(Um conto antigo, retirado
de um dos livros; baseia-se num quadro de Tamara de Lempicka.)
Chego demasiado cedo. Irei
arrepender-me, claro.
Olho o teu rosto. E tento não pensar,
não sentir, não desejar; apenas saciar-me de ti, amar-te através da
contemplação; partilhar da tua beleza, da tua tranquilidade, da tua paz.
Respiras devagarinho, não te moves; e o tempo passa por ti, esvai-se, indiferente
aos ruídos, aos soluços do mundo. Estamos sós, juntos por um momento que não
vai durar o suficiente. Procuro na tua face os pequenos segredos que descobri,
um dia, noutra vida, que fui aprendendo a amar; e encontro-os, um a um,
intactos: à minha espera. É como se fosse – agora, finalmente – tomando posse
de ti, apropriando-me do teu corpo, devassando-te. Até que deixes de ser quem
és, transformando-te em alguém diferente, alguém que permanecerá comigo, junto
de mim, dentro de mim, parte de mim.
Agora, que estás finalmente aqui, à
distância de um toque, serena e indefesa, não sei que te dizer. Já saboreei
cada molécula do teu rosto (e quase consegui sentir o sabor da tua carne, a
textura da tua pele, o aroma da tua presença). Sinto-me impotente, desajeitado,
incrédulo. Tudo o que posso fazer é aceitar que não voltaremos a estar tão
próximos como neste momento; e suportar a dor de não te poder envolver com os
meus braços e serenar com a minha presença o receio que sentirás dentro de
momentos, quando souberes, quando
perceberes.
Vigio o teu sono. Olho-te. Aguardo.
Fantasio.
Gostava de formar – de ter formado – contigo uma daquelas
duplas de amantes que conseguem extrair da simples presença (ou, mesmo, da
simples existência) do outro a energia e o vigor necessários para enfrentar as
adversidades da sua mortalidade, os limites do seu corpo, os pavores da sua
alma. Por exemplo: gostava de ser o marido que percorre os corredores desertos
do hospital, esperando, receando, imaginando que nada pode correr bem e que
tudo correrá mal, sentando-se e erguendo-se logo depois para caminhar um pouco,
olhando as paredes (talvez brancas, talvez beges), contando as fendas
provocadas pelos anos de uso, lendo letra a letra os cartazes publicitários das
companhias farmacêuticas, sentando-se e erguendo-se para caminhar mais um
pouco, sentindo o coração parar sempre que uma enfermeira se aproxima, fazendo
promessas secretas. Sim, gostava de sofrer por ti: e transformar as tuas dores
nos meus sofrimentos, os meus sofrimentos nos teus risos.
Mas nem sofrer me é permitido, nada me
é permitido além de planar pelos céus desertos, assombrar quartos de hospital,
desejar o corpo de mulheres moribundas: sou um simples anjo. Um anjo doente: um anjo que sente.
E tu estás a morrer: venho receber-te.
O teu marido, o teu verdadeiro marido, está lá fora, para além desta parede
branca (ou será bege?). Percorre os corredores desertos do hospital, esperando,
receando, imaginando que nada pode correr bem e que tudo correrá mal,
sentando-se e erguendo-se logo depois para caminhar um pouco, olhando as
paredes, contando as fendas provocadas pelos anos de uso, lendo letra a letra
os cartazes publicitários das companhias farmacêuticas, sentando-se e
erguendo-se para caminhar mais um pouco, sentindo o coração parar sempre que
uma enfermeira se aproxima, fazendo promessas secretas. Sofrendo. Implorando. Cedendo à tentação de desistir, de
desacreditar. Talvez intuindo a verdade: já não estás no quarto cuja porta ele
espreita sofregamente a cada dez segundos que passam, onde se despediu de ti,
onde te beijou a testa, o ombro, o cabelo, a face; onde repetiu os gestos
rotineiros que sempre me foram, sempre me serão, interditos. Talvez já tenha
adivinhado que estás aqui, comigo: nos meus braços. A caminho da tua eternidade.
Avançamos devagar, sem pressa nem
vontade; empurrados. A noite está
escura, sem estrelas, sem mistério nem esperança, opaca, vazia; não nos acolhe:
suporta-nos, simplesmente. Sinto-me cansado; penso: teria frio, se pudesse senti-lo. Apresso-me: não
quero estar junto de ti, ter-te nos braços, quando acordares e descobrires que morreste.
Sou
o anjo que transporta,
apenas.