Quando danço

A partir de uma foto de Carla de Sousa




- Sabes o que me apaixona mesmo? O movimento do corpo. Podes mostrar-me o mundo inteiro e todos os fenómenos da natureza mas acredito que não existirá nada tão belo e inebriante como o movimento harmonioso de um corpo. Pois, já sei; vais dizer-me que, para ti, a beleza está na ordem e no rigor, na absoluta previsibilidade dos números; vais explicar-me que a beleza se encontra na certeza de que após o quatro virá o cinco. Mas não concordo contigo. Para mim, a verdadeira beleza esconde-se, por exemplo, na forma como se acaricia o cabelo de alguém que se ama: os dedos entrelaçam-se suavemente e o cabelo afasta-se, com languidez; e esse ligeiro movimento do cabelo representa, afinal, ternura pura; materializa ternura. Ou então um sorriso; já reparaste quanta beleza existe num simples sorriso? Já estudaste a delicadeza com que os músculos do rosto se contraem e os lábios movem, ganhando vida? Haverá algo mais belo? O sorriso é apenas um pequeno movimento, contracções e distensões de músculos, mas transmite muito mais emoção do que livros repletos de poesia, do que discursos infindáveis. Sabes, acredito que um sorriso contém em si mais beleza do que toda a filosofia do mundo. E é apenas um sorriso, imagina se sorrires com o corpo inteiro. Sim, já sei que não estás de acordo. Precisas de exactidão, anseias pelo rigor do número e da palavra para não te sentires perdido e vulnerável; e, por isso, encontrarás beleza na tabuada ou no dicionário, encontrarás beleza na ordenação. Mas, para mim, o número e a palavra são apenas convenções, são símbolos a que se confere determinado valor que depois se torna inquestionável; são criações da mente, projecções do espírito, nada mais do que instrumentos, a que atribuímos significados concretos e exactos que acabamos por aceitar como certezas absolutas. Mas no fundo, são apenas ideias e conceitos. Como podes estar absolutamente certo de que após o sete virá o oito? Na verdade, é apenas uma questão de fé, já reparaste? Digam o que disserem, comprovem o que puderem, encham quilómetros de papel com equações, mas no fundo a matemática é uma religião como outra qualquer; na essência, onde está a diferença entre o teorema de Pitágoras e a crença na vida após a morte apregoada por místicos e salvadores? Mas tudo bem, cada um entrincheira-se nas convicções que lhe convêm mais. E desculpa, afinal estou para aqui a divagar. Não ligues. Queria apenas falar de movimento, da beleza que encontro no movimento corporal. Estava a tentar explicar-te que o movimento do corpo me parece uma forma superior de comunicação pois abdica de signos e convenções, abdica da palavra, reduzindo, por isso, a possibilidade de ilusão e equívoco; porque a palavra é sempre subjectiva e dúplice, é condicionadora; não achas? Claro que não achas. Mas acredito que uma comunicação baseada no movimento do corpo é mais genuína, mais directa. Mais animal, se quiseres. Cada gesto representa e transmite acção e vontade, inconformidade, busca, interrogação. Já reparaste como tudo isso está presente num gesto tão banal como o estender da mão a alguém? No fundo, o corpo é a ferramenta mais adequada que possuímos para interagir genuinamente com o mundo e com o outro; e é por isso mesmo que não podemos satisfazer-nos em ser corpo e desfilar pelo mundo, não podemos satisfazer-nos em simplesmente ocupar espaço; é importante que nos preocupemos com o modo como ocupamos o espaço, pois já que o ocupamos deveríamos fazê-lo de forma bela. De forma útil e bela, o que vai dar ao mesmo porque a utilidade encerra beleza e não há beleza que não seja útil. E já sabes que entretanto vou começar a falar de dança. Sabes que te vou dizer, uma vez mais, como acredito que a dança pode ser a forma mais inebriante e arrebatadora de movimento; e, portanto, de beleza. A dança é um desafio à imobilidade, um desafio à natural apatia do corpo; é uma forma de dar vida ao corpo, de ser vida. É uma busca permanente de graciosidade e elegância, de leveza, de coordenação, de simplicidade. Mas estou a entusiasmar-me, como sempre.
- Como sempre.
- Porque é nisto que penso tantas vezes, em dançar e oferecer beleza com o corpo. Quando danço, busco harmonia, busco a perfeição do movimento; ou a perfeição através do movimento. Todo o corpo trabalha para um objectivo comum e único, todos os sentidos se transformam em acção pura. De certa forma, é uma busca de luz. Nunca tinha pensado nisso mas parece-me que faz algum sentido. Que achas? Afinal, dançar representa uma tentativa de fugir à escuridão porque, apesar da escuridão ser uma inevitabilidade, é através do movimento que impedimos o seu domínio sobre nós; enquanto dançamos, as sombras não nos alcançam, não nos soçobram. A escuridão é, no fundo, imobilidade; e o movimento, o movimento harmonioso e intencional, belo, é o seu antídoto. É claridade. Claro que sei que consideras tudo isto um devaneio de rapariga idealista, sei que me escutas com impaciência, sei que os movimentos musculares que conseguiste transformar nesse sorriso esforçado disfarçam, afinal, a tua impaciência e contrariedade; mas é nisto que acredito: através da dança, através do gesto e do movimento harmonioso, posso transformar pensamento e desejo, medo e esperança, alegria, em matéria física concreta; transformo sensação em acção. E, desse modo, fujo à escuridão que me rodeia e, por momentos, iludo as sombras que me perseguem; ofereço um pouco de luz ao mundo, porque beleza é luz e quando danço sinto-me bela. Tão simples quanto isto. Quando danço sinto-me bela. E é por isso, pai, que serei bailarina. É o que desejo, é o que farei. Desculpa-me mas não serei economista como tu; esse é o teu sonho, não o meu. Os números aborrecem-me, limitam-me, aprisionam-me; os números entediam-me. Todos tentamos fugir à escuridão, claro; apenas o sentido do que é escuridão diverge de pessoa para pessoa; para mim, a escuridão está na imobilidade, para ti deve estar num crash da bolsa ou assim. Tudo bem, somos diferentes. E se há algo que nunca serei é uma cópia de ti, nunca desejarei dissolver a minha diferença. Por isso, serei bailarina e a minha vida será repleta de movimento e graciosidade, de busca da beleza, de dádiva ao outro. Será assim porque só assim pode ser, não há alternativa. Quero dançar. Por mim e para mim. Mas também para ti; quero tanto que me vejas dançar e te sintas feliz. Quero ver-te sorrir, pai. Fazes isso por mim? Olhas-me e sorris de verdade? Porque nunca quiseste ver-me dançar, pai? Se o fizesses talvez percebesses tudo isto que estou a dizer-te, todos estes sentimentos que estou a tentar converter em palavras. Bastaria olhares mesmo e perceberias. E não seriam necessárias mais palavras. Vê-me dançar e não me faças falar mais, pai. É tudo o que te peço.

- Deixa-me ver a minha agenda. Afinal, a que horas é esse espectáculo? 

Uma surpresa, dizes tu

A partir de uma fotografia de Andreia Monteiro.





Uma surpresa, dizes tu. Apareces no meu trabalho e anuncias, com um sorriso, que tens uma surpresa. Lá seguimos de carro, como se nada de especial estivesse para acontecer (e talvez nada de especial venha a acontecer); ouvimos as mesmas músicas de sempre e vamos conversando, felizes por podermos escutar a voz do outro; rimos bastante; tocas-me muitas vezes, há momentos em que desvias o olhar da estrada e olhas-me durante um instante, como se me visses pela primeira vez. Tudo normal, portanto: estamos apaixonados e o mundo não nos interessa absolutamente nada quando nos encontramos junto do outro.

Mas quando, por distracção, reparo no mundo que passa por nós, lá do lado de fora do carro, percebo que abandonámos a cidade, o que me surpreende um pouco; estamos no campo, numa estrada secundária e deserta, sem grandes vestígios de presença humana. O céu está resplandecente, como se estivesse a estrear um novo tom de azul; abro um pouco a janela e uma brisa suave invade o carro, acariciando-me o cabelo, trazendo consigo o inebriante cheiro da natureza, um cheiro ancestral e tranquilizador. Por vezes, lembro-me que é profundamente estúpido que nos isolemos do mundo, como se apenas as nossas vidinhas tivessem valor e tudo o resto fosse apenas cenário; mas depois passa. Estamos calados e sorridentes, confortáveis. Começo a interrogar-me sobre qual será a surpresa. Talvez tenhas descoberto um pequeno lago, quase secreto, encantador, e o queiras partilhar comigo; e poderemos nadar juntos, quase nus, esquecidos de tudo. Ou um santuário de borboletas; falámos disso no outro dia, confessei como gostaria de visitar um daqueles lugares mágicos onde centenas de borboletas esvoaçam ao acaso, compondo uma sinfonia de cor e movimento. Fico a pensar em borboletas e depois, de repente, lembro-me que pode ser uma coisa completamente diferente: sexo. Sexo entre as árvores, sob o céu azul, com o sol quente a aquecer a pele e a mata a ecoar os nossos gemidos. Por um momento, parece-me óbvio que será mesmo essa a surpresa e arrependo-me por não estar com vestido. Fico excitada, apetece-me. Mas o carro continua a avançar aos solavancos enquanto falas do nosso futuro – um futuro indefinido e incerto, do qual apenas sabemos que será muito feliz; e o desejo acaba por se dissipar.

A floresta termina um pouco abruptamente e a pequena estrada percorre um enorme descampado, onde vemos as ruínas de um armazém há muito abandonado. Aproximamo-nos das ruínas e saímos do carro, caminhamos no chão fofo, pisando pequenas flores não muito bonitas (é estranho que possam existir flores feias); caminhamos de mãos dadas, sentindo os dedos do outro e escutando as melodias algo irritantes de pássaros ocultos (é estranho que os cânticos dos pássaros possam ser feios); não vejo uma única borboleta. Caminhamos, sem pressa. Não explicas em que armazém estamos, porque foi abandonado, como o encontraste; e isso comove-me um pouco; porque me sinto agradecida, porque me sinto feliz por reconheceres o valor do silêncio e não o temeres; feliz por saberes que o excesso de palavras é tão irritante como o excesso de cantorias dos pássaros. Não irás falar, irás simplesmente agir; e isso comove-me.

Então, quando estamos rodeados de destroço e decadência, numa ilha de ruína que nem o esplendor do sol consegue iluminar e embelezar, pegas na minha mão e nela depositas uma pequena caixinha que retiraste do bolso; abro e olho: um anel, claro. Tão lindo que, por um momento, falta-me a respiração. Perguntas: casas comigo? E sorris. E olhas-me. E esperas.

Apenas muito mais tarde, quando já estamos na cidade, explicas (e apenas porque eu insisti): queria pedir-te em casamento num local em ruínas e não num daqueles sítios lindíssimos e mágicos mas, no fundo, profundamente ocos e vazios; e queria fazê-lo num local em ruínas porque acredito que a felicidade não é uma dádiva mas algo que temos que conquistar, algo que implica esforço e empenho. Mas também algo que terá, inevitavelmente um fim, que se transformará num destroço. Queria que o primeiro momento do nosso casamento ocorresse num local em ruínas para que nunca esquecêssemos que apenas com o nosso esforço permanente a felicidade será possível, que apenas com o nosso esforço permanente a nossa relação jamais definhará, sucumbindo à ruína. Foi por isso que escolhi aquele sítio, percebes?

