoro; é neste pedacinho de parque verde
e solarengo, aqui mesmo ao lado de um repuxo que inesperadamente entra em
funcionamento, que nos transformámos em namorados, e não me chateia que toda a
gente considere esta palavra, este conceito – namorados – um arcaísmo, uma ingenuidade, um romantismo de poeta,
uma irrelevância; sei que agora vivemos no mundo facebookiano das relações, no
mundo concreto do sexo; mas eu quero ser namorada e ter um namorado). Mas não
só, há também uma miríade de velhinhos solitários, de crianças barulhentas, de
cães e pássaros, de bichinhos invisíveis, de pessoas desinteressadas, de
borboletas. E o azul do céu e o verde das árvores, o cheiro da relva e das
plantas e do algodão doce da barraquinha lá do fundo, o zumbido do calor (é a
primeira vez que percebo que o calor zumbe): tudo a envolver-nos, a compor o nosso
cenário, a emoldurar o nosso abraço; tudo infinitamente distante mas,
simultaneamente, parte da nossa realidade, de nós. Como se o nosso abraço
abrangesse, também, o mundo.
Se
falasses neste momento, talvez dissesses: “Olha que é só um abraço, nada mais.”
Talvez não o digas mas pensarás que tudo isto não tem assim tanta importância;
afinal, quantas pessoas abraçaste, antes de mim? Talvez este momento signifique
pouco para ti, talvez nada saibas de filmes palermas. Poderia perguntar-te o
que sentes mas receio uma decepção, e afinal ainda é demasiado cedo para
decepções; e se respondesses, por exemplo, “Estou com fome” ou “Dói-me um
joelho”? Se dissesses algo que denunciasse que nem reparas na minha presença,
quanto mais no meu abraço? Não, prefiro não arriscar. Claro que este momento é
nosso e não apenas meu, que de certa forma me estou a apropriar dele e a transformá-lo
naquilo que mais me convém. Mas não é isso a paixão? A ilusão de que o outro possa
sentir precisamente o mesmo que sentimos? A projecção daquilo que sentimos no
outro, como se ele fosse um mero espelho? Ah, mas desculpa, que me estou a
afastar do mundo dos filmes palermas e a ceder a uma espécie de cinismo
elementar e inconsequente. Sorry. Se não te vou dizer nada disto, porque estou
a pensá-lo?
O
que gostaria mesmo era de me abstrair deste momento e observá-lo (sim, como se
visse um filme), para conseguir analisá-lo detalhadamente; ser espectadora de
mim própria, deste fragmento da minha vida – desculpa: da nossa vida. E
perceber tudo, não apenas a tua reacção (o grande problema dos abraços é que
nunca conseguimos perscrutar o olhar de quem nos abraça, perceber exactamente o
que o outro sente enquanto nos aperta contra o seu corpo). Perceber mesmo tudo;
por exemplo: que pensarão as pessoas que nos rodeiam, se por acaso nos olharem?
E porque não olham, porque não param para ver? Porque são tão indiferentes a um
abraço que, afinal, é capaz de imobilizar o mundo? Porque serão as pessoas indiferentes
à felicidade alheia?
Gostava,
então, que este pedaço da minha vida fosse um filme; uma cena num filme
palerma. Ou um quadro do Monet ou do Macke, que andavam sempre a pintar gente
em parques: a minha felicidade em forma de cor, exposta (pendurada) na parede de um museu para toda a gente apreciar. Gostava
que houvesse uma forma de fixar este momento, de fixar este abraço, de fixar esta
memória, de fixar esta sensação de mundo parado, de fixar esta felicidade, de
fixar este princípio de amor, de fixar o prazer que sinto quando estas gotas de
água fresca vindas do repuxo tocam as minhas pernas nuas, de fixar este desejo
absurdo de permanecer fixa. Gostava, sim.
E
lamento que entre toda esta multidão que saltita preguiçosamente pelo parque,
daqui para ali e dali para acolá, sem objectivo nem pressa, não exista nenhum
daqueles fotógrafos que sempre andam pelos parques a apontar as suas máquinas à
banalidade da vida com o secreto, ambicioso e generoso desejo de transformar os
monótonos detalhes do quotidiano em beleza pura (como se as máquinas
fotográficas fossem uma espécie de varinha mágica). Porque se estivesse um qualquer
fotógrafo a vaguear aqui pelo parque, certamente não resistiria (nunca
resistem) a fotografar o nosso abraço; e teríamos, então, uma prova deste
momento especial em que fizemos o mundo parar; uma prova a que poderíamos
regressar mais tarde, as vezes que desejássemos, quando não conseguíssemos
acreditar que fora possível sermos tão felizes; e diríamos: foi mesmo verdade,
aconteceu. O nosso abraço não seria uma cena de filme nem seria uma pintura; seria
melhor: uma fotografia. Sabes porquê? Porque efectivamente a máquina pode ser
uma varinha mágica pois existe magia na forma como alguns fotógrafos conseguem
captar e fixar sentimentos; afinal não seria por acaso que há muitos, muitos
anos uma ou outra pessoa receava ser fotografada porque temia que a fotografia
lhe roubasse um pedaço da alma. E será que não rouba mesmo? Irias certamente
rir se te dissesse como até desconfio que se calhar rouba, e que se roubar não
faz muito mal porque assim poderemos guardar esse pedacinho de vida cuidadosamente;
ficaríamos a conhecer o seu aspecto e forma, a sua localização. E não seria
isso tranquilizador? Afinal, a fotografia dá substância ao sentimento, de
alguma forma materializa-o; e é essa a sua magia.
Vou
pensando tudo isto, que são divagações que me bailam pela cabeça e que gostaria
de partilhar contigo; mas receio fazê-lo, ainda receio fazê-lo. E se
respondesses com desplante e indiferença, com uma qualquer inconveniência? Por
exemplo: “Chiça, parece que tens doze anos ou assim.” Ou: “Olha, o que eu
queria mesmo era ir foder um bocado.” Poderias dizer algo do género, não
poderias?
Por
isso, vou permanecendo calada, sentindo o momento, apropriando-me dele e
fazendo-o apenas meu, transformando-o em memória; saboreando o abraço, a
paragem do mundo, o cheiro a algodão doce. E és tu quem finalmente quebra o
silêncio, depois de o abraço se dissipar. Dizes: “Porque não vamos ver um
filme? Um daqueles muito palermas em se chora um bocadinho e se sorri muito.
Apetece-te?”
Legendas anteriores:
#05: A partir de um desenho de João Concha
#04: A partir de uma fotografia de Julieta Domingos
#03: A partir de uma fotografia de Cátia Biscaia
#02: A partir de uma fotografia de Francisca Moreira
#01: A partir de uma fotografia de Lara Jacinto