Galeria # 04

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Galeria # 03


Alberto Sughi - Caffe' di notte, Notturno


(O bar está quase deserto; apenas alguns pares de namorados tagarelam, com as cabeças muito próximas, sorrindo quase sempre. Três pessoas solitárias estão sentadas em mesas mais resguardadas, olhando e esperando; o barman inventa tarefas, alheado e indiferente aos clientes. Então, um dos homens solitários levanta-se e caminha sem pressa, talvez um pouco tenso, um pouco ansioso, um pouco desesperado; senta-se junto de uma mulher que se encontra ao balcão, sozinha.)
HOMEM (num tom que pretende informal e bem-disposto, assertivo): Esta música faz-me lembrar noites de Verão; calor, festa, risos; coisas assim. (Olha rapidamente pela janela, verificando que recomeçou a chover.) Gosta?
(A Mulher olha-o durante um instante e volta a concentrar-se no copo que tem à sua frente.)
MULHER (tom indiferente): Nem por isso.
(O Homem acena com a cabeça; espreita a mulher, que continua absorta e distante, melancólica; talvez deprimida?)
HOMEM (tom apelativo, tentando parecer despreocupado): Quer sair daqui e ir dar uma volta por aí? (Olha em frente, rígido.) Foder um bocado.
(A Mulher não reage, como se não tivesse ouvido. O Homem espreita-a, um pouco ansioso. A música que lembra Verão termina abruptamente, substituída por outra muito semelhante.)
MULHER (no mesmo tom de indiferença): Talvez, quando parar de chover.
(Mantém-se em silêncio, de olhares rígidos e desamparados; ele força-se a acenar a cabeça ao ritmo da música, tentando não olhar para a janela demasiadas vezes; ela continua indiferente a quem a rodeia, apesar de por vezes olhar o barman enquanto passa mão pelo cabelo.)

Esboço # 53

(Os dois adolescentes estão no quarto, apenas iluminados pela luz do monitor de um computador; um escreve freneticamente no teclado, o outro no telemóvel; como se competissem numa prova de velocidade ou de agilidade. Ouve-se o ruído longínquo de uma televisão, vindo de outra sala.)
ADOLESCENTE 1 (sem interromper a escrita; num tom indiferente, como se estivesse a verbalizar um pensamento fugaz e pouco relevante): Porque fica a mãe a ver televisão até tão tarde, todos os dias?
ADOLESCENTE 2 (sorrindo, sem maldade ou ironia): Está à espera que o pai adormeça. Para não ter que fazer sexo.
(O teclar prossegue, monótono e entediante, envolvido pelo rugido da publicidade televisiva.)

Esboço # 52

(A porta da entrada do prédio fecha-se com estrondo e a Mulher caminha sem pressa, carregando a pequena mala; o Menino segue-a, indiferente. Entram no carro, em silêncio.)
MULHER (num tom jovial): O pai costuma falar de mim?
MENINO (olhando pela janela): Às vezes.
MULHER (tentando dissimular a surpresa): A sério? E que lhe contas tu sobre mim?
MENINO (admirado): Eu? Ele nunca me pergunta nada. Fala muito da ti mas é com a namorada dele.
(Silêncio. A Mulher agarra o volante com força. Tenta sorrir. Depois, lembra-se de ligar o rádio; sons de vozes bem-dispostas invadem o carro.)
MENINO (sem olhar a mãe): E riem bastante, quando falam de ti.

Esboço # 51

(Ela fuma, soprando o fumo com preguiça; Ele dormita, ou finge que dormita. Estão deitados sobre a cama desfeita, nus; em silêncio; os corpos não se tocam. Cheira a sexo. Ouvem-se os risos das empregadas de limpeza, no corredor.)
ELA (num tom sedutor, bem-disposto): Porque não perguntaste ainda como me chamo?
ELE (sem abrir os olhos, sem se mover; num tom distante e apático, frio): Porque não me interessa saber.
(Ela ri, nervosa; depois puxa a ponta de um lençol, tentando cobrir um pouco do seu corpo nu.)

Esboço # 50

(Os dois rapazes estão sentados na sala, a jogar playstation.)
RAPAZ 1 (num tom casual, quase desinteressado): Se os pais se divorciarem, com quem preferias ficar?
RAPAZ 2 (concentrado no jogo): Porque haveriam de se divorciar? Nunca os vi discutir.
RAPAZ 1 (tom agastado): És tão parvo. Como poderiam discutir se nem sequer conversam?
(Os sons explosivos do jogo disfarçam o silêncio que preenche a sala semi-escura. Deverá ser quase hora de jantar mas continuam sozinhos em casa, à espera.)

