Ele
(muito entusiasmado, esbracejando um pouco, feliz; numa voz demasiado alta, que
por vezes provoca olhares desaprovadores porque a felicidade alheia incomoda
sempre um bocado, provoca inveja):
Havia a música,
claro; e a música era feita de emoção pura, uma emoção que me atravessava todo
o corpo e o dominava, o anestesiava, o inebriava; era como se houvesse uma qualquer
força estranha e impalpável percorrendo-me os vasos sanguíneos, junto com os
glóbulos vermelhos e essas coisas todas, uma força vital que provinha directamente
da música e que algum órgão exótico e semidesconhecido, escondido num qualquer canto
recôndito do corpo (tipo o pâncreas, estás a ver? Uma daquelas cenas que ninguém
sabe para que servem), transformava em prazer e bem-estar, em euforia, em
felicidade. Mas não só: havia também o movimento e a agitação, o toque em
corpos desconhecidos, a intensidade de olhares, a partilha de sensações
similares com toda aquela gente, ali ao lado, ali tão perto, gente estranha e,
ainda assim, gente gémea; e os cheiros, os cheiros misturados de tanta gente, e
o próprio cheiro do prazer, da alegria. E depois, por fim: a possibilidade de
cantar; cantar em uníssono com a música, fazendo parte dela, integrando-a e
dominando-a, duplicando a emoção e reproduzindo-a, mas também devolvendo-a ao
mundo e aos outros, já pensaste nisso?, devolver a música depois de ela nos
transformar um pouco, devolvê-la diferente e um pouquinho mais densa, mais rica,
levando consigo algo de nós. É como se durante aqueles momentos fossemos aquilo
que ouvimos, não sei se percebes o que quero dizer, a música somos nós e nós
somos música.
Ela
(concentrada no gelado, num tom cansado e algo distante):
Yah, vejo que
gostaste mesmo do concerto.
Ele
(segurando a colher cheia de gelado mas sem a aproximar da boca, permitindo que
um pedaço caia na mesa):
Pois. Nem imaginas
quanto. É uma coisa inexplicável, não é? Sei lá, como estar a saborear um
gelado maravilhoso, tipo este que estamos a comer agora, e nada mais, mas mesmo
nada mais, importasse no mundo; ou como mergulhar no mar e ser envolvido pela
água, ser engolido e abraçado e protegido, tudo ao mesmo tempo; ou cair pelos
ares e ser puxado por um pára-quedas, aquela sensação de vazio e euforia; ou
olhar para um quadro daqueles mesmo extraordinários e…
Ela
(olhando-o com alguma incredulidade, com um sorriso irónico):
Mas que conversa é
essa? Tu nunca olhaste para nenhum quadro extraordinário, sabes lá o que estás
a dizer… Já para não falar de pára-quedas e mergulhos e isso. Come lá o gelado,
anda.
Ele
(triste, quase irritado):
Não sejas assim, porra.
Faz de conta, tá bem? Olha, até houve um instante em que pensei que aquela cena
toda estava a ser tão magnífica e intensa que certamente iria ser o momento
mais feliz da minha vida, de toda a minha vida; e quase fiquei triste, porque
pode ser desesperador, não é?, perceber,
assim aos quinze anos de idade, que o momento mais feliz da vida já chegou, já
passou, perceber que a felicidade máxima deixara de ser uma possibilidade para
se transformar numa memória. Mas sabes o que aconteceu, mesmo no momento em que
estava a pensar nisso? Ela pegou-me a mão, foi o que aconteceu; sabes, a
rapariga com quem fui, acho que nem a conheces: pegou-me a mão. E cum caraças,
no meio daquela intensidade toda, a música e a gente e isso, vai ela e pega-me
na mão. Agarrou nela, pela primeira desde sempre, e apertou com suavidade,
acomodou-a, como se a estivesse a proteger, como se fosse algo precioso. E
então tive a certeza que aquele fora – estava a ser – mesmo o momento mais
feliz da minha vida e jamais seria superado; mas iria ser repetido, igualado,
duplicado, reproduzido tantas vezes, mas mesmo tantas, que até pensei como era algo
injusto que a minha vida pudesse ser tão magnífica.
Ela
(terminando o gelado, pegando num guardanapo):
Eh pá, fui a muitos
concertos, sei como é. Já percebi, ok? Foste ao teu primeiro concerto e gostaste
da experiência, foi uma coisa do caraças; muito bem, fico feliz. Mas não precisas
de parecer tolinho. Até parece que tens doze anos, ou assim.
Ele
(tom exagerado e efusivo):
Mas é que foi mesmo,
mesmo mágico. Sei lá. Até acho que foi quase tão bom como fazer sexo e assim,
quase tão intenso e…
Ela
(impaciente):
Olha lá, pensas que
eu não sei que ainda és virgem? Chiça. Acaba lá o gelado, para irmos embora.
(Ele
olha-a com uma tristeza indisfarçável no rosto, quase com desolação, sentindo-se
confuso; pousa a colherzinha, parece um pouco perdido entre a confusão de risos
e vozes. Então, ela abana a cabeça e sorri para si própria; depois, levanta-se,
contorna a mesa e abraça-o. Ele deixa-se envolver, em silêncio, sentindo-se de
imediato serenado, tranquilo, talvez feliz; quase fecha os olhos, sentindo o
contacto do corpo dela, sentindo a amizade e o afecto e o amor através do toque,
da proximidade; e nesse instante imagina como teria sido especial se tivesse
sido ela, e não a outra, a pegar-lhe a mão no concerto, a estar lá com ele;
talvez o mundo tivesse parado, pensa ele. E percebe, de repente e com surpresa,
que talvez se possa sempre ser mais feliz, ainda mais, do que já se foi, do que
se está a ser. Fica a pensar nisso, durante um bom bocado. Mas só muito depois
de se terem separado é que repara que tinha passado todo o tempo a falar de si,
que não quisera saber dela, não perguntara, não escutara; repara, demasiado
tarde, como ela parecera um pouco ausente e abstraída, talvez até triste; e não
fizera nada por ela, portara-se como um imbecil ou, pior, como um garoto de
doze anos, egoísta e indiferente, insensível, idiota. Pensa: foda-se, assim
ainda vou morrer virgem. E, contrariado, pega no telemóvel, com esperança que
ela atenda.)