Tenho o anel no dedo e sorrio. Talvez continue a sorrir para sempre.



Durou quase dois anos, o casamento. E agora que recordo tudo isto, não consigo deixar de notar o quanto eras ridículo. Enfim.

Xeque-mate

A partir duma foto de Maria João Dias.




Quando chego a casa, encontro-a dentro da banheira; mas a banheira está vazia e ela completamente vestida. Esta visão é surpreendente e perturba-me um pouco, assusta-me; contudo, a expressão do seu rosto é serena e tranquila, apaziguada. Olho-a e sorrio, tento não me alarmar nem reagir precipitadamente; mas sou incapaz de me aproximar dela e acariciar-lhe o cabelo (o que teria feito, em circunstâncias normais); respiro fundo e, esquecendo-me de continuar a sorrir, pergunto o que se passa. Ela sorri (por ela e por mim) e, calmamente, explica.
- Nem sei. Nada de especial, acho eu. Estava apenas a pensar como a vida avança em ciclos; não é? Os dias que se sucedem, e depois as semanas, os meses, os anos; tudo ordenado e previsível. Como se vivêssemos permanentemente no interior de uma rotunda, em rotundas dentro de rotundas, sempre às voltas; porque tudo é circular, tudo se repete. E como podemos inverter isto? Como quebrar a linearidade do tempo, como desafiar o destino, como enganar o futuro e torná-lo mesmo inesperado? Já alguma vez pensaste nisso? Eu penso, por vezes. Porque, afinal, que tem o futuro de verdadeiramente imprevisível? Que efectivo grau de surpresa nos reserva o futuro? Mesmo que os eventos nos surpreendam, nós somos sempre nós, somos uma espécie de constante que vai evoluindo mas sem efectivamente mudar na essência; seremos sempre incapazes de nos surpreender a nós próprios, é esse o problema, é isso que nos perturba e irrita, que nos deprime: nunca haverá genuína surpresa porque o futuro é uma mera repetição do passado. Portanto, apenas no resta tentar desafiar o futuro a surpreender-nos. E é nisto que tenho pensando, em formas de contornar a previsibilidade do que ainda há-de vir.
Sorri. Como se tudo estivesse normal. Como se fosse uma manhã de sábado cheia de sol e a banheira estivesse cheia de água, a casa de banho cheia de vapor, e estivéssemos a falar daquele programa de culinária que tínhamos visto no outro dia; tudo normal.
- Sabes de que me lembrei? Pensei que poderia tentar inverter as coisas: recusar-me a ficar à espera que o futuro me surpreenda mas surpreender, eu própria, o futuro. Fazer algo improvável e inesperado, inexplicável (talvez aquilo que muitos chamam loucuras, percebes?), algo que distraia o natural fluir dos acontecimentos, enganando e baralhando o futuro. Tentar inverter a normalidade, tentar suspender a metódica marcha do tempo; ou, pelo menos, brincar com o tempo, provocando-o um pouco, desorientá-lo de tal forma que possa surpreendê-lo por um momento e, apanhando-o distraído, tomar posse do meu próprio destino, fazendo dele o que desejar. Porque bastaria um pequeno momento, penso eu. E tudo poderia ser diferente. Não achas?
Não sei o que achar. Poderia dizer-lhe que se estava a contradizer, ao desejar que tudo fosse diferente quando acabara de afirmar que nunca existirá genuína surpresa na vida de alguém; mas talvez seja a contradição que nos desafie e faça avançar, talvez a harmonia apenas conduza ao conformismo e à letargia, à resignação.
- Há pessoas que pensam que a vida é como um jogo de xadrez; e depois decoram jogadas inteiras, planeiam tudo, antecipam tudo, imaginam que controlam tudo; esquecendo que quem joga com elas também tem as suas próprias estratégias, esquecendo que o destino tem as suas próprias estratégias. Diz-me, o que será melhor: jogar por instinto ou jogar planeado? Quanto a ti, não sei. Mas eu estou um bocadito cansada de jogar planeado. Estou mesmo. E estava aqui a imaginar o que pensará o destino quando me vir assim, vestida e sorridente numa banheira vazia. Não sei o que pensará mas, sabes, apetece-me mesmo fazer um xeque-mate ao destino. Sim, acho que é isso que queria: fazer xeque-mate ao destino.
Escuto-a mas não sei o que pensar, o que sentir; não sei se ela terá ficado momentaneamente louca ou se está simplesmente certa, tão certa que não existe razão para que eu tenha dúvidas ou hesitações. Permanecemos em silêncio, escutando apenas o distante rumor do universo (aquele rumor que, no fundo, mais não é do que um indisfarçável bocejo), infinitamente distantes um do outro. Mas, então, reparo que estou a sorrir, que por algum motivo desconhecido começara a sorrir; e é a sorrir que pergunto: deixas-me entrar, posso juntar-me a ti?

Gastar palavras

A velhinha estória Gastar Palavras fotografada por sonja valentina.



07h45

Custa-me tanto acordar.
Antes, era um momento mágico: um mundo de possibilidades pela frente, caminhos a percorrer, aprendizagens, dores e obstáculos e incompreensões a superar, partilhas; cada acordar era um nascimento, a descoberta deslumbrada da imensidão da vida. Como olhar um mapa que incluísse todos, mas mesmo todos, os caminhos existentes no mundo, todas as pequenas estradas e atalhos e ruelas e avenidas e becos sem saída; olhá-los, sem pressa, saboreando a indecisão, e escolher: hoje, vou por aqui. E ir.
Agora, adormecer é que é o momento mágico. Adormecer significa adiar e esquecer. Durmo muito, preciso de dormir muito: são esses os únicos instantes em que não sofro. Tudo se mantém, nada muda enquanto durmo; mas dormindo, consigo não pensar nisso, consigo ignorar. É a única fuga que me resta e estou, em cada dia que passa, mais dependente dela. Durmo, vou fugindo. Fujo da dor de pensar. Então, acordo: e eis a minha vida, à espera. É (também) como nascer: e descobrir uma cortina intransponível (nem importa se transparente ou não; é indiferente se há algo para além da cortina porque a impossibilidade de a ultrapassar é uma certeza absoluta); nasce-se e não se está perante um princípio, nem sequer perante um fim; abro os olhos e tudo o que vislumbro é um impasse, uma impossibilidade, uma incongruência. Abro-os; e de imediato, volto a fechá-los. E a incapacidade de os manter assim, cerrados, causa uma dor nova, acrescenta o sofrimento.
Acordo, agora. E o meu primeiro pensamento é: quando poderei voltar a dormir?


08h13

Caminho pelo apartamento. O branco das paredes agride-me, fura-me os olhos. Apetecem-me quadros, cores, janelas para a salvação; distracções. Este assobio constante que é o ruído do silêncio causa-me dores de cabeça; e desejo barulho, agitação. Há momentos em que penso: um grito de alguém seria o suficiente para me salvar. E olho em redor, em busca de quem possa gritar. Procuro, sabendo o que encontrarei. Penso: sabemos sempre o que vamos encontrar e mesmo assim procuramos; porquê? Vou à casa de banho, porque aí as paredes são beges; sempre é um branco diferente. Depois, olho-me ao espelho. Frente a frente com alguém, que até poderei nem ser eu. E canso-me. O silêncio perseguiu-me, aí está: ruidoso. Desejo barulho; e ligo a televisão, automaticamente começo a trautear as músicas publicitárias que vou ouvindo. Sento-me a comer o pequeno-almoço, feito de cereais. Engulo com indiferença. Trauteio. Vejo como o sol vai avançando pela janela, agredindo-me com a luminosidade da sua existência. Agora, resta vestir-me e sair pelo mundo, por aí fora. Penso: tenho quase meia hora para escolher a gravata.


08h53

Por vezes, julgo-me especial. Penso: sou especial. E acredito.
Nada de extraordinário, essa especialidade. É apenas uma consciência não muito racional que por vezes vem e se insinua, murmura junto ao ouvido: tens, em ti, lá dentro, lá fundo, algo para dar. Algo que até pode ser muito. Mas algo, para oferecer. Quero dar, sinto que posso dar. Nem sei o quê, na verdade não importa muito. Poderá ser apenas companhia ou compreensão ou carinho ou amor. Mas quero tanto dar. Provocar sorrisos. Ou até recolher lágrimas (as lágrimas são sempre pedaços de alma, provas de libertação, de entrega, de confiança; rastos de amor. Gostaria de andar pelo mundo e provocar choro; então, recolheria as lágrimas, e com elas formaria um oceano, um novo oceano. E esse oceano, constituído por pedacitos das almas de todos os homens, formaria uma alma gigantesca, que seria a alma do mundo; que seria, em simultâneo, de todos e todos.)
É isso que penso, que desejo: apetece-me dar; e sinto que posso. Depois, olho em redor, pergunto: mas quem receberá? (Novamente: uma cortina.) Muitas vezes, sinto-me pateta: como se fosse um daqueles loucos que percorrem as ruas das cidades com tabuletas penduradas ao peito, anunciando o fim do mundo; a minha tabuleta diria: dá-se amor. E andaria pelas cidades, exibindo-a, esfregando-a nos olhos de quem passasse. Para nada; porque ninguém diria: dá-me amor, que eu preciso.
E então, penso: não, não sou especial. E acredito.


10h37

O que mais me custa neste emprego de vendedor de automóveis é ter de sorrir tanto. Aquela velha conversa pateta do palhaço que tem de mostrar alegria estridente quando sente dor lancinante. Sorrio, muito sorrio eu. E esta gente cega deverá pensar: que alegre e feliz é este homem. Ouço os lamentos, detecto os sonhos. Tagarelices inconsequentes. E falo das cilindradas e das cores metalizadas e das jantes em liga leve. Digo: hoje em dia, os carros são feitos para durarem uma vida. E recebo a resposta em forma de acenos de cabeça. Passo horas a repetir cassetes, com indiferença, disfarçando o ódio com sorrisos. Por vezes, dizem-me: que gravata tão bonita. Sorrio e falo da minha colecção de gravatas. Faço-o com entusiasmo, invento entusiasmo. E tenho a certeza que toda esta gente pensa: que rapaz tão feliz. E eu grito-lhes, em silêncio: cegos dum caralho.


13h01

Almoço todos os dias no mesmo restaurante. Já me conhecem, aqui. Sorriem-me muito. E eu sei: para eles, é só trabalho, é um sorriso profissional; o sorriso que exibem quando me dão o prato com as batatas e a carne e o ovo e a alface é o mesmo, exactamente o mesmo, que eu exibo, quando falo de suspensões e consumos e alarmes. Penso: agora, sou eu o cego. Finjo não perceber. Todos aceitámos esta regra primária da civilização: fingir não perceber o sofrimento dos outros. Ignorar. E então, rio alto. Eles sorriem e eu rio. Falamos, somos joviais. Espirituosos. Eles dizem: és um tipo mesmo porreiro. E eu concordo. Mas sei o que eles pensam, na verdade: cego dum caralho. É o que eu também penso, deles, de mim. Somos sempre os mesmos, o mesmo, dia após dia. Sorrimo-nos tanto; e nada sabemos uns dos outros. Não sei porquê mas nem curiosidade sentimos. Representamos as nossas comédias, falamos de banalidades, sorrimos tanto. Mas não conhecemos nada, não partilhamos nada. Podemos estar a morrer de dor, de solidão, de desespero; mas enrolamos sempre as batatas fritas em sorrisos e engolimo-las com a nossa dor. Dor que amarga, sempre; mas que disfarçamos: com mais sorrisos. Tão estranho, isto. O que precisamos, todos nós, é de um simples abraço. Mas recusamos pedi-lo, dá-lo. Sentimos vergonha, embaraço. Não encontramos conforto no facto de partilharmos as mesmas dúvidas, as mesmas angústias. Somos incapazes de estender a mão, abrir a mão. Todos sentimos que temos algo para dar, queremos dar, queremos desesperadamente dar, qualquer coisa, a alguém. Mas temos medo, somos tolhidos por um estranho e dilacerante medo, que nos inibe, que nos controla. E então, tudo o que fazemos é sorrir. Sorrimos. Disfarçamos o medo. E aprendemos a odiar, odiar com todas as nossas forças, as pessoas que nos sorriem. É também uma maneira de nos odiarmos.


16h42

Isto é o que sinto, ultimamente: que a minha alma diminui. Que vai encolhendo e encolhendo e encolhendo. Tenho medo que, assim, desapareça. E pergunto-me o que será de mim, sem alma. Depois, há alturas em que me revolto. E penso: mas se eu já sou um simples pedaço de carne... e sou incapaz de completar o pensamento. Sim, admito: a minha vida é pouco diferente da existência de um poste de electricidade. Ergo os meus braços, segurando os fios que conduzem a electricidade que alimenta o mundo; momentos de arrogância, em que me julgo útil. Mas, na verdade, sei, admito: que a electricidade existe sem mim, para além de mim; que sou apenas um instrumento, facilmente substituível. Há acontecimentos que passam através de mim, pequenas banalidades angustiosamente irrelevantes (acuso-me: sou um instrumento da banalidade; ou nem isso, menos que instrumento, menos que veículo.); mas, se eu não estivesse lá, estaria outro poste, o que mais existe são postes.
Mas preocupa-me, isto. Ainda me preocupa. Há camadas de alma que vou perdendo, isso sinto. Devagarinho, suavemente. Sem dor (e isto, espanta-me um pouco). Como se a alma fosse feita de translúcidas camadas de água; e por vezes, uma camada desaparecesse, assim, simplesmente. Evaporou. Transformou-se noutra coisa. Era substância, agora é... não sei: vapor. Ou fantasma. Sim, talvez isso: aos poucos, a minha alma morre, transforma-se em espírito de alma, fantasma de alma. Sinto isso: e perturbo-me. Custa-me, ser assim habitado por fantasmas. Custa-me, estar assim a evaporar, aos poucos.
E se alguém perguntasse: quem és? Responderia: um poste de electricidade com um fantasma de alma dentro?


21h17

O pior é não apetecer.
Não ter vontade nem desejo, não querer nada. Acontece-me muito, agora. Não apetece. Nada apetece. Não sinto vontade de nada. Espero, apenas. Ou nem isso: por vezes, não espero nada. Basta a passagem do tempo. No máximo, espero nada; e esperar nada é estar morto, vegetando. Como morto: é assim que me sinto, tanta vez. Prisioneiro da indiferença; pior: apreciando a indiferença. Sinto-me doente, sei que é uma doença; mas sou incapaz de me contrariar. Pergunto-me, sempre, tanta e tanta vez: para quê?
Forço-me. Tento pensar em coisas boas. Pedaços de felicidade. Nada de especial, porque a felicidade não é nada de especial; a felicidade é, muitas vezes, simplesmente conseguir sentir, derrotar por momentos a indiferença, a anestesia, o torpor. A felicidade pode ser, tantas vezes, apenas conseguir sentir. E então, evoco recordações. Momentos em que consegui sentir qualquer coisa. Banalidades: o sabor de um gelado, o brilho do sol num fim de tarde de Verão, uma carícia na perna, o som de um riso, um passeio na beira de um rio, o ladrar de um cão, a sensualidade de uma palavra escrita à mão numa folha de papel, o toque ansiado de um telemóvel, um passeio de carro sem destino nem objectivo nem fim, um olhar que não se desvia, crianças a brincar, ter um jornal na mão. Coisitas que me encheram, preencheram o vazio. Penso nelas, tento recuperar a sua consistência. Faço força. Mas não resulta, já não resulta. Apenas memórias indefinidas, voláteis. Perdidas. Tento tocar-lhes, mas elas passam-me através dos dedos; fantasmas.
E volta a não apetecer. Nada, nem sequer tentar.


23h37

Acabei de fazer amor. Comecei por despir-lhe a lingerie, aquela azul e semi-transparente, depois fui percorrendo-lhe o corpo com a língua, acariciando, molhando, provando. Movimentos frenéticos, gestos desastrados. Passou muito tempo; e agora há cheiros insinuados e nuances de escuridão, movimentos tímidos, simulacros de partilha. Dantes, dava importância a isto: a minha vida dependia disto. Agora, há apenas cansaço. Ou nem isso: resignação. Ela adormeceu, enroscada em mim. De repente, ressona. E acho isto bonito. É bom descobrir imperfeições nos outros: lembramo-nos assim que também somos imperfeitos. E partilhar os defeitos é uma forma superior de amor. Imagino-me a dizer, não sei a quem, não importa a quem: amo-te porque ressonas, porque tens manchas na pele, porque és egoísta.
De qualquer modo, penso que ainda a amo. Muito. Ou o suficiente.
Penso nisto, durante muito tempo; depois, adormeço.


01h13

Custa-me falar. Custa-me dizer palavras que não conduzam a lado nenhum, que não originem intimidade, que não toquem; E por vezes, penso: vou gastando as minhas palavras, assim, desapaixonadamente, desinteressadamente; e quando precisar mesmo delas – ainda acredito que esse dia chegará –, descobrirei que se me acabaram; procurarei dentro de mim e não encontrarei; apenas o vazio estará lá: maior que hoje. E preocupo-me: porque não sei onde se podem ir buscar palavras, não sei se é possível obter e usar mais palavras que aquelas que nos dão à nascença (nascemos apenas com dois olhos, e assim temos de sobreviver; nunca ninguém pensou partir pelo mundo, em busca de mais olhos, por achar que dois são insuficientes).
Por vezes, gosto de imaginar que as palavras nascem nos ramos de uma árvore misteriosa, uma árvore milenar que existe desde o início dos tempos, que nunca morre (árvores que são, também colunas: que de algum modo sustentam o mundo); gosto de imaginar que há planícies imensas serpenteadas destas árvores e que, por vezes, algumas pessoas podem passear-se entre elas e colher as palavras que desejam. Como meninos, brincando num laranjal, num fim de tarde de Primavera.
Também já houve alturas em que pensei: as palavras vêm do mar. Existiriam entre as ondas, envolvidas pela água. Como bebés, nas placentas das mães. Nascendo, a todo o momento: formas invisíveis soltando-se com ternura da água, sacudindo a espuma, e flutuando nas costas do vento, por aí. A atmosfera estaria repleta delas, infinidades de palavras virgens, ansiosas por serem ditas, gritadas, segredadas; ou adiando o propósito da sua existência, o momento em que alguém as pega e, envolvendo-as na humidade da garganta (outra placenta), extrai o som que é a sua essência, esvaziando-as.
Penso (pensar não consome as palavras) muitas coisas, assim. E tenho pena de não poder falar disto a ninguém, não ter as palavras necessárias em mim. Sinto-me deficiente: nasci com défice de palavras.
Não percebo para que estou a gastá-las contigo.