Esboço # 49

(Estão os dois a ver televisão na sala escura; sentados no mesmo sofá mas ligeiramente afastados.)
ELA (sem o olhar): Tens saudades minhas durante o dia?
ELE (concentrado na televisão): Tenho.
ELA (alguns segundos mais tarde, num tom forçadamente indiferente): Então porque nunca telefonas?
ELE (um pouco irritado): Para quê?
ELA (magoada com a resposta dele): Para conversarmos.
ELE (olhando-a, sem hostilidade): Sobre o quê?
(Ela sente o olhar dele mas concentra-se na televisão, incomodada. Ele percebe que não haverá resposta e parece aliviado.)

Esboço # 48

(A Idosa está deitada na cama do hospital, respirando com alguma dificuldade; olha a Filha que está sentada junto da janela, lendo uma revista. Ouvem-se gritos de dor e queixumes ocasionais, vindos do corredor. De repente a Filha atira a revista ao chão e levanta-se.)
FILHA (caminhando em direcção à porta, sem olhar a Idosa): Vou apanhar ar.
IDOSA (num tom choroso e assustado): Tens que ir? Não quero ficar sozinha. (Hesita, baixa a voz.) Não quero morrer sozinha.
FILHA (sem parar, num tom indiferente): E de que serve morrer acompanhada?
(A Idosa fica a olhar para a porta vazia enquanto ouve os ruídos dos outros idosos, despedindo-se ruidosamente do mundo.)

Esboço # 47

(Ele conduz, Ela olha pela janela.)
ELA (continuando a olhar para a paisagem entediante; num tom desapaixonado, quase indiferente): Alguma vez pensas em divórcio?
ELE (vagamente surpreendido): Não. (Espreita-a durante um instante, volta a olhar em frente. Tom apreensivo.) E tu?
ELA (depois de uma hesitação que não se esforça em disfarçar): Não.
(Ela continua a olhar pela janela; ele aumenta um pouquinho o volume do rádio. Depois, toca um telemóvel; mas ninguém o atente.)

Esboço # 46

(Sorriem à cliente, que não corresponde; ainda assim, mantém os sorrisos até que ela saia. Quando ficam sós, os sorrisos desaparecem de imediato. Permanecem por trás do balcão, imóveis e apáticas, olhando em frente, talvez a escutar a música dançável que sussurra por toda a loja, minimal e repetitiva.)
EMPREGADA MAIS NOVA (num tom quase bem-disposto): Nunca te cansas de sorrir?
EMPREGADA MAIS VELHA (num tom agastado, encolhendo os ombros; sem olhar a colega): O meu marido queixa-se que em casa nunca sorrio.
EMPREGADA MAIS NOVA (tom compreensivo): Gastas os sorrisos todos no trabalho, não é? (E sorri; logo depois, suprime o sorriso.)
(Mantém-se em silêncio, olhando para a porta; talvez não entre mais ninguém, talvez apenas volte a haver necessidade de sorrisos amanhã.)

Esboço # 45

(Os dois homens caminham pelo corredor do hotel, em silêncio. Um deles abre a porta e entra, o outro segue-o; permanecem durante alguns segundos no pequeno átrio, olhando o quarto. O que abriu a porta arrisca uns passos exploratórios, o outro despe o casaco.)
HOMEM 1 (num tom ligeiramente ansioso): Costuma-se pagar antes ou no fim?
HOMEM 2 (tom sério mas algo distante, quase desinteressado; procurando um local para pousar o casaco): Antes.
HOMEM 1 (após uma ligeira hesitação): Ok. (Mas não se move.)
(O silêncio do quarto é um pouco opressivo, desconfortável. Talvez fosse um alívio para ambos se, por exemplo, um telemóvel tocasse.)

Esboço # 44

(A Mulher está no sofá, apoiada sobre os joelhos, enquanto o Homem a penetra por trás, com gestos firmes e vigorosos, mecânicos. Os rostos de ambos revelam cansaço e aborrecimento, desinteresse pelo que fazem; pressa. Estão mais cinco pessoas na sala, duas delas apontando-lhes câmaras de filmar.)
HOMEM (aproximando-se do rosto dela, enquanto prossegue a actividade sexual; tom ligeiramente ofegante, muito baixo): Depois de despacharmos isto queres ir almoçar?
MULHER (num tom monocórdico, quase segredado): Não posso. Tenho que me despachar. (Ajeita ligeiramente o corpo, procurando uma posição menos desconfortável.) Tenho que ir falar com a professora da minha filha.
HOMEM (adaptando-se à nova posição da Mulher; ligeiramente surpreendido): Não sabia que tinhas uma filha.
MULHER (olhando fixamente a câmara que está mais próxima): Tenho duas.
HOMEM (parando por um momento e recomeçando logo depois; num tom melancólico, quase triste): Não sabia.
(Prosseguem sem grande entusiasmo, à espera que alguém ordene uma mudança de posição; ou um intervalo. Os homens das câmaras continuam a mover-se em redor do sofá, aborrecidos. De repente, ouve-se uma voz irritada a exigir mais realismo, mais empenho, mais banda sonora. O Homem suspira e aumenta o ritmo; a Mulher geme, de modo obsceno e teatral.)

Esboço # 43

(A Empregada aproxima-se erguendo a bandeja apenas com uma mão; coloca o sumo e a torrada em cima da mesa, com gestos hábeis e despachados.)
EMPREGADA (olhando a Cliente e sorrindo): Deseja mais alguma coisa?
(A Cliente parece despertar de um devaneio; olha a Empregada, com atenção e curiosidade: o rosto, as mãos, o peito, de novo o rosto.)
CLIENTE (num tom algo abstraído, quase sonhador): Sim. (A Empregada ainda sorri, sem esforço.) Podia sentar-se aí e conversar um bocado comigo. (Olham-se e o sorriso da Empregada desaparece, devagarinho.) Sei lá. Dizer-me quantas torradas já transportou para estas mesas, por exemplo. Coisas assim, só para passar o tempo.
(Por um breve instante, parece que a Empregada vai aceitar o convite e sentar-se junto da Cliente; mas, logo depois, afasta-se sem pressa. A Cliente pega num pedaço de torrada e mastiga, sem prazer.)

Esboço # 42

(O sol pousa lentamente sobre o mar; o calor ainda é intenso, apenas suavizado por uma ténue brisa que sopra a intervalos regulares, quase previsíveis. Há pouca gente na praia; Ele está deitado sobre a areia, indolente e imóvel, pensativo; Ela, um pouco afastada, parece dormir.)
ELE (voz arrastada, amorfa): Há quanto tempo passamos férias juntos?
ELA (sem se mover mas abrindo os olhos; num tom quase indiferente): Uns cinco, acho. (Volta a fechar os olhos; compõe o corpo na toalha.) Porque perguntas?
ELE (olhando-a com súbita intensidade, espiando-lhe o corpo com timidez): Porque desde essa altura que me apetece dormir contigo.
(Ela sorri, depois olha-o com curiosidade, talvez com carinho; Ele desvia o olhar, embaraçado e receoso.)
ELA (num tom plácido, ligeiramente condescendente): Eu sei.
(Ele mantém-se tenso, sentindo o olhar dela; ouve-se uma gargalhada distante, logo engolida pelo monótono rugido das ondas. Ela passa a mão pela coxa e, depois, acondiciona o fato de banho ao corpo num gesto que poderia ser considerado provocador. O sol move-se muito lentamente: mas ninguém o olha.)
ELA (muito tempo depois): Eles já devem estar à nossa espera. (Não se move, Ele não reage.) É melhor irmos andando.
(Mantém-se imóveis, indiferentes à passagem do tempo; confortáveis. Alguém que os olhe talvez pense que formam um casal feliz.)

Esboço # 41

(Os dois idosos sentaram-se há muito no habitual banco do jardim, à sombra, mesmo junto do rio; Ele vai dormitando, Ela olha disfarçadamente para um casal de adolescentes que está sentado num banco mais afastado e que se beija.)
ELA (num tom de voz triste e resignado): Há quantos anos não fazemos aquilo?
(Ele abre os olhos e, contrariado, espreita o parque; o seu olhar detém-se durante alguns segundos nos adolescentes.)
ELE (num tom desinteressado): Não me lembro.
(Ele volta a fechar os olhos; ela observa o modo desajeitado mas decidido como o rapaz tenta acariciar os seios da rapariga; e sorri.)

Esboço # 40

ELA (sem o olhar): Trouxeste preservativos?
ELE (irritado): Esqueci-me.
(Entram no elevador do hotel, aguardam que a porta feche; um deles carrega no número seis.)
ELA (num tom seco, definitivo): Não vou fazer sexo contigo sem preservativo.
ELE (defensivo): Mas o quarto já está pago.
(O elevador imobiliza-se, a porta abre. Ambos olham o corredor deserto, indecisos; depois, Ele sai; Ela segue-o, hesitante, talvez contrariada.)
ELE (num tom conciliador): Podemos ficar um bocado a conversar.
ELA (olhando-o, um pouco surpreendida): E falamos sobre o quê?
(Caminham pelo corredor, em silêncio.)

Esboço # 39

HOMEM 1 (num tom afável, curioso): De todas as mulheres com que te cruzas na rua, com quantas tens fantasias momentâneas? Mais ou menos.
HOMEM 2 (num tom pensativo e ponderado): Para aí com quarenta por cento.
(Ambos olham em frente, para além do passeio; todas as outras mesas da esplanada estão desertas. Não passam carros na rua há mais de cinco minutos.)
HOMEM 1 (num tom surpreendido, sem qualquer indício de ironia): Só?

Esboço # 38

FILHA (num tom curioso, quase delicado): Quando estás sozinha, em casa ou assim, costumas falar contigo própria?
MÃE (sorrindo, talvez surpreendida com a questão; ou apenas com a seriedade com que a questão foi colocada): Às vezes.
(A Filha fecha a porta do frigorífico e afasta-se até junto da janela; apetece-lhe um cigarro mas não se atreve. A mãe continua junto do fogão, comandando o avanço da refeição.)
FILHA (num tom sério, preocupado): E falas de quê?

Esboço # 37

MÉDICO (num tom displicente): Quando começares a salvar vidas, vais perceber. (Pausa breve.) O olhar de reconhecimento das pessoas é avassalador, transforma-te. (Pausa breve. Tom algo pomposo, exibicionista.) É preciso algum cuidado para não te deslumbrares, pelo menos no início. Depois, habituas-te. Deixas de contar quantos salvas, quantos morrem.
(Caminham pelo corredor deserto e fracamente iluminados, olhando em frente; as suas batas irradiam brancura.)
ESTAGIÁRIO (interrompendo o silêncio com algum receio, num tom respeitoso mas não subserviente): Com que idade comprou o primeiro descapotável?
(O Médico olha-o, surpreendido; depois, sorri.)
MÉDICO (num tom condescendente, bem disposto): Aos vinte e seis.

Esboço # 36

(Os dois homens estão sentados em cadeirões, na varanda; contemplam o horizonte com olhares algo melancólicos, especulativos, enquanto sopram as suas nuvens de fumo com vigor, tentando que não se cruzem. Ouvem-se vozes e risos distantes.)
HOMEM 1 (tentando aparentar indiferença): Há quanto tempo estão juntos?
HOMEM 2 (após uma hesitação, como se precisasse de contar): Uns onze meses, acho.
HOMEM 1 (tom displicente): Gosto dela. (Pausa breve.) Gostei logo, quando ma apresentaste na semana passada.
HOMEM 2 (sem ironia): Ainda bem.
(O Homem 1 pega num copo que está no chão, mesmo junto da sua cadeira; bebe um longo gole, volta a pousar o copo, arrota disfarçadamente.)
HOMEM 1 (tom desprendido, tentando aparentar indiferença): Quando te fartares, avisa.
(O Homem 2 sorri, sem gosto nem prazer; sopra o fumo do cigarro com vagar, olhando o céu.)
HOMEM 2 (num tom seco, agastado): Há onze meses que estou farto.
(Por momentos, os ecos de vozes cessam; depois, há uma inesperada explosão de gargalhadas. Os dois homens tentam manter-se indiferentes, contemplando o horizonte; mas quanto maior é a intensidade dos risos – a exteriorização da felicidade –, maior é o seu desagrado, maior é a tensão com que chupam os respectivos cigarros.)

Esboço # 35

(Caminham os dois pelo passeio, lado a lado, sem pressa; expressões apáticas, abatidas. Ambos olham, com interesse e intensidade diferentes, uma mulher que caminha à sua frente.)
ELA (num tom amargo, talvez magoado): Se conseguisse perder trinta quilos, voltavas a fazer amor comigo?
ELE (após uma breve hesitação, num tom sereno e algo apologético): Acho que não.
(Continuam a caminhar olhando a mulher que se afasta, sem admiração ou inveja; olhando, simplesmente.)

Esboço # 34

ADOLESCENTE 1 (num tom ligeiramente inseguro, hesitante): Costumas masturbar-te muito?
(Estão ambas estendidas num sofá, não muito distantes uma da outra, olhando para a televisão com expressões entediadas.)
ADOLESCENTE 2 (num tom indiferente): Algumas vezes por semana.
ADOLESCENTE 1 (após uma pausa e num tom receoso, quase tímido): Como costumas fazer?
ADOLESCENTE 2 (olhando a interlocutora, com uma expressão subitamente interessada e expectante): Queres que te mostre?
(Pouco tempo depois, uma delas aumenta o volume da televisão. Lá fora começou a chover.)

Esboço # 33

(Os dois idosos estão sentados num banco de jardim, olhando para o vazio; um deles talvez esteja quase a adormecer.)
IDOSO 1 (numa voz arrastada, mecânica): Estás a ver aquela nuvem ali? (Aponta com a cabeça.) A mais comprida.
(O outro idoso olha preguiçosamente, sem qualquer ponta de interesse, e acena com a cabeça.)
IDOSO 1 (sem deixar de olhar a nuvem, que se move quase imperceptivelmente): Acho que já a vi, uma vez.
IDOSO 2 (desinteressado): Quando?
IDOSO 1 (no mesmo tom monocórdico, cansado): Há uns quarenta anos. (Pausa breve. Tom hesitante.) Talvez mais.
(O idoso 2 não responde e pouco depois volta a ceder à sonolência, fechando os olhos; o idoso 1 continua a observar a nuvem, vendo-a afastar-se.)
IDOSO 2 (mais tarde, ainda com os olhos fechados; num tom desprendido): Isso quer dizer que a nuvem demorou quarenta anos a dar a volta ao mundo.
(O idoso 1 acena com a cabeça, concordando; ambos se mantêm em silêncio e imperturbáveis durante alguns segundos. Depois, inesperadamente, riem em simultâneo, partilhando uma gargalhada que demora algum tempo a dissipar-se.)

Esboço # 32

(Estão sentados num banco de jardim, ligeiramente afastados mas com as mãos dadas; dezenas de pássaros esvoaçam entre as árvores, com ruído, quase com alegria, embalados por um vento desagradável que arrepia a pele dos namorados; ouve-se a estridência de uma sirene, não muito distante. Ambos olham em frente, silenciosos, satisfeitos e reconfortados com a simples presença do outro, com o silvo da respiração próxima.)
ELA (num tom de voz murmurado e quase imperceptivelmente receoso): Queres ter filhos?
ELE (após um silêncio longo, como se ponderasse cuidadosamente a resposta adequada; ou como se pensasse no assunto pela primeira vez na sua vida; num tom firme e decidido): Sim. Dois.
ELA (sorrindo mas sem o olhar): Dois? É o que eu quero, também.
(Permanecem em silêncio, sem se olharem, tocando-se apenas com as mãos; estranhamente, não há mais ninguém no parque, o que talvez lhes agrade; ou os iniba – o espectáculo do amor parecer-lhes-á, talvez, menos recompensador se não houver ninguém a assistir.)
ELE (olhando-a, com alguma apreensão): Tenho que ir. (Pausa breve.) Explicação de matemática, daqui cinco minutos.
ELA (apertando-lhe a mão com força e, logo depois, libertando-a; tom ligeiramente decepcionado): Ok.
(Ele levanta-se e pega na mochila; ela olha-o, serena.)
ELE (num tom suave): Encontramo-nos depois das aulas da tarde? (Ela acena com a cabeça, sorrindo.) Aqui? (Novo aceno.)
(Ele inclina-se e beija-a rapidamente nos lábios; ela fecha os olhos, ele não.)
ELE: Até logo.
ELA: Tchau.
(Ele afasta-se, colocando a mochila às costas; caminha com rapidez, sem olhá-la uma única vez. Ela observa-o durante alguns segundos; depois, retira o telemóvel do bolso e começa a teclar, com frenesim; talvez esteja a enviar-lhe um sms, dizendo que o ama; ou não. A sirene da ambulância ainda se ouve, insistente, assustando os pássaros.)

Esboço # 31

(A sala de convívio do lar está quase deserta: apenas dois idosos estão sentados num sofá a olhar para a televisão – que tem o som desligado – com expressões apáticas e desinteressadas; ouve-se momentaneamente o choro de alguém – um adulto –, que logo depois cessa. Uma mosca esvoaça de janela para janela, insistente e desesperada, impotente.)
IDOSO (num tom amargo e hesitante, sem retirar os olhos da televisão): Quantas vezes estiveste apaixonada? (Pausa breve; apenas se escuta o zumbido irritante da mosca, perfurando a tranquilidade da tarde.) Durante toda a vida.
IDOSA (algum tempo depois, como se tivesse pensado profundamente na resposta; mas num tom desinteressado): Nenhuma. (Pausa muito breve.) Acho que nenhuma.
(Continuam a olhar para a televisão, indiferentes à presença do outro; talvez à espera que o choro distante regresse; ou que alguém venha e ligue o som da televisão; ou que a mosca desista de tentar lutar; ou que seja hora de ir para a cama